terça-feira, 1 de dezembro de 2015

CANÇÃO DO VALE

Canção do Vale / Valley Song, peça de Athol Fugard interpretada pelos alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo – Interpretação, da Escola Secundária D. Pedro V. Lisboa, 30/6/2015. Elenco: Eliana Ferraz e Miguel Mateus. Encenação: Carlos Melo. 

     A Canção do Vale, de Athol Fugard, dramaturgo, encenador e actor sul-africano, é o espelho de um país, de um tempo que continua e do próprio autor. Se o apartheid que estrangulou a África do Sul durante séculos foi tema e pano de fundo de várias peças do autor, a África do Sul pós-apartheid continuou a oferecer-lhe matéria para reflectir e escrever. Como o autor afirma, viver depois do fim do apartheid foi como começar tudo de novo a partir do nada. É preciso tempo para aprender a viver em liberdade, tempo para distinguir as miragens da realidade, tempo para reorganizar a mente, a visão do mundo, o quotidiano, os sonhos. Para as gerações mais velhas, que nunca tinham conhecido a liberdade e a verdadeira cidadania, os novos tempos são um desafio ainda maior do que para as gerações mais novas. 
     Embora longe do seu país natal (vive há várias décadas nos Estados Unidos onde é professor na Universidade da Califórnia em San Diego), Fugard manteve-se sempre atento ao desenrolar dos acontecimentos no seu país. Depois da euforia que se seguiu à queda oficial do apartheid em 1992, vieram as vicissitudes naturais em qualquer processo de profunda transformação política e social. Tempos empolgantes que ainda duram mesmo após a morte do carismático líder Nelson Mandela. A par da renovação, do sabor inebriante da liberdade, vieram também novos conflitos e a descoberta de obstáculos que não são muito diferentes dos da velha África do Sul. Nos campos, a vida dura continua e a fuga para as cidades apenas fez crescer os ghettos dos bairros periféricos. Como o próprio autor afirma, há pelo menos uma coisa que não mudou: os ricos enriquecem cada vez mais e os pobres são cada vez mais pobres.
     Athol Fugard escreveu a Canção do Vale em 1996, quando todos os sonhos desabrochavam e tudo parecia possível. É uma peça com um único acto e três personagens que deveriam ser representadas apenas por dois actores. O velho agricultor Abraham Jonkers (conhecido na aldeia como Buks), Verónica, a sua amada neta e o único aconchego que lhe resta e o Autor, um escritor que decide regressar à terra natal em busca de um passado irremediavelmente perdido. O próprio Fugard representou os dois papéis masculinos. O velho Buks é uma imagem vinda da sua infância passada no Karoo (onde Fugard também nasceu); o Autor é o seu alter-ego tentando realizar um sonho há muito adiado, depois de muitos sonhos perdidos, num tempo em que já não pode ter lugar. Verónica, a neta do velho agricultor, é o sangue novo, não apenas de uma nação mas de uma nova geração, muito semelhante a outras que podemos encontrar em qualquer ponto do mundo. Para ela nada é impossível e acredita verdadeiramente que há-de concretizar os seus planos gloriosos de riqueza e fama. Ela pretende ser cantora, conhecida e aplaudida nos grandes palcos da cidade. A pobreza da aldeia não lhe amortece a vontade e determinação, apenas a faz sonhar e acreditar ainda mais. Só o profundo amor pelo seu velho Oupa (avozinho) a mantém temporariamente presa por um fio naquele lugar onde canta constantemente. Não apenas para alegrar os dias rotineiros cheios de trabalho mas sobretudo como se cada dia fosse o ensaio para as luzes da ribalta.
     Aos olhos de um citadino ocidental de um país desenvolvido, muito do que perpassa perante os nossos olhos pode parecer um anacronismo, sobretudo na nova África do Sul, mas não é. A segregação racial pode ter terminado mas as desigualdades sociais permanecem, assim como as assimetrias entre o mundo rural e o mundo urbano. Permanecem também valores e crenças que alimentam a subserviência e conformismo dos mais velhos a par da rebelião das novas gerações. No final, o velho Abraham interroga-se sobre o que teria feito mal para chegar àquele desenlace; a filha fugira de casa e acabaria por morrer num hospital de Joanesburgo pouco depois de dar à luz Verónica e agora Verónica ia também abandoná-lo, enfeitiçada com o apelo da grande cidade. Lembra-se de um episódio em criança com o seu pai. Durante uma pausa nos trabalhos do campo, o pai dissera-lhe que o mais importante era ser um “bom homem”; se fosse um “bom homem”, seria respeitado, teria o seu sustento, paz e amor, seria feliz. Abraham pergunta ao pai como poderá tornar-se um “bom homem”. Depois de pensar longamente, o pai responde-lhe que terá de viver a sua vida em três lugares: naquelas terras (“akkers”) trabalhando arduamente, na sua casa, amando e protegendo todos os que nela habitarem e na igreja, venerando o Todo Poderoso e agradecendo-lhe por todas as suas dádivas. E foi exactamente isso o que fez o velho Abraham, foi um homem bom e acabou pobre e só, acompanhado apenas pelas mágoas e tragédias do passado. No final, ele percorre as ruas da aldeia sozinho, fazendo a si mesmo a mesma pergunta “o que fiz eu de errado?” Sente-se injustiçado e traído, enganado pelo humilde sonho de ser um “homem bom”. Só lhe resta a terra, as suas dádivas e mistérios. A peça encerra com uma visita do Autor ao velho Abraham, antes de regressar à cidade. Serve esta visita precisamente para reavivar na mente do velho o profundo amor pela terra. Lembra-lhe que a Primavera está a chegar e as chuvas deixaram os campos mais perfumados do que o corpo de uma mulher.

