ARTES DE SER: ONDE ESTÁ O AUTOR?

SEIS PERSONAGENS EM BUSCA DE AUTOR
Luigi Pirandello
Auditório da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 23/4/2015

O propósito desta peça não é apenas fazer teatro, encená-lo, levá-lo ao público com estas ou aquelas roupagens cénicas. É antes de mais uma reflexão sobre o próprio Teatro e as relações entre o Teatro e a Vida. Entre o Teatro e a Vida há muitos seres, reais e fictícios, o autor, o encenador, os actores, as personagens, os espectadores, os seres humanos que existem e persistem antes e depois do Teatro.

É certo que temos aqui uma metadiegese, a peça dentro da peça, o teatro dentro do teatro. Seis personagens “reais” reivindicam o direito de ocupar o palco e contar o drama das suas vidas. Estão unidos por laços familiares e o drama é comum a todos, mas cada um o conta segundo o ser que é, sempre único e irrepetível, solitário sobretudo no sofrimento. Uma história humana nunca tem uma única versão nem o Teatro consegue numa só peça contar todas as versões do mesmo drama. O dramaturgo, o encenador, os actores fazem escolhas, escolhem a sua própria versão e interpretação do “drama” da vida dos outros. O drama será sempre dos outros, alheio, incompleto e imperfeito, apesar de toda a experiência da vida, todo o saber, empatia e imaginação. Se bem que o drama pessoal de cada um há-de intrometer-se sempre de premeio entre o Teatro e a Vida, entre o texto e a interpretação. O encenador lá tenta encontrar o fio da meada, ler nas entrelinhas do texto e da vida, tenta dar coerência e verosimilhança ao drama que não lhe pertence. Pertence a todos e não pertence a ninguém. E o incauto espectador lá tem de acordar da sua letargia, da sua passividade de mero observador e tentar discernir quais são afinal as fronteiras entre o palco e a vida, quem são aqueles seres (personagens) que se apresentam como gente no palco, quando o único verdadeiro palco é a vida. Tarefa inglória… quando se acorda da letargia e as histórias e as emoções começam a jorrar, não se encontram fronteiras, apenas fragmentos, “gritos de Munch” semi-abafados, pedaços de gente, retalhos de vida.

Mais do que a incapacidade do Teatro em tornar-se Vida, Seis Personagens Em Busca de Autor mostra a insuficiência de toda a Literatura em representar a Vida tal como ela é. O realismo é sempre um fruto apetecido mas na maioria das vezes torna-se uma miragem. E todos acreditamos em miragens, às vezes são a coisa mais próxima da vida que conseguimos encontrar. Talvez por isso, a mais real História da Humanidade está precisamente no fluxo intemporal da Literatura, muito mais do que nos manuais académicos de ciência histórica.

Aquelas seis personagens são, a seu modo, uma família. Uma família disfuncional, cheia de tramas e segredos. Uma família comum, pacata, feliz (será que existem?) não teria um drama para contar. Não seriam gente efémera em busca da aparente eternidade do palco, as luzes da ribalta que agigantam dores e prazeres, aventuras e desventuras, felicidade e infelicidade. Histórias felizes, integralmente felizes, raramente chegam ao palco e quando chegam são mais facilmente esquecidas do que os dramas e as tragédias. A história daquela família acaba por interessar ao encenador precisamente porque é dramática, dolorosa, tem segredos para revelar, oferece vários níveis de interpretação e possibilidades de leitura.

Onde está o Autor que as personagens procuram? Está lá, bem presente, antes do texto e do palco, nas personagens e nas palavras, na encenação, na construção e desconstrução do drama. O primeiro drama é o do próprio Autor. Que retalhos de vida escolher, da sua e /ou dos outos, que voz pode dar-lhes, que sentido fazem as suas palavras e as suas personagens? Todo e nenhum. Todo o teatro é teatro absurdo por essa impossibilidade de representar a vida tal como ela é na sua totalidade, com toda a teia de experiências individuais e subjectivas. Mas o teatro tem também a extraordinária capacidade de se confundir com a vida, dar-lhe um sentido mais profundo e abrangente. Essa alquimia opera-se sobretudo através da expressão das emoções, o mais democrático atributo dos seres humanos, aquém e além do saber académico, das capacidades e idiossincrasias de cada um.

O Autor que leva fragmentos da vida ao palco continuará a ser procurado, encontrado e perdido múltiplas vezes. Mas o Autor somos também todos nós, leitores / espectadores que refazemos a nosso modo a obra e vida que vemos no palco.

Uma encenação “literal”, em que as coisas são o que são, sem espaço para fantasias ou fugas, deu aos actores um enquadramento perfeito para um desempenho sem variantes. Cada um é o que é, está condenado a ser o que é. A vida que cada um vive determina o que diz e faz, os movimentos, o tom de voz. De certo modo, os actores pareciam aprisionados pelas personagens e essa era uma parte importante daquelas personagens. Os membros daquela família queriam ser gente, tal como eram, e os actores conseguiram torná-los gente e não apenas personagens. As restantes personagens permaneceram estereótipos do princípio até ao fim. A família é a vida, eles são o palco.

Ficha Técnica

Encenação: Carlos Melo

Intérpretes (por ordem de entrada em cena): alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo – Interpretação, 12.º 13)

Carpinteiro: Rafaela Neves
Contra Regra / Ponto: Joana Matos
1º Actor: Igor Angélico
Galã: Bruno Teixeira
Encenador 1: João Fernandes
1ª Actriz: Marisa Conceição
Pai: Miguel Mateus
Enteada 1: Eliana Ferraz
Filho: Miguel Lemos
Mãe: Ana Nascimento
Rapaz: Rafaela Neves
Enteada 2: Marisa Pinto
Encenador 2: Cláudia Sousa
Madamme Pace: Rafaela Neves

Luminotecnia: Ricardo Diabão

Sinopse (tal como surge na Folha de Sala)

«Está tudo pronto para o começo dos ensaios da peça "O Jogo dos Papéis". Os actores estão em cena, preparados, o encenador sentado à espera do brilhantismo dos seus magníficos actores. Podia ser apenas isto, um simples ensaio, mas não será. É então que entra uma família composta por seis pessoas, o pai, a mãe, a enteada, o filho e mais outros dois, um rapaz e uma menina. Contudo, a família não invade o teatro em vão, eles fazem-no com um propósito, encontrarem um autor que queira ouvir e representar o drama que trazem.

Sem paciência para ouvi-los, o encenador ordena que saiam. É então que o pai começa a questionar os métodos teatrais e o teatro em geral. Esta sua atitude faz com que ele ganhe o interesse do encenador. Com este, agora disposto a ouvi-los, a enteada aproveita-se e começa a contar o drama, à sua maneira. Isto causa uma certa ira no pai, que não permite que ela conte a sua história e faz com que seja ele a dominar a cena. Este conflito vai-se acentuando ao longo da peça e conduz cada personagem a querer contar o drama à sua maneira. Mas existe uma pergunta que fica em aberto e ao critério do espectador: Qual será a verdade do drama?»

Six Characters in Search of an Author, photography by São Ludovino.

ARTES DE SER

terça-feira, 30 de junho de 2015

ONDE ESTÁ O AUTOR?

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