segunda-feira, 21 de maio de 2018

REESCRITA DA MEMÓRIA

REESCRITA DA MEMÓRIA

Carta – textos sobre as memórias pessoais, escritos (1) e interpretados pelas formandas do Grupo de Teatro da Matraca. Encenação de Nuno Pinheiro. Ensaio de 23/4/2018, Paço d’ Arcos. 

     Somos eternos viajantes no tempo-espaço que é, no fundo, tudo o que nos rodeia e nos habita. A memória é natural, faz parte da viagem, como o ar, como os dias que vêm e passam. E a paisagem em redor estende-se cada vez mais. Aquele ponto parece desaparecer de tão distante, mas logo a seguir está outra vez aqui porque ainda estamos vivos e nada se desvanece por completo. 
     Todos têm a sua nuvem em que se sentam balouçando as pernas sobre o mundo enquanto respiram com a alma, vêem e revêem todas as paisagens que algum dia viram. E, no entanto, toda a impressão de déjà vu é ilusória e aquele ponto que continua lá, a milhas de distância, que faz de conta que é sempre o mesmo, não resiste à recriação de olhar e voltar a olhar. 
     Que grande criadora e recriadora é a memória! E na sua eterna recriação permanece leal. Não parte nunca. Mesmo que lhe pedissem para partir, não partiria. Ficaria ali, mesmo na palma da tua mão, no fundo das tuas pupilas, num recanto qualquer que só a ti pertence, sendo imagem, gesto, aroma, emoção irrepetível, pulsão essencial que vem de longe e ruma sempre ao futuro. Leva consigo as raízes e entranha-se na terra e na atmosfera de todos os lugares e todos os tempos. Até que todos os lugares e tempos se confundem e lembrar é simplesmente uma forma mais completa de estar aqui e agora. 
     Parece bater mais forte agora o coração de sempre. Não é a velocidade dos passos nem é o cansaço, é só a presença mais límpida e intensa de tudo neste exacto momento em que deixou de haver ontem, hoje ou amanhã. Na pele, na respiração, na dança da memória estão todos os tempos. Ontem? Sim, lembro-me perfeitamente, a primeira papoila decidiu nascer à beira do meu caminho. Agora que olho para ontem, posso vê-la com toda a nitidez e nem sequer murchou nem faz tenção de murchar. Não se cansa de viajar, não pesa mais nem menos do que a luz do sol. Flui com o tempo, deixá-la fluir… 
     Aquilo que vi, ouvi, senti, quando acompanhei o desfilar desta sequência de memórias de tanta gente diferente, foi essa viagem pela vida, pelas emoções, pela imaginação, pelo tempo. Não pude deixar de sentir empatia com todas elas, não importa quão semelhantes ou diferentes de mim. São testemunhos de vidas autênticas e foram interpretados de modo autêntico. Não falaram da escalada do Evereste, do choque de civilizações, da luta dolorosa pela sobrevivência, de sagas e epopeias extraordinárias, nem era necessário. E isso foi talvez o mais tocante. Ver pessoas reais sendo reais no palco, interpretando-se a si mesmas, às suas memórias, partilhando generosamente o seu ser. 
     Para mim, ver a minha própria filha interpretar o meu papel foi ainda mais estranho e comovente. Não era eu, era apenas uma das formas de recriar as minhas próprias memórias. Sem querer, vi-me dentro e fora delas. Talvez seja sempre assim que olhamos as nossas próprias memórias, de dentro e de fora simultaneamente. 
     Convém sublinhar que nenhuma das intérpretes é actriz profissional ou fez uma formação académica nesta área. O seu desempenho resulta da dedicação de cada uma delas e do extraordinário trabalho de formação e encenação feito pelo formador / actor / encenador Nuno Pinheiro. O ensaio não mostra o verdadeiro impacto emocional e cénico desta peça de gente muito real. No palco, com as luzes certas, o efeito foi ainda mais surpreendente. As fotografias e o vídeo mostram apenas o ensaio num espaço muito diferente do palco em que a peça foi apresentada, o Auditório Eunice Munoz, em Oeiras. 