Autor – (…) Pensa nisso, Buks. Chegou uma outra Primavera e nós ainda aqui estamos! Fortes o bastante para sairmos para o campo e começarmos a semear! Diz-me a verdade, agora, Buks pensa nos teus dias de juventude e diz-me… Alguma vez uma mulher cheirou tão bem como a terra do Karoo após uma boa chuvada?

     O velho Abraham Jonkers nunca conheceu verdadeiramente a nova África do Sul, nunca foi um homem verdadeiramente livre, nunca ousou ir além dos limites das suas poucas terras. E no entanto, o seu amor pela terra e pelas suas dádivas era o seu grande alento, só suplantado pelo amor por Verónica. A terra era para ele uma dádiva sagrada, cheia de mistérios. Trabalhá-la arduamente e retirar dela o sustento era uma forma de veneração, de amor profundo. Em vão, tentou despertar na neta o mesmo amor pela terra, explicando-lhe o milagre das sementes de abóbora e incitando-a a ver a indizível beleza dos montes circundantes. E quando o “Whiteman” / o Autor aparece na aldeia para comprar uma velha casa e as terras em redor, a sua única preocupação é preservar as suas terras, mesmo que para isso tenha de se mostrar subserviente e abdicar da sua dignidade.
     As luzes da ribalta foram mais fortes do que a beleza e generosidade da terra. Verónica partiu para a cidade em busca dos seus sonhos. O avô fica destroçado mas abençoa-a. No final, o Autor ainda tenta convencer Verónica a ficar com o avô, mas não com muita convicção. Confessa ter ciúmes de Verónica, da sua juventude, da sua determinação. Ela é uma parte daquilo que ele já não é.

Autor – (…) E, depois, além do mais, tenho ciúmes.

Verónica – De quê?

Autor – De ti. Da tua juventude. Dos teus sonhos. O futuro agora pertence-te. Houve um tempo em que foi meu, quando eu o sonhei como tu o fazes agora; mas já não. Acho que esgotei todo o “Futuro Glorioso” de que outrora desfrutei. Mas isso não é uma coisa de que se desista facilmente. E eu tento agarrar-me a isso da mesma maneira que o teu Oupa se agarra a ti. 

     Antes de partir, Verónica canta uma última canção para o seu avô, uma canção de amor por ele e pelo vale onde cresceu. Esta podia ser também a canção do Autor. Também ele partiu dali por causa de um sonho. Outro sonho o faz voltar.

Verónica – Amo-te muito, Oupa. (Ela sai cantando.)

Partes-me o coração
Vale que eu amo tanto.
Partes-me o coração
Agora que te digo adeus.
Aqui tudo começou
Vale que eu amo tanto.
Para longe de ti eu vou
Porque eu tenho de partir.
Vou cantar-te uma canção
Vale que eu amo tanto.
E assim todos saberão
Como é lindo este lugar.
Este sonho que sonhei
Leva-me a fugir daqui.
Mas vale que eu amo tanto, 
Eu regressarei por ti.

    Os jovens intérpretes estiveram à altura do desafio. A intemporalidade do conflito de gerações, dos sonhos e das emoções transbordaram dos seus rostos, gestualidade e palavras. Verónica fez do seu sonho um objectivo credível e palpável, cantando e falando entusiasticamente do seu futuro. Abraham Jonkers e o Autor repartiram o palco e o tempo de uma forma exemplar, permitindo ver a teia de sonhos e emoções que ligam aqueles três seres.
   O cenário, representando uma humilde casa de agricultores, fazia lembrar os tons africanos e a forma como as coisas simples e pequenas podem ser o centro do mundo e motivo de genuína felicidade. 
  Todos os intervenientes merecem um efusivo aplauso! Abram alas para os jovens actores, sobretudo agora que fundaram a sua própria companhia!

Elenco e encenação:

Eliana Ferraz
Miguel Mateus

Direcção de actores:

Carlos Melo





Valley Song, photography by São Ludovino.

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 Valley Song, photography by São Ludovino.

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