4:48 Psicose, peça de Sarah Kane, interpretada e encenada por Miguel Lemos e Marisa Pinto, alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo – Interpretação, 12.º 13, da Escola Secundária D. Pedro V.
Auditório da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 27/4/2015
Toda a Literatura tem algo de autobiográfico e talvez ainda mais o Teatro. Porque a vida é uma sequência de diálogos, porque o teatro é sempre feito de diálogos, mesmo quando é apenas um monólogo. O primeiro diálogo é sempre aquele que cada um tem consigo mesmo e esse é constante. Pensar é sempre dialogar com um interlocutor indefinido.
A peça 4:48 Psicose, da dramaturga britânica Sarah Kane (1971-1999), é sinceramente autobiográfica, o canto de um cisne que não podia fazer nada mais senão morrer. A escritora suicidou-se em 1999, na sequência de mais um tratamento infrutífero à sua depressão crónica. Na encenação que nos foi apresentada, vemos duas personagens, o terapeuta e a paciente. Mas a peça foi escrita para um número variável de personagens… ou nenhuma. Algumas encenações puseram em palco uma só personagem; foi essa talvez a forma mais genuína de representar o diálogo interior de alguém que vive permanentemente à beira da loucura e dialoga permanentemente com um “eu” múltiplo, que é o próprio e todos os outros “eus”, todos os outros seres, reais ou imaginados, que povoam o fluxo do tempo interior. Alguns vêm da memória, outros resultam dos medos, da ficção interior, da busca constante de sentido.
A personagem central, e de certo modo a única, interpela os seres do seu passado e do seu presente, interpela o seu terapeuta, alvo ambíguo de um amor sem objecto, e interpela-se a si mesma. Culpa tudo e todos pelo seu estado, pela sua incapacidade de lidar com a vida e sobretudo com as inquietações e incongruências da sua mente. Culpa o pai, a mãe, deus, aqueles que a amaram e não amaram, sobretudo aqueles que amou /ama e não existem, culpa-os pela sua inexistência, pelo fosso entre o seu sentir, a sua fantasia, e a realidade de cada um. Culpa-os a todos pela insanidade de viverem felizes com “belas mentiras” («Embrace beautiful lies - the chronic insanity of the sane»). Toda a sua vida é um eterno desencontro. Não conhece nem compreende nada nem ninguém. Na sua mente reina apenas um caos sem sentido e um vazio doloroso.
O sentido das coisas é sempre interior, se não se encontra lá dentro, dificilmente se encontrará fora, nos outros, nas experiências da vida ou numa química artificial (a medicação). Aquela personagem angustiada sente-se encurralada dentro de si mesma, num labirinto que a sua consciência e questionamento só podem aumentar. A química natural interna está em desequilíbrio e a química artificial externa apenas ludibria, apazigua momentaneamente, mas não cura. Por isso, ela afirma «It is myself I have never met, whose face is pasted on the underside of my mind» e «There's not a drug on earth that can make life meaningful».
Perante a impossibilidade de cura, perante o absurdo que contamina tudo, perante a impossibilidade de recriar a mente doente, psicótica, a impossibilidade de reconstruir a vida de outro modo e sendo outra, resta apenas o alheamento, o sarcasmo, o desespero e, por fim, a “hora da claridade”, o salto para o abismo, o suicídio. Como se esse segundo derradeiro fosse o único momento em que a mente foi realmente senhora de si, capaz de tomar uma decisão e agir. Como se a morte fosse a única libertação possível do “eu” que vivera sempre aprisionado pela loucura. Os últimos passos à beira do abismo são de uma dor insuportável, asfixiante. Aquele “eu”, que não pertence a nenhum mundo nem consegue encontrar o seu lugar, o seu sentido íntimo dentro da vida, olha-se ao espelho e vê apenas o vazio. A loucura surge então como uma inevitabilidade, uma predestinação a que é impossível escapar. Restam as palavras, a escrita, para dar o sentido possível ao absurdo, ao abismo dentro de si. Tal como a protagonista, o leitor / espectador é levado pelos meandros do labirinto escuro e infindável. A única redenção reside precisamente na escrita, na consciência frágil e empática, na capacidade de ver a luz e a escuridão entrelaçadas. Há uma certa beleza e clarividência na loucura, há poesia e silêncio. Quem olha de fora, sofre e persiste estrada fora, quem olha e vive por dentro não tem saída e sucumbe nos meandros do labirinto.
O facto de o vazio ser sentido sobretudo no coração, mais do que no cérebro racional, traz à superfície uma antiga certeza, tantas vezes vista e revista na literatura e na vida. A certeza de que os afectos são, na loucura ou na sanidade, o alicerce fundamental e a única terapia para a mente. Em dado momento, a protagonista faz uma espécie de auto-retrato poético da sua identidade interior, intocável e permanente; não é um “estado de alma”, é um “estado de ser”:
«Built to be lonely
to love the absent.
Find me
Free me
from this
corrosive doubt
futile despair
horror in repose.
I can fill my space
fill my time
but nothing can fill this void in my heart.»
Os dois jovens actores conseguiram transmitir o fluxo constante da angústia e desespero até ao salto no abismo. A carga emocional chegou a ser dolorosa, impondo um silêncio absoluto entre os espectadores. Como se nada mais houvesse para dizer; todo o esforço deveria ser feito numa tentativa de compreender. A expressão facial e corporal da protagonista chegaram mesmo a causar arrepios cá dentro, tanto ou mais do que as palavras ditas. O terapeuta pareceu, por vezes, distante, indiferente ou talvez apenas impotente. Aparentemente, cabia-lhe apenas estar ali e ouvir, sempre ciente de que pouco poderia fazer. A sua ajuda é ilusória, temporária e superficial. Passada a linha da fronteira da consciência, o reconhecimento da loucura incurável, a própria medicação torna-se uma espécie de placebo ridículo em que já ninguém acredita. No universo vasto e desconhecido da loucura, a ciência parece ser apenas o breve cintilar de uma estrela cadente…
O cenário linear, despido, bicolor (sobretudo branco e azul), deu uma impressão de antítese e síntese entre a “pureza” (branco) da loucura, sem contornos, geometria ou disciplina, e o infinito desconhecido (azul) que ela encerra.(1)
Não é certamente uma peça para todos os “estômagos”, mas é preciso compreendê-la para a julgar. Para os corajosos jovens actores que a encenaram e representaram vai um aplauso de reconhecimento e incentivo. Ousar é preciso!
Este projecto foi desenvolvido autonomamente pelo Miguel Lemos e pela Marisa Pinto, alunos finalistas de Artes do Espectáculo – Interpretação, como trabalho final no âmbito da disciplina de Dramaturgia, leccionada pela professora Alda Cruz.
(1) A cor branca foi associada à loucura desde longa data. Na Idade Média, era comum vestirem-se de branco aqueles que eram considerados loucos e colocarem-se em barcos deixados à deriva num rio. Foram várias as obras publicadas na Idade Média e no Renascimento com o título “Nave dos Loucos”, “Barca dos Loucos” ou “Barca dos Tolos”. É também sobejamente conhecida a obra pictórica de Hieronymus Bosch (1450-1516) intitulada “A Nave dos Loucos”. Só que nestas obras o objectivo era denunciar e criticar os vícios e fraquezas dos mais poderosos, ricos e corruptos, sobretudo aqueles que pertenciam ao mundo eclesiástico e / ou às classes dirigentes.
4:48 Psychosis, photography by São Ludovino.
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