quinta-feira, 23 de março de 2017

A FACE ESQUIVA DA VERDADE

A FACE ESQUIVA DA VERDADE

Blackbird, drama de David Harrower (2005), interpretado por Igor Angélico e Cláudia Sousa, alunos finalistas do Curso Profissional de Artes do Espectáculo – Interpretação, P.A.P. (Prova de Aptidão Profissional). Ensaio geral, no Auditório da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 29/6/2016.

     Esta peça de David Harrower, dramaturgo nascido em 1966 na Escócia, foi já levada à cena centenas de vezes em diversos palcos do mundo e, mais recentemente, foi adaptada ao cinema, com argumento do próprio Harrower e realização de Benedict Andrews. O filme estreou em Setembro de 2016 com o título Una, o nome de uma das duas personagens que contracenam no texto original, escrito em 2005. Enquanto o título original, Blackbird, parecia apontar mais para a figura masculina (Ray Brooks / Peter Trevelyan), Una coloca no centro do drama a figura feminina, porque ela é, de facto, o centro.
    A peça aborda a história de um homem de 40 anos (Ray Brooks) e de uma rapariga de 12 (Una) que se envolvem amorosamente, apesar de tal relação ser considerada ilegal e estar sujeita a uma pena pesada. Segundo os padrões convencionais, poderíamos chamar-lhe um caso de pedofilia e abuso de menores. No entanto, não é bem assim que a história é aqui apresentada. Una surge como vítima, mas também como uma espécie de Lolita que se envolve de facto afectivamente com o abusador/pedófilo. Ela não é forçada, segue Ray de livre vontade e diz-se apaixonada por ele. A relação dura cerca de três meses, Ray abandona Una, o caso é denunciado às autoridades, Ray é julgado e cumpre uma pena de cerca de dez anos. Posteriormente, Ray tenta refazer a sua vida, muda de cidade e de nome (Ray Brooks passa a chamar-se Peter Trevelyan), tentando a todo o custo, apagar o passado. Casou e tem um emprego estável. Una permaneceu na mesma localidade, na mesma rua, na mesma casa, como se, pelo menos para ela, fosse impossível apagar o passado. Para onde quer que fosse, ele estaria lá, inscrito nas suas memórias, na sua mente, na sua percepção da realidade. Foi condenada e ostracizada na sua própria comunidade, obrigada a recordar-se do passado constantemente, mas nunca se mudou.
     Toda a acção se centra no reencontro de ambos, que ocorre quinze anos mais tarde, quando Una já tem 27 anos e Ray / Peter tem 55. Ray nunca teria procurado Una. Ele separa de forma muito clara os sentimentos da conveniência social, pelo menos no discurso exterior. A narrativa interior deixa entrever outra história, a de um amor recíproco, mas proibido, que Ray não quer nem pode assumir. Teme o passado, é demasiado cobarde e enverga com convicção a sua nova máscara. Afirma repetidamente que não tem nada para lhe dizer, que o passado ficara lá atrás, que já se esquecera dela, que nem a reconheceria se ela não lhe dissesse quem era. 
     É ela quem o procura, acima de tudo porque quer compreender e quer ver se existe nele algum arrependimento ou sofrimento, como forma de apaziguar a raiva e a dor que a acompanham. Una encontrou numa revista uma fotografia do pessoal de uma empresa bem-sucedida. Embora o nome que figurava na legenda fosse Peter, Una reconheceu Ray de imediato. Se tinha encontro marcado com o passado todos os dias dentro da sua mente, então estava decidida a reencontrá-lo cara a cara e queria, antes de mais, uma resposta para todas as suas interrogações. Queria encontrar-se com a verdade. Para ela a verdade era simples. Amara aquele homem, mas ele apenas a tinha usado durante algum tempo, depois abandonou-a. E acreditara também que ele a amara, até ficar só com a sua raiva. Queria encontrar também uma réstia de amor que diluísse na sua mente a ideia de que fora simplesmente mais uma vítima de um abusador de menores sem sentimentos nem escrúpulos. Nas suas memórias, para além da raiva, ela continuava a ver essa réstia de amor, um lenitivo para as suas feridas mas não a cura.
