Carta – textos sobre as memórias pessoais, escritos (1) e interpretados pelas formandas do Grupo de Teatro da Matraca. Encenação de Nuno Pinheiro. Ensaio de 23/4/2018, Paço d’ Arcos.
Somos eternos viajantes no tempo-espaço que é, no fundo, tudo o que nos rodeia e nos habita. A memória é natural, faz parte da viagem, como o ar, como os dias que vêm e passam. E a paisagem em redor estende-se cada vez mais. Aquele ponto parece desaparecer de tão distante, mas logo a seguir está outra vez aqui porque ainda estamos vivos e nada se desvanece por completo.
Todos têm a sua nuvem em que se sentam balouçando as pernas sobre o mundo enquanto respiram com a alma, vêem e revêem todas as paisagens que algum dia viram. E, no entanto, toda a impressão de déjà vu é ilusória e aquele ponto que continua lá, a milhas de distância, que faz de conta que é sempre o mesmo, não resiste à recriação de olhar e voltar a olhar.
Que grande criadora e recriadora é a memória! E na sua eterna recriação permanece leal. Não parte nunca. Mesmo que lhe pedissem para partir, não partiria. Ficaria ali, mesmo na palma da tua mão, no fundo das tuas pupilas, num recanto qualquer que só a ti pertence, sendo imagem, gesto, aroma, emoção irrepetível, pulsão essencial que vem de longe e ruma sempre ao futuro. Leva consigo as raízes e entranha-se na terra e na atmosfera de todos os lugares e todos os tempos. Até que todos os lugares e tempos se confundem e lembrar é simplesmente uma forma mais completa de estar aqui e agora.
Parece bater mais forte agora o coração de sempre. Não é a velocidade dos passos nem é o cansaço, é só a presença mais límpida e intensa de tudo neste exacto momento em que deixou de haver ontem, hoje ou amanhã. Na pele, na respiração, na dança da memória estão todos os tempos. Ontem? Sim, lembro-me perfeitamente, a primeira papoila decidiu nascer à beira do meu caminho. Agora que olho para ontem, posso vê-la com toda a nitidez e nem sequer murchou nem faz tenção de murchar. Não se cansa de viajar, não pesa mais nem menos do que a luz do sol. Flui com o tempo, deixá-la fluir…
Aquilo que vi, ouvi, senti, quando acompanhei o desfilar desta sequência de memórias de tanta gente diferente, foi essa viagem pela vida, pelas emoções, pela imaginação, pelo tempo. Não pude deixar de sentir empatia com todas elas, não importa quão semelhantes ou diferentes de mim. São testemunhos de vidas autênticas e foram interpretados de modo autêntico. Não falaram da escalada do Evereste, do choque de civilizações, da luta dolorosa pela sobrevivência, de sagas e epopeias extraordinárias, nem era necessário. E isso foi talvez o mais tocante. Ver pessoas reais sendo reais no palco, interpretando-se a si mesmas, às suas memórias, partilhando generosamente o seu ser.
Para mim, ver a minha própria filha interpretar o meu papel foi ainda mais estranho e comovente. Não era eu, era apenas uma das formas de recriar as minhas próprias memórias. Sem querer, vi-me dentro e fora delas. Talvez seja sempre assim que olhamos as nossas próprias memórias, de dentro e de fora simultaneamente.
Convém sublinhar que nenhuma das intérpretes é actriz profissional ou fez uma formação académica nesta área. O seu desempenho resulta da dedicação de cada uma delas e do extraordinário trabalho de formação e encenação feito pelo formador / actor / encenador Nuno Pinheiro. O ensaio não mostra o verdadeiro impacto emocional e cénico desta peça de gente muito real. No palco, com as luzes certas, o efeito foi ainda mais surpreendente. As fotografias e o vídeo mostram apenas o ensaio num espaço muito diferente do palco em que a peça foi apresentada, o Auditório Eunice Munoz, em Oeiras.
A propósito da memória, deixo abaixo não a Chuva Iluminada (poema já muito antigo que a minha filha entrelaçou na narrativa), mas O Fio de Ariadne, um poema sobre o amor que perdura intacto na memória.
(1) Alguns textos foram escritos, na totalidade ou parcialmente, por outros autores: Mário Rui Melo, Nuno Pinheiro, São Ludovino.
