domingo, 1 de novembro de 2015

ANTES DO FUTURO

Amantes e Triunfantes, 1.ª parte da peça Lovers: Winners and Losers, 1967, de Brian Friel (9/1/1929-2/10/2015), interpretada pelos alunos (Ana Nascimento, Joana Matos e João Fernandes) do Curso Profissional de Artes do Espectáculo – Interpretação, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa. Ensaio geral de 29/6/2015. Encenação: Mariana Rosário. 

     Para compreender esta peça é preciso ter em mente o contexto histórico, social, político e religioso da Irlanda do Norte na década de 60. Uma terra contraditória, onde a par do desejo de independência do Reino Unido se vive uma atmosfera moral e socialmente repressiva, moldada pelos dogmas e preconceitos sociais e religiosos. O ódio entre Católicos e Protestantes não é menor do que o desprezo por aqueles que vivem ou tentam viver à margem da moral instituída. 
     Brian Friel é considerado o Tchekhov irlandês pelo seu carácter inovador e ombreia com outros grandes nomes da dramaturgia irlandesa e mundial, como Samuel Beckett, Arthur Miller, Harold Pinter, Tennessee Williams e Bertold Brecht. Friel inaugura aquilo que veio a chamar-se o “teatro da memória”. Em várias das suas peças, o enredo aparece como um exercício de rememoração de factos passados, como se o distanciamento dos factos originais fosse uma condição necessária para os compreender melhor. 
     Em Amantes e Triunfantes, a narradora, que recorda os factos anteriores e posteriores à acção central (a última tarde antes do desaparecimento e morte de dois jovens em Junho de 1967), é aparentemente imparcial. Fala num tom frio e distante como quem noticia factos apenas com as regiões mais geladas do cérebro. Mas a sua insensibilidade é também a representação de um modo de estar e pensar na Irlanda dos anos 60. A morte dos jovens ficará envolta em mistério porque não convém revelar toda a verdade. A sua morte nem sequer é chorada ou lamentada, surge como um facto natural e inevitável. A fronteira do permitido pela moral vigente fora ultrapassada, eles são apenas pecadores que tiveram o castigo merecido. A fleuma da narradora choca e faz pensar: Em nome de quê ou de quem se fala assim? Onde está o amor pelo próximo, a aceitação do outro, a misericórdia, a esperança conferida pela fé? Ela fala em nome de uma sociedade retrógrada moldada pelos dogmas e preconceitos religiosos. Não dá informações ideológicas, apenas factuais. Cada leitor / espectador tirará as suas ilações. Também não importa qual é a religião; neste caso, é a Católica, mas poderia ser outra. Ontem como hoje, a religião transforma-se muitas vezes numa espécie de vírus letal. Friel viu isso com muita clarividência e fez a denúncia a seu modo, partindo de situações do quotidiano. 
     Em 1929 fora aprovada a Censorship Bill, que pretendia proteger uma sociedade fechada, conformada e imutável dos perigos e abusos contrários à doutrina da igreja. A atitude repressiva não teve apenas repercussões na produção cultural e artística, mas também e sobretudo na vida quotidiana das pessoas. Na década de 60, as transformações na mentalidade e cultura das gerações mais jovens vai fazer surgir conflitos, atitudes de contestação e rebeldia e uma veemente necessidade de mudança. As pressões levam à abolição oficial da censura nos anos 60, mas as mentes e as consciências são muito mais difíceis de mudar do que uma lei no papel. É sobre esse conflito entre um mundo velho e retrógrado e um mundo novo, com novos horizontes e cheio de esperança que incide esta peça. 
     Para além dos altos muros dos dogmas religiosos, que cercam toda a comunidade, outros muros se erguem, de natureza social e cultural, que condicionam a vida social, familiar e afectiva. A segunda parte de Lovers (Losers) vai apresentar um casal de meia-idade que vivia uma relação de amor mútuo sem serem casados. A partir do momento em que os preconceitos e as convenções os obrigam a casar, o amor dilui-se; permanece a relação para manter as aparências mas não o amor. Em Winners (Amantes e Triunfantes), dois jovens adolescentes vêem-se obrigados a casar repentinamente porque a rapariga fica grávida. A acção vista pelo espectador decorre na última tarde das suas vidas, pouco antes do seu desaparecimento e morte. Os restantes factos serão dados a conhecer pela narradora.
     Joe (Joseph Michael Brennan) e Mag (Margaret Mary Enright) são dois jovens de 17 anos prestes a concluir os seus estudos secundários. Mag provém de uma família de classe média-alta, sem problemas económicos e respeitada pela comunidade. Joe provém de uma família humilde com poucos recursos. Não é, portanto, um caso de Romeu e Julieta, ambos aristocratas, separados pelo ódio e rivalidade entre as famílias. É um caso de barreiras sociais e morais. 
