domingo, 20 de maio de 2018

VIVER, ESCREVER, PARTIR

ESTÂNCIA & DEIXAMENTO

     É difícil escrever sobre a poesia de Fernando Eduardo Carita (1961-2013). Não porque nunca o conheci pessoalmente, não por ser irmão de um colega e amigo de longa data (Filipe Carita) e recear não fazer a devida justiça à sua memória e obra, mas porque partiu cedo de mais, tal como o meu próprio irmão. Partiram com a mesma idade e depois de grande sofrimento, sem nunca deixarem de amar a vida, até ao último raio de sol, até à última palavra. 
     É também difícil porque a obra de Fernando Eduardo Carita é também uma espécie de biografia íntima e metafórica da sua própria vida, como talvez aconteça com todos os autores. Como se a sua poesia fosse a sua casa íntima e eu não tivesse o direito de invadir a sua privacidade nem desnudar as suas dores e alegrias. Retém-me também um certo hermetismo das suas palavras que não quero devassar com a subjectividade da minha percepção das coisas. Mas nada há de excessivamente egocêntrico na sua poesia, a não ser pelo facto de a sua poesia ser a expressão da sua visão muito pessoal e profunda do cerne da vida num universo insondável que nos abraça em todos os instantes. Em muitos momentos, o “eu” despoja-se de si mesmo e da vida, que sabia particularmente efémera, e fala já a partir de um outro mundo, tão distante e tão próximo deste, como alguém que pelas circunstâncias da vida foi forçado a saber mais do que o comum dos mortais. Com a vida e a obra que deixa honrou o privilégio de ter vivido. Lendo e respeitando a sua obra, também nós honramos o privilégio de estar vivos. 
   Transcrevo aqui quatro dos seus poemas, três já antigos, publicados no livro A Obscura Espiritualidade da Matéria (Lisboa, 1988) e um dos últimos (Lisboa, 6-7/3/2012). Todos eles estão inclusos neste livro antológico, Estância e Deixamento

A CIDADE DO JUSTO 

De mãos vazias 
deixa que o vento as atravesse e fecunde 
por causa daquele que compreende sem perguntar 
o porquê de todas as coisas 
o mundo se salvará 
basta que exista um justo para que o deus poupe uma cidade inteira. 


JARDIM SUSPENSO 

Ei-lo no encalce do cume dos pássaros mais esquivos 
de cujo voo se ausentaram outrora os deuses para criar o universo 
de onde quer que regressem teus olhos altos e infindáveis 
sempre eu verei como é frágil o mundo 
porém belíssimo jardim suspenso no orvalho das 
tuas mãos ou na maré-vazia do tempo 
reconcilia a noite com o dia as palavras com as coisas 
que o nada a ti se entrega puríssimo barro antes de ser poesia 
só alguém assim pode aos deuses servir com sua língua de 
fogo e de água 
por tua causa é agora menor a solidão de todas 
as coisas que permaneceram sem nome e sem glória. 


A ALMA POR UMA ESTRELA 

Por que não te foi dado presenciar 
o que as pedras percorrem até se tornarem vestígios de um poema 
nada do que existe desaparecerá como deve 
ainda que eu tenha de morrer só por não saber 
onde as aves pousam de noite 
sempre haverá os que vêm a este mundo 
com a alma leve que uma estrela trespassou. 

In A Obscura Espiritualidade da Matéria, Fernando Eduardo Carita, Lisboa, 1988 (também inclusa em Estância & Deixamento) 

2.0. 

Não me hei-de apagar. 

Voltarei para ser de novo levado do areal. 

Escrever como quem colabora com a sua própria dor, 
com a sua ferida mais apta a não resistir. 


Escreve. 
E voltarei então doravante para reconstituir 
o som das vagas aprisionadas dos búzios. 

Não me hei-de apagar. 

E ser consolado, dizias, 
é agora impossível, 
ser apenas uma vez mais ferido 
e mais fundo, 
do lado certo da remanescente exactidão 
das marés de um mar extinto. 

Não me hei-de apagar. 

Qual ferimento mais apropriado a ser doado? 
Qual porta legar? 
Por qual janela consentir o sol hospedar 
a sua ausência de abrigo? 

De onde estar nesse momento a ser sem descanso apenas para ti? 
Coisa escondida e logo perdida de tão bem guardada 
do lado inverso da vida. 
É missão tua 
obter a única e derradeira chave passível de servir 
na tua morte, 
à hora da tua morte recuperada ainda com vida. 

Legada também, 
sobretudo lida 
E dita até ao peso tão humano que há-de pôr, 
a flutuar as palavras à superfície mais simples das coisas. 

Não me hei-de afogar 
ao morrer. 

In Estância & Deixamento, Fernando Eduardo Carita, Lisboa, 6-7/3/2012 

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Seguem-se algumas fotografias da sessão de lançamento do livro Estância & Deixamento, Editora Licorne, Lisboa, 2017, na livraria O Pó dos Livros (lamentavelmente encerrada alguns meses depois), no dia 11 de Novembro de 2017.


Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

 Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.

Estância & Deixamento - Fernando Eduardo Carita, photography by São Ludovino.



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