     A propósito da memória, deixo abaixo não a Chuva Iluminada (poema já muito antigo que a minha filha entrelaçou na narrativa), mas O Fio de Ariadne, um poema sobre o amor que perdura intacto na memória. 

(1) Alguns textos foram escritos, na totalidade ou parcialmente, por outros autores: Mário Rui Melo, Nuno Pinheiro, São Ludovino. 


Grupo de Teatro da Matraca 
CARTA 
(Participação na 32.ª Mostra de Teatro Amador de 27 de Março a 27 de Maio de 2018) 
Ensaio de 23/4/2018 


Textos 
Anabela Costa 
Fernanda Botelho 
Isabel Leão 
Isabel Sá 
Luzia Ludovino 
Maria João Bentes 
Mia Meneses 
Mário Rui Melo 
Nuno Pinheiro 
São Ludovino 
Selma Tomásia Fernandes 
Sónia Alves Barata 
Susana Gomes 
Teté Cruz de Carvalho 

Formação e direcção de actores 
Nuno Pinheiro 

Encenação 
Nuno Pinheiro 

Elenco 
Anabela Costa 
Fernanda Botelho 
Isabel Leão 
Isabel Sá 
Luzia Ludovino 
Maria João Bentes 
Mia Meneses 
Selma Tomásia Fernandes 
Sónia Alves Barata 
Susana Gomes 
Teté Cruz de Carvalho


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O Fio de Ariadne

Lembro mesmo aquilo que não vivi.
Vês aquele pássaro que passou a rasar sobre a minha cabeça
e me olhou olhos nos olhos como se o conhecesse desde sempre?
Nunca o vi antes, mas reconheço-o intimamente;
vem de tempos e lugares onde o fio da memória nasce
e não cessa de se enlear nos dias de todos os tempos.

É desta extensíssima ponte entre o passado e o futuro
que a memória brota de uma nascente misteriosa
e nos contempla como uma velha mãe
que nos conhece desde que nos sonhou.

Este fio imaterial com que teço este densíssimo manto de histórias
contém tudo o que sei, tudo o que sou,
mesmo o que não sei que sei,
mesmo o que não sei que sou.

Fugidios são os dias, todos os dias;
escoam-se como areia por entre os dedos
e nada fica senão as mãos vazias
tatcteando as dunas do tempo.
Grão a grão, gota a gota,
o fio da memória nasce das dunas,
teimosa incorrigível e criadora
imprime milhões de pegadas na areia;
e onde antes havia apenas deserto
brota agora a nascente e ergue-se a ponte
por onde caminhamos incessantemente.

Sabes onde conduz este fio que aperto nas mãos?
Sigo o padrão deste manto
cubro-me com o seu linho fresco
e dissolvo-me nos interstícios do fio.
Entre este nó e aquele laço,
entre esta malha e aquela teia
o tear da memória desenrola o novelo dos tempos
e tece a vida, indiferente às humanas fronteiras do tempo.

Grande mistério o desta empresa:
por mais que cresça o manto
nunca se esgota o novelo.
Olha, mãe! Teci uma colcha de estrelas
com o calor das tuas mãos e a serenidade do teu rosto.
Neste manto estão todas as palavras que pronunciaste
mesmo as que nunca ouvi.
Serão as mesmas estas que pronuncio para ti?

Ainda ontem voltei a adormecer no teu colo
e tu já não estavas aqui.
Ainda hoje me chamaste
e tu já não estás aqui.
Mas aqui, sentada ao tear,
não há ontem nem amanhã nem presente,
há o manto, há o ser que não pára de ser.

São Ludovino, 17/4/2010, 2:05 a.m.


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The Thread of Ariadne

I remember even what I didn’t live.
Can you see that bird that flew so close over my head just now
and looked me in the eyes as if he knew me since ever?
Never seen him before, but deep within I recognize him;
he comes from times and places where the thread of memory is born
and never ceases to mingle in the days of all time.

It is from this immense bridge between past and future
that memory springs from a mysterious source
and contemplates us the same way as an old mother
who knows us since she dreamed us would do.

This immaterial thread with which I weave this utterly dense mantle of stories
contains everything I know, everything I am,
even what I don’t know that I know,
even what I don’t know that I am.