     A revelação da gravidez de Mag leva à expulsão dos jovens das respectivas escolas, uma apenas feminina e outra apenas masculina, ambas dirigidas por religiosos. A mãe de Joe, mulher determinada e lutadora, pressiona o director para que permita ao filho fazer os exames finais. Mag consegue o mesmo benefício, embora não se saiba como, provavelmente devido ao estatuto social da família. Ambos vivem em Ballymore, pequena cidade rural, mas em zonas muito diferentes da cidade. Numa tarde do início de Junho sobem ao topo da colina de Ardnageeha para estudarem. Dali avistam o lago Loch Gorm, que tem pouca água devido à seca do Verão de 1966. Joe tenta concentrar-se verdadeiramente no estudo. Como homem e futuro pai, sente-se obrigado a ter sucesso nos estudos, pretende arranjar trabalho e sustentar a família. Mas Joe também tem os seus objectivos pessoais para além da família. Gostaria de formar-se e ser professor, mas aquela situação inesperada parece pôr termo às suas pequenas e grandes esperanças. Sente-se frustrado e revoltado mas ama Mag genuinamente. Só não lhe agrada que o seu caminho seja traçado por outros. Mag é uma romântica sonhadora que pouco importância dá à formação escolar. Pensa sobretudo no seu futuro com Joe, uma casa acolhedora, uma família. Não tem ambições sociais ou intelectuais, talvez porque sempre viveu num ambiente privilegiado. Em vez de tentar estudar, interrompe Joe constantemente para falar dos mais diversos assuntos. Joe, ora se mostra irritado ora alinha nas conversas e brincadeiras de Mag. Ela alterna entre momentos de euforia e momentos de tristeza, dúvida e insegurança, requerendo a constante atenção de Joe; sente uma permanente necessidade de se sentir amada, no presente e no futuro. Depois de a narradora informar que os jovens morrerão em breve, Joe manifesta o seu amor por Mag de forma mais veemente, como se o público precisasse, tanto como Mag, de ser convencido desse amor. 
     Nas suas conversas e brincadeiras, eles evocam e mimetizam aqueles que de um modo ou outro representam a autoridade e a repressão e simulam matá-los. No entanto, não têm coragem para se lhes opor e contrariar a ordem para casar, cedo de mais. Em vez disso, descem a colina, donde avistam um barco abandonado, para viver uma última vez a ilusão de liberdade e verdade. O público não vê o que acontece em seguida, a acção termina aqui, mas já sabe que o desenlace dessa aventura no lago será fatídico. Segundo informa a narradora, a autópsia dos corpos afogados foi inconclusiva. Nunca se saberá se foi um crime, um acidente ou um suicídio e isso pouco parece importar à narradora e à comunidade. Apenas se sabe que não havia marcas de violência nos corpos. Após a morte dos jovens, a vida em Ballymore prosseguiu como habitualmente, como se a morte dos jovens tivesse sido apenas mais um problema que o destino ou os desígnios divinos resolveram. O mistério permanece mas o caso é dado por encerrado. Desde o início, a narradora fala no passado, o tempo da memória, anuncia a tragédia como algo já consumado e impossível de alterar. Assemelha-se ao coro da tragédia grega como uma espécie de comentadora mas não anuncia o fim trágico como algo iminente ou facto futuro. O futuro já aconteceu não acontecendo e daí lava as mãos toda a comunidade pela voz da narradora. Curiosamente, pouco se sabe sobre a reacção das famílias, como se os laços afectivos e a verdade fossem menos importantes do que a máscara colectiva que deve permanecer imaculada. 
     Depois de conhecido o desenlace, o título soa ainda mais irónico: Winners / Triunfantes… Ninguém ganhou nada, apenas a morte triunfou sobre a vida. Mais uma vez o dogma e o preconceito mataram o amor. Enquanto se observa a silhueta da narradora sobre a colina vazia, as palavras de Maggie voltam a ecoar na memória recente: «I can’t wait for the future, Joe.»
     Os estrados colocados em degrau, primeiro juntos, depois espalhados pelo palco fazem lembrar uma espécie de ancoradouro mas também uma espécie de caixões flutuantes, um ponto de partida para uma viagem sem retorno. No final, com a luz baixa, a colina parece transformar-se verdadeiramente num ancoradouro vazio. Só a narradora, a senhora da memória, permanece lá.
    Neste espaço cénico cheio de significado, os actores moveram-se sobretudo nos estrados superiores, o topo da colina, local de isolamento, reflexão e recordação. Nos momentos de exaltação Mag move-se mais, desce para os estrados mais baixos, fala mais alto, abre os braços, abraça o futuro. A mudança nas expressões dos jovens actores é tão notável como é comovente a ternura de Joe para com Mag, perto do final. É quando ela parece adormecida e mais indefesa que Joe deixa ver a luz protectora do seu coração, como se nada de mau pudesse acontecer. Nesse momento já o espectador conhece o desenlace, mas é como se houvesse ainda esperança, como se a história contada pela narradora não fosse a verdadeira história daqueles jovens.
     Mais uma bela interpretação destes jovens actores, a última nesta fase da sua formação. Uma coisa é certa, quem interpreta assim não pode parar por aqui. Vénias e aplausos! 


Interpretação:

Ana Nascimento - Mag
Joana Matos – Narradora
João Fernandes - Joe

Encenação:

Mariana Rosário





Lovers - Winners, photography by São Ludovino.

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Lovers - Winners, photography by São Ludovino.