     O motivo por que este caso não pode ser abordado apenas como um caso de pedofilia ou abuso de menores é precisamente o amor que a vítima sente, ou pensa sentir, pelo abusador. Num determinado ponto do diálogo entre ambos, Ray e Una recordam múltiplos momentos da sua breve relação. E é nessas recordações que vislumbramos aqui e ali uma tentativa de Ray se redimir dos seus actos. Na verdade, apenas tenta justificar-se para desculpar a sua conduta, não se redime. Fala do modo provocador como Una o olhara desde início, numa festa familiar no jardim da casa dos pais de Una, fala do modo como ela aparecia constantemente na rua quando ele andava por ali, dos bilhetes que Una lhe deixava no pára-brisas do carro. Tenta também afastar a ideia de que o seu comportamento fosse o de um típico pedófilo; nega ter-se sentido atraído por ela de imediato, diz que apenas se aproximou dela porque, tal como ele, ela era tímida e parecia algo deprimida e estava sentada sozinha longe de todos. Afirma também que ela foi a única rapariga tão jovem com quem teve um relacionamento íntimo e que a amou até se aperceber do erro. O erro foi o medo, a percepção de que estava a cometer um acto ilegal. Mais adiante, Ray tentará mostrar algum arrependimento e afirma que a amou, mas nunca de forma convincente. É apenas mais uma forma de lavar as mãos e se absolver a si mesmo. A ambiguidade sem redenção permanece.
     Una tenta acreditar nas justificações e argumentos de Ray, mas não consegue. E o final mostra bem porquê. A mulher com quem Ray casou tem uma filha, tão jovem como Una na altura dos factos narrados. Quando essa miúda entra no gabinete onde estão a conversar, Una apercebe-se de imediato que a relação que Ray tem com ela não é a relação de um pai / padrasto com uma filha. Percebe que Ray esteve sempre a mentir, enquanto abusou dela e enquanto se justificou. A verdadeira essência de Ray impôs-se perante os seus olhos e não havia mais nada a fazer. Fugir dali sem conseguir fugir do passado. O amor nunca existira, apenas o abuso. O reencontro com o passado apenas o tornou mais negro e destruidor. A verdade que encontrou era apenas uma sucessão de mentiras, as máscaras de Ray, inventadas por ele e por ela também, quando viu nele o que ele não era nem sentia. 
     Uma encenação possível desta peça poderia consistir precisamente na constante mudança de máscara de Ray. Una permaneceria sempre a mesma, Ray usaria máscaras sucessivas. De certo modo foi isso que aconteceu com a mudança de emoções, atitudes e discurso que Ray adoptou ao longo do diálogo. E o actor (Igor Angélico), que desempenhou o papel, interpretou o jogo psicológico de forma muito verosímil. Ray começa pela recusa em falar com Una, acaba por consentir mas pede-lhe constantemente para irem conversar para a rua, acusa Una de ter sido ela a provocadora, quer fazer crer que tem uma relação de absoluta sinceridade e honestidade com a mulher com quem casou, justifica a sua relação com Una com o amor que sentira, tenta arranjar argumentos para explicar que o seu comportamento não fora nem é o de um pedófilo, interessa-se pela vida presente de Una, mostra-se um profissional competente e empenhado, dissimula a sua relação com a filha da mulher, continua a ser quem sempre foi e a negá-lo, apesar de todos os factos estarem contra ele.
     Do mesmo modo, Una mantém a sua constância e as suas contradições. Durante a maior parte do diálogo, é dominada por um misto de amor-ódio que nunca poderão ser compatíveis, mas em todas as palavras se nota espontaneidade e uma emoção intensa. Una não se controla nem finge. Sublima os impulsos mais destruidores ou volta-os contra si mesma. Durante anos escreveu a Ray cartas que nunca enviou, cartas de raiva e amor, mas nunca agiu contra ele, nem no próprio julgamento. Encontrar-se cara a cara com ele passados tantos anos era para ela mais importante do que matá-lo, como ele chegou a supor. Só vivo poderia explicar, justificar-se, dar algum sentido ao que não tinha sentido. Num determinado momento, Una recorda que o pai dela o quis matar, mas fora ele que falecera alguns anos antes. Logo em seguida, Una procura algo