Fleeting are the days, every day;
they drain like sand through the fingers
and nothing remains but empty hands
groping the dunes of time.
Grain by grain, drop by drop
the thread of memory springs from the dunes,
stubborn and incorrigible creator,
she prints millions of footprints in the sand;
and where before there was only desert
now springs the source and rises the bridge
we cross ceaselessly.

Do you know where this thread I hold tight in my hands leads?
I follow the pattern of this mantle
I cover myself with its fresh linen
and I dissolve myself in the thread interlace.
Between this knot and that tie,
between this mesh and that web
memory loom unfolds the skein of time
and weaves life, indifferent to human time borders.

Great is the mystery of this task:
it doesn’t matter how further the mantle grows
the skein never runs out.
Look, mother! I wove a quilt of stars
with the warmth of your hands and the serenity of your face.
In this mantle are all the words you uttered
even those I never heard.
Are those words the same that I speak to you now?

Just yesterday I fell asleep again on your lap
and you were no longer here.
Even today you called my name
and you're not here anymore.
But here, sitting at the loom,
there is no yesterday, no tomorrow or present,
there is the mantle, there is the being that never ceases being.


São Ludovino, 17/4/2010, 2:05 a.m.

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Carta - Teatro Matraca - Ensaio de 23-4-2018, photography by São Ludovino.

 Carta - Teatro Matraca - Ensaio de 23-4-2018, photography by São Ludovino.

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Carta - Teatro Matraca - Ensaio de 23-4-2018, photography by São Ludovino.

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domingo, 20 de maio de 2018

DÁDIVA INTRANSMISSÍVEL

DÁDIVA INTRANSMISSÍVEL

A Morte Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Histórias, de Tim Burton, interpretadas pelos alunos de Artes do Espectáculo – Interpretação, da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, Dez. 2017. Encenação: Gonçalo Costa. Piano: Carolina Silva. 

     A atmosfera algo sombria e o humor negro de algumas destas histórias combinam-se com uma ténue luminosidade e emoções profundas, tão ao gosto de Tim Burton. A brevidade destas histórias ilustradas transporta em si uma imagem da própria fugacidade da vida, do melhor e do pior que nela acontece, reduzindo a acção ao essencial. Mas aqui o essencial não é nada de sublime e inefável, são as banais peripécias da vida, caricaturadas pelo absurdo, que se tornam decisivas numa engrenagem de determinismo social e psicológico. Como se fosse expectável que aquelas personagens naquele contexto agissem precisamente como agem, por mais absurdos e cruéis que sejam os seus actos. 
   Estas histórias estão escritas numa linguagem quase telegráfica que não apaga a densidade psicológica. Assim como quem quisesse reduzir a vida aos seus momentos mais marcantes e decisivos mas colocasse a tónica nas vivências interiores e no desenlace, mais ou menos trágico. 
   O humor negro, por vezes quase parece confundir-se com indiferença, como se todas as tragédias fossem inelutáveis, não porque o destino as determina mas porque as pessoas as determinam e consumam. E são os mais inocentes ou menos favorecidos pela dádiva natural da vida que são as principais vítimas deste determinismo social. A deficiência, qualquer que ela seja, passa de erro natural a culpa que ninguém quer aceitar. E assim, a vítima do erro natural é ainda mais castigada tornando-se também vítima do erro social. Se estas histórias podem fazer rir e sorrir, devem também fazer sentir, pensar e indignar porque o que retratam não são anedotas superficiais mas a realidade mais dura. 
   Levando o humor negro ao mais extremo absurdo, Tim Burton mostra de forma límpida como a discriminação banalizada e reduzida a actos convenientes e egoístas, é demasiado comum entre os humanos, mesmo entre os que se deviam amar e respeitar mais. A história do Rapaz Ostra é um bom exemplo disto mesmo. Os pais não aceitam o filho nascido diferente dos outros, reduzem-no a uma “coisa” e tentam eliminá-lo das suas vidas como se fosse um fardo, uma punição ou um erro injusto. Quem é duplamente vítima é apenas o Rapaz Ostra. 