Grupo de Teatro da Matraca
CARTA
(Participação na 32.ª Mostra de Teatro Amador de 27 de Março a 27 de Maio de 2018)
Ensaio de 23/4/2018
Textos
Anabela Costa
Fernanda Botelho
Isabel Leão
Isabel Sá
Luzia Ludovino
Maria João Bentes
Mia Meneses
Mário Rui Melo
Nuno Pinheiro
São Ludovino
Selma Tomásia Fernandes
Sónia Alves Barata
Susana Gomes
Teté Cruz de Carvalho
Formação e direcção de actores
Nuno Pinheiro
Encenação
Nuno Pinheiro
Elenco
Anabela Costa
Fernanda Botelho
Isabel Leão
Isabel Sá
Luzia Ludovino
Maria João Bentes
Mia Meneses
Selma Tomásia Fernandes
Sónia Alves Barata
Susana Gomes
Teté Cruz de Carvalho
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O Fio de Ariadne
Lembro mesmo aquilo que não vivi.
Vês aquele pássaro que passou a rasar sobre a minha cabeça
e me olhou olhos nos olhos como se o conhecesse desde sempre?
Nunca o vi antes, mas reconheço-o intimamente;
vem de tempos e lugares onde o fio da memória nasce
e não cessa de se enlear nos dias de todos os tempos.
É desta extensíssima ponte entre o passado e o futuro
que a memória brota de uma nascente misteriosa
e nos contempla como uma velha mãe
que nos conhece desde que nos sonhou.
Este fio imaterial com que teço este densíssimo manto de histórias
contém tudo o que sei, tudo o que sou,
mesmo o que não sei que sei,
mesmo o que não sei que sou.
Fugidios são os dias, todos os dias;
escoam-se como areia por entre os dedos
e nada fica senão as mãos vazias
tatcteando as dunas do tempo.
Grão a grão, gota a gota,
o fio da memória nasce das dunas,
teimosa incorrigível e criadora
imprime milhões de pegadas na areia;
e onde antes havia apenas deserto
brota agora a nascente e ergue-se a ponte
por onde caminhamos incessantemente.
Sabes onde conduz este fio que aperto nas mãos?
Sigo o padrão deste manto
cubro-me com o seu linho fresco
e dissolvo-me nos interstícios do fio.
Entre este nó e aquele laço,
entre esta malha e aquela teia
o tear da memória desenrola o novelo dos tempos
e tece a vida, indiferente às humanas fronteiras do tempo.
Grande mistério o desta empresa:
por mais que cresça o manto
nunca se esgota o novelo.
Olha, mãe! Teci uma colcha de estrelas
com o calor das tuas mãos e a serenidade do teu rosto.
Neste manto estão todas as palavras que pronunciaste
mesmo as que nunca ouvi.
Serão as mesmas estas que pronuncio para ti?
Ainda ontem voltei a adormecer no teu colo
e tu já não estavas aqui.
Ainda hoje me chamaste
e tu já não estás aqui.
Mas aqui, sentada ao tear,
não há ontem nem amanhã nem presente,
há o manto, há o ser que não pára de ser.
São Ludovino, 17/4/2010, 2:05 a.m.
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The Thread of Ariadne
I remember even what I didn’t live.
Can you see that bird that flew so close over my head just now
and looked me in the eyes as if he knew me since ever?
Never seen him before, but deep within I recognize him;
he comes from times and places where the thread of memory is born
and never ceases to mingle in the days of all time.
It is from this immense bridge between past and future
that memory springs from a mysterious source
and contemplates us the same way as an old mother
who knows us since she dreamed us would do.
This immaterial thread with which I weave this utterly dense mantle of stories
contains everything I know, everything I am,
even what I don’t know that I know,
even what I don’t know that I am.
Fleeting are the days, every day;
they drain like sand through the fingers
and nothing remains but empty hands
groping the dunes of time.
Grain by grain, drop by drop
the thread of memory springs from the dunes,
stubborn and incorrigible creator,
she prints millions of footprints in the sand;
and where before there was only desert
now springs the source and rises the bridge
we cross ceaselessly.
Do you know where this thread I hold tight in my hands leads?
I follow the pattern of this mantle
I cover myself with its fresh linen
and I dissolve myself in the thread interlace.
Between this knot and that tie,
between this mesh and that web
memory loom unfolds the skein of time
and weaves life, indifferent to human time borders.
Great is the mystery of this task:
it doesn’t matter how further the mantle grows
the skein never runs out.
Look, mother! I wove a quilt of stars
with the warmth of your hands and the serenity of your face.
In this mantle are all the words you uttered
even those I never heard.
Are those words the same that I speak to you now?
Just yesterday I fell asleep again on your lap
and you were no longer here.
Even today you called my name
and you're not here anymore.
But here, sitting at the loom,
there is no yesterday, no tomorrow or present,
there is the mantle, there is the being that never ceases being.
São Ludovino, 17/4/2010, 2:05 a.m.
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Carta - Teatro Matraca - Ensaio de 23-4-2018, photography by São Ludovino.
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