na sua mala e Ray, aterrorizado, arranca-lhe a mala da mão em busca de uma arma ou faca, pensando que esse era o intuito de Una, matá-lo… mas ela só tinha lenços de papel e uma garrafa de água. Mesmo quando Una parece ser ainda a miúda apaixonada por um homem muito mais velho não finge. Tenta a todo o custo que o absurdo faça sentido. Ray finge permanentemente, mesmo quando parece ceder, ser frágil, ter medo de si próprio, do que desconhece ou não controla em si mesmo. Ele sabe quem é e o que sente mas não tem coragem para o revelar. A face esquiva da verdade revelou-se a Una, mas continuou oculta para os restantes. Provavelmente, alguns anos mais tarde a filha da mulher de Ray tornar-se-ia uma nova Una em busca dessa face esquiva que não viu.
     Para além do enredo da peça, cada um poderá pensar sobre estes factos uma coisa diferente. Uns verão aqui mais um caso evidente de pedofilia, outros verão uma história de amor proibido, outros verão uma reedição dos amores primitivos e medievais, em que era comum homens muito mais velhos casarem com meninas de tenra idade, outros poderão ver uma inversão dos tradicionais papéis masculinos e femininos, outros poderão ver simplesmente em Ray e Una o símbolo de um amor tornado impossível por todas as constrições legais, sociais, morais e religiosas… 
     Seja qual for a interpretação, o que é certo, é que Harrower se serviu de um caso concreto de pedofilia para conceber estas personagens e escrever esta obra. Um ex-Marine norte-americano (Toby Studebaker) raptou uma menina inglesa de 12 anos, fugiu com ela, passou por vários países, abandonou a menina e acabou por ser preso, julgado e condenado a uma longa pena. O passado desse homem veio a demonstrar que esse não fora um caso inédito na sua vida e que era um consumidor de pornografia infantil. Ninguém sensato seria capaz de absolver o homem que cometeu estes actos. Em ambos os casos, a rapariga é abandonada passado algum tempo, diluindo a ideia bela de que tinha sido o amor que deu coragem e fez quebrar as barreiras. Só o amor poderia redimir Ray e apaziguar Una. Ray termina no ponto onde começou, envolvendo-se com uma menina, filha da mulher com quem casou. Una reencontrou o passado, mas não o amor que julgava ter existido. O passado e o presente permanecem idênticos, tal como a natureza humana. Seria curioso ouvir múltiplas opiniões e argumentos, incluindo os de Nabokov (se fosse vivo, 1899-1977), o autor de Lolita, (1955).
     Ambos os jovens intérpretes tiveram um desempenho de uma enorme maturidade na postura e nas emoções, quase sempre extremas e difíceis de gerir. Já que toda a acção decorre num pequeno compartimento, corriam o risco de tornar o diálogo numa troca estática de palavras, mas eles souberam criar dinamismo com uma grande variedade de expressões faciais, tonalidades vocais, posturas e movimentos em palco. Escolher esta peça foi um risco ousado, mas saíram-se muitíssimo bem, mais uma vez. Bravo Igor e Cláudia, pela ousadia, pela interpretação, pelo cenário! Todo aquele lixo espalhado pelo chão não teve apenas um efeito cénico extraordinário, foi uma excelente maneira de dar uma imagem visual de uma espécie de catarse do eu profundo de dois seres, dos seus males, das suas dores, das suas memórias, dos seus medos que nenhuma máscara poderia esconder.

     Sei que continuarão a fazer um excelente trabalho. Durante os três anos de curso deram múltiplas provas da vossa capacidade de trabalho e talento. Bom trabalho e boa sorte! 

Interpretação:

Ray / Peter – Igor Angélico
Una – Cláudia Sousa
Holly – Gabriela Sousa

Encenação: Igor Angélico e Cláudia Sousa
Espaço cénico: Igor Angélico e Cláudia Sousa
Direcção de actores: Carlos Melo 
Figurinos: Igor Angélico, Cláudia Sousa e Gabriela Sousa
Assistente de Encenação: Gabriela Sousa
Técnico de Som / Luz: Eliana Ferraz





Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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 Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino.

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