Excerto:

«For their supper they had one spectacular dish-
a simmering stew of mollusks and fish.
And while he savored the broth,
her bride's heart made a wish. 

That wish came true-she gave birth to a baby.
But was this little one human
Well, maybe. 

Ten fingers, ten toes,
he had plumbing and sight.
He could hear, he could feel,
but normal?
Not quite.
This unnatural birth, this canker, this blight,
was the start and the end and the sum of their plight. 

She railed at the doctor:
"He cannot be mine.
He smells of the ocean, of seaweed and brine." 

"You should count yourself lucky, for only last week,
I treated a girl with three ears and a beak.
That your son is half oyster
you cannot blame me.
... have you ever considered, by chance,
a small home by the sea?"» 

(…) 

The doctor diagnosed,
"I can't quite be sure,
but the cause of the problem may also be the cure.
They say oysters improve your sexual powers.
Perhaps eating your son
would help you do it for hours!" 

He came on tiptoe,
he came on the sly,
sweat on his forehead,
and on his lips-a lie.
"Son, are you happy? I don't mean to pry,
but do you dream of Heaven?
Have you ever wanted to die? 

Sam blinked his eye twice.
but made no reply.
Dad fingered his knife and loosened his tie. 

As he picked up his son,
Sam dripped on his coat.
With the shell to his lips,
Sam slipped down his throat. 

They buried him quickly in the sand by the sea
-sighed a prayer, wept a tear-
and they were back home by three. 

A cross of gray driftwood marked Oyster Boy's grave.
Words writ in the sand
promised Jesus would save. 

But his memory was lost with one high-tide wave.» 




   Nestas histórias, não há personagens felizes ou perfeitamente inocentes e equilibradas. Há personagens que representam um estatuto, um estilo de vida, um modo de agir ou um facto incontornável da vida. Existe uma estrutura social e psicológica prévia; o que acontece a seguir torna-se tragicamente previsível. O mundo em que se movem parece permitir tudo, funciona segundo uma lógica egoísta e destrutiva em que a ética ou a pura sensibilidade não têm lugar. Mas é por isso mesmo que estas histórias suscitam uma profunda empatia para com todos os que sem culpa são colocados à margem da vida ou, pior ainda, são condenados a carregar o seu fardo, sós e ostracizados. Por isso, eu digo (no vídeo que acompanha este post) que se a vida existe mas não o “dom”, cabe a cada um criar e recriar esse dom nos que nasceram sem ele ou o perderam em alguma circunstância traiçoeira. 
   Vi esta peça há cerca de cinco meses atrás e já tinha há muito na minha mente o texto que iria escrever. A maior parte desse texto é o que fica acima. No entanto, há cerca de uma semana, quando o pequeno Alfie Evans foi condenado a morrer antes do tempo por um juiz no uso pleno das suas faculdades e do dom da vida, senti necessidade de escrever algo mais. A história “As Primeiras Janelas” é dedicada a ele e a todos os Alfies deste mundo. 


Encenação 
Gonçalo Costa 

Piano 
Carolina Silva 

Elenco 
Ana Carolina Cruz 
Rita Teixoeira 
Bárbara Soares 
Carolina Silva 
Carolina Trindade 
Diogo Fouto 
Filipa Silva 
Inês Silva 
Jorge Santos 
Yolanda Almeida 


AS PRIMEIRAS JANELAS 

     Nasci dentro de um pentágono, tal como tanta gente no mundo. Um telhado vermelho repousando preguiçosamente sobre quatro paredes robustas, uma porta e várias janelas. O que pouca gente no mundo tem é uma construção megalítica no quintal, pássaros pousando nos peitoris das janelas ou um vale a dez metros da soleira da porta. Mas mesmo que a diferença entre este lugar e todos os outros fosse apenas uma erva daninha junto ao portão que não existe, eu notaria a diferença. 
     Quem nasce em lugares como este conhece bem a importância decisiva do insignificante. Mesmo quando não se vê ou ninguém dá por ele, o insignificante faz modestamente toda a diferença. 
     E depois alguém diz: «Há qualquer coisa muito especial neste lugar mas não sei o quê…!» E ainda bem que não sabem porquê. Se soubessem que era por causa de uma simples erva daninha, do reflexo do sol em cada uma das minúsculas partículas de mica ou feldspato ou outra coisa qualquer, provavelmente ficavam muito desapontados e acabava a magia. Para eles, não para mim. A magia reside precisamente aí, no invisível e insignificante. E sem que ninguém dê por nada, cada coisa insignificante une-se a outras e outras até que todas as coisas insignificantes estejam unidas e criem a magia deste e de todos lugares. Mesmo que ninguém dê por isso, o insignificante e a magia estão lá. São mágicos guardiões de toda a vida. (1) 
     Pois bem, eu nasci dentro de um pentágono. Uma casa, dirão alguns. Um pentágono, digo eu, um pentágono extraordinário, cheio de coisas insignificantes, dentro, fora, por todo o lado! E mesmo que não houvesse coisas insignificantes por todo o lado, a minha mente encarregar-se-ia de as plantar por todo o lado. Tenho um enorme celeiro dessas sementes! Na arquitectura exterior deste pentágono nada há de excepcional. À frente uma porta, dividida em duas na horizontal, à volta várias janelas. 
     De cada janela vejo um sol diferente. É uma bela maneira de ter muitos sóis! E a paisagem e as cores que a luz pinta também são diferentes. Que é uma excelente maneira de ter muitos mundos dentro do mundo. Tudo muda em cada dia e em cada instante do dia. E depois há um dia em que o tempo parece parar ou me leva a viajar e eu vejo novamente o mesmo sol, a mesma luz, a mesma paisagem, átomo a átomo tudo regressa e eu digo “Eu já estive aqui! Ou foi tudo isto que voltou e nada mudou em mim? Talvez eu não me tenha movido, não tenha adormecido nem comido, talvez tudo isto passe o tempo a viajar e eu nunca mude nem me mova…» Mas no momento seguinte já a luz pinta outras cores e os ramos da mesma árvore oscilam de modo diferente, as nuvens passam mais lentas ou mais velozes e o céu sobre a montanha anoitece com novas estrelas, as que não vi ontem e as que acabaram de chegar. E tudo volta a fluir numa imensa harmonia de coisas novas e antigas. Que bom ter tantas janelas! São todas as primeiras, é sempre o primeiro olhar. 
     Também tenho muitas luas. Se me debruço desta janela, vejo um enorme disco de luz tocando as copas das árvores. Daquela vejo um arco de luz balouçando nas ondas. Há até uma de onde não vejo lua nenhuma mas sei que ela está lá. 
     No meu pentágono há lugares de luz e penumbra, uma infinidade de cores e formas que recriam o arco-íris a cada instante e de tantas formas diferentes. Depende da hora do dia ou da noite e das janelas que se abrem ou fecham. No meu pentágono podem ler-se as paredes, o soalho, o tecto. A luz passa e vai voltando páginas. A penumbra passa e volta outras. Estão escritas em muitas linguagens diferentes e as palavras são mais do que palavras, também são todas as coisas que habitam o meu pentágono e o mundo. Que grande é o mundo! Como é bela e infinita a vida quando a escrevo e leio neste livro! 
    Mas no meu pentágono também há outros livros, semelhantes aos das bibliotecas, são tantos que ocupam muitos lugares que não são seus, como os degraus das escadas, os baús de jardim ou as malas de viagem. 
     Depois de muitos e muitos dias a conversar com todo este mundo, um dia decidi fechar as janelas por instantes para descobrir o que estava para lá delas quando voltasse a abri-las. Quando voltei a abri-las vi mais do que vira antes. Vi por entre as árvores e as nuvens uma imensidade de janelas em que se debruçavam seres que não vira antes e todos os que já conhecia; vi árvores, arbustos, flores e frutos, nuvens e aves, lagos, rios, oceanos, vento e chuva, o sol e a lua, uma infinidade de animais e de gente. 
     Deixei todas as janelas abertas e fui lá para fora ver que fenómeno era aquele. Conversei com todos os seres com que me cruzei. As coisas naturais falavam em linguagens variadas mas semelhantes e as pessoas usavam quase todas a mesma linguagem. Não era um fenómeno sobrenatural, era só uma forma diferente de ver as mesmas coisas. 
   Algumas janelas estavam sempre fechadas, outras estavam sempre abertas, algumas iam-se fechando e abrindo e outras fechavam-se para nunca mais se abrirem. Essas eram janelas tristes, mas eu falava com elas e com os seres que lá tinham estado. 
     Num dia extraordinariamente belo, uma das janelas fechadas voltou a abrir-se. Lembrava-me bem do ser que lá estivera. Era muito pequeno e quase silencioso, sorria com toda a inocência e olhava para tudo como eu sempre olhara, como se fosse a primeira e última vez, profundamente grato por aquele instante. A janela abriu-se de par em par mas o pequeno ser não estava lá. Ainda assim eu via-o e sentia a sua presença. Gente passava em todas as direcções, olhavam-me, olhavam a janela aberta e vazia, abanavam a cabeça e seguiam o seu caminho. 
     Eu ali fiquei, sem hesitar nem duvidar, porque acreditava que o pequeno ser continuava lá. Dava os meus passeios em redor e voltava sempre para saudar aquela presença invisível. 
     Muitas estações depois, alguém começou a rondar o meu velho pentágono. Era uma criatura com uma longa capa negra e uma voz dura e solene. Não gostava de pentágonos nem de janelas abertas. Ordenou que todas as janelas se deviam fechar e nunca mais deviam ser abertas. Entendi, então, por que se tinham fechado tantas janelas ao longo do tempo. Tinha chegado a minha vez, a vez do meu extraordinário pentágono, que nem sequer tinha sempre a forma de um pentágono. Às vezes era um prisma multicolor, às vezes era uma nuvem, às vezes era uma árvore entre as árvores da floresta. Agora o nome pouco importa; alguém o comprou, barrou as paredes com cimento e pintou-as cor de sangue. As pedras, a mica e o feldspato reluzente lá ficaram a asfixiar debaixo da tinta. 
     Saí do meu pentágono de janelas fechadas. Assim já não era o meu pentágono. Fui para a floresta e aí construí uma casa extraordinária com uma única janela, que trouxera bem guardada na minha mochila, a do pequeno ser que eu continuava a ver. Em breve, a janela se multiplicou e a minha casa era feita apenas de janelas. Nem precisava de me debruçar nelas para ver as maravilhas em redor; elas estavam ao mesmo tempo dentro e fora da minha casa. Às vezes espreitava cá de fora só para ver se tudo estava belo e intacto como ontem. E estava, dentro e fora. O pequeno ser também estava lá, dentro e fora. Ora se sentava comigo a comer morangos ora corria livre como um pássaro por entre as árvores e as pradarias. De algum modo, acredito que vencemos a criatura sombria que tinha fechado todas as janelas. Nunca mais foi vista. A sua lei implacável continua por aí, mas também desaparecerá um dia. 
     Agora vivo ao ar livre e todos os lugares e todas as coisas são o meu infinito lar, meu e de todos os que vêem o invisível e amam as coisas insignificantes e belas que compõem a beleza primeira da vida. Boa-noite, ervas daninhas, grãos de areia e gotas de água! As estrelas brilham também para vós. 

São Ludovino, 29/4/2018 

(1) Como as redes de micélio e fungos mutualistas que permitem a preservação dos ecossistemas… tal como a alma, e a magia nela contida, preserva a beleza do mundo e da vida… 

Nota: História dedicada ao pequeno Alfie Adams, assassinado, em nome da lei, por um juiz que ama mais a morte do que a vida e se julga senhor das vidas que não lhe pertencem nem pertencerão nunca. Não se esqueçam de Alfie, da forma como viveu e morreu (28/4/2018). Cinco dias depois de as máquinas serem desligadas, continuava a viver, porque queria viver, porque gostava de viver, porque tinha o direito a viver, não importa como ou durante quanto tempo. Não se esqueçam também do tenebroso juiz, porque há muitos como ele por aí.



The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.




 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

 The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories - Tim Burton, photography by São Ludovino.

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