quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

COREOGRAFIA DO NONSENSE

 ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS

Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll - Performance de Mímica e Dança, interpretada pelos alunos de Artes do Espectáculo - Interpretação (11.º 13) da Escola Secundária D. Pedro V, no Auditório da Santa Casa da Misericórdia de Alfragide, em 27/5/2019. Encenação e coreografia de Diogo Pereira (aluno). Fotografia & vídeo: São Ludovino. Projecto extra-escolar.

     Este foi um espectáculo sem texto, sem palavras, sem diálogos verbais, apenas diálogos de movimento, mímica, cor e expressão. Inspirado explicitamente no filme de Tim Burton, junta alguns fragmentos da narrativa de modo a permitir a compreensão do essencial. Em cada momento, notou-se sobretudo a vontade incontrolável de dançar, dando em parte continuidade ao trabalho já apresentado noutros musicais (Rei Leão e Mama Mia / Dancing Queen). 

     O nonsense, tão característico dos diálogos e das rimas de Lewis Carroll, assente sobretudo no uso da palavra, não estava lá. Permaneceu o nonsense das situações e da própria personalidade das personagens, todas seres comuns de um país maravilhoso onde o senso comum desaparece e uma nova lógica fundada no absurdo se instala.

     O que não faz sentido no mundo dos mortais enfadonhos faz ali todo o sentido. Esse é um dom da lógica de Lewis Carroll, dar sentido ao absurdo, ao impensável, ao impossível. Ou, dito de outra forma, no País das Maravilhas, a liberdade de pensar e imaginar é total, mas com regras internas, uma lógica própria, que cria um novo sentido. Apesar de todo o absurdo e de toda a fantasia, o paralelismo com o mundo comum é evidente. O mundo comum contém infinitos absurdos, tacitamente aceites, porque resultam de uma convenção, um consenso. Venerar uma rainha prepotente porque é rainha faz parte da convenção tacitamente aceite pelos súbditos, mas não, não da lógica de Alice, que vê a pessoa em vez do cargo. É também o consenso que institui o poder e a lógica do quotidiano. No País das Maravilhas passa-se exactamente o mesmo, mas num mundo ao contrário, com regras e uma lógica próprias que dão sentido ao absurdo. O Chapeleiro Louco e a Lebre de Março celebram os aniversários quando bem lhes apetece e faz todo o sentido porque todos os dias faz anos que nasceram. 

Alice in Wonderland, photography by São Ludovino.

     Este foi um espectáculo de mímica e dança, quase sempre com a música como pano de fundo e guia. A ausência de palavras exigiria uma maior visibilidade da expressão facial, mas infelizmente a luz não foi a adequada, não por responsabilidade dos intérpretes mas porque o espaço não possuía outro tipo de iluminação.

     O espaço exíguo do palco não permitiu que a coreografia se desenrolasse livremente e as próprias mudanças de cena também obrigaram a usar certos truques cénicos. Mas o mais relevante foi o facto de todo o espectáculo ser um projecto extra-escolar exclusivamente montado por um grupo de alunos. Implicou abdicar de tempos livres e coordenar as actividades escolares com os ensaios e apresentações públicas, sobretudo num momento em que já se aproximava o final do ano lectivo e ainda havia muita coisa para concluir. 

Alice in Wonderland, photography by São Ludovino.

     Por todas estas razões, é de louvar o empenho destes alunos e a dedicação que demonstraram. Muitas vezes, é quando fazem aquilo de que realmente gostam que mostram melhor algumas das capacidades escondidas. O Diogo, que encenou e coreografou, com a ajuda de todos, está de parabéns. É preciso não esquecer nunca que estes projectos só se conseguem desenvolver quando há uma vontade colectiva e todos colaboram. O figurino de cada personagem foi da exclusiva responsabilidade de cada intérprete e o resultado foi francamente bom. Não só os alunos mas também as respectivas famílias colaboraram para fazer o melhor possível. Uma vénia para todos os participantes que voluntariamente e com sacrifício pessoal contribuíram para levar à cena estes fragmentos da eterna Alice no País das Maravilhas.

Elenco / Cast

André Moura
Beatriz Martins
Carolina Teodoro
Diogo Pereira
Iris Sena
Mariana Correia
Nádia Antunes
Sofia Pedrosa 

Encenação & Coreografia
Staging & Choreography


Diogo Pereira (aluno)


Alice no País das Maravilhas - Mímica e Dança

Alice in Wonderland, photography by São Ludovino.

Alice in Wonderland, photography by São Ludovino.

Alice in Wonderland, photography by São Ludovino.

Alice in Wonderland, photography by São Ludovino.

Alice in Wonderland, photography by São Ludovino.

     A história que se segue podia passar-se num qualquer “país das maravilhas”, dos prodígios ou das quimeras… 


ONDE OS COELHOS NÃO FAZEM A TOCA

     Naquele tempo, os monarcas de Rocambólia, Turbulino e Turbulina, viram-se a braços com a contestação de uma grande parte dos seus súbditos. Até os próprios infantes, Bambolino, Bambolina, Rolica e Turilo, pareciam alinhar com os dissidentes. Era tudo uma questão de chapéus e tudo começara com a demissão do Mordomo-Mor, Serenildo Bonança. O Mordomo-Mor recusara-se a cumprir e a fazer cumprir a nova Lei dos Chapéus: Chapéus Enfáticos, Chapéus Raquíticos, Chapéus Místicos, Chapéus Gaiola e Chapéus Sem Cabeça. Por motivos que só os desígnios do supremo poder conhece, Turbulino e Turbulina decretaram que 90% da população deveria usar o Chapéu Sem Cabeça, incluindo o próprio Mordomo-Mor. 

     A mim, que estava bem longe de Rocambólia nessa altura, não me surpreendeu muito tal lei. Embora só tenha passado cinco dias naquele reino, foi mais do que suficiente para reconhecer a incorrigível tendência dos monarcas e de uma parte considerável da nação (ou não teriam tais monarcas) para tomar decisões caprichosas e completamente descabidas. Ainda me lembro bem do dia em que acordei com o arauto proferindo em alta voz, mesmo debaixo da minha janela: «… Sabei, pois, que de hoje em diante ou por tempo indeterminado, consoante a vontade do legislador e a coloração das tulipas, todos os que tiverem mais ou menos de 1,65 metro de altura terão de pagar a Taxa do Altímetro no montante de 50 rocambis e uma arroba em produtos hortícolas e fruta da época…» Mas enfim, os meus cinco dias em Rocambólia não são para aqui chamados que o tempo urge e a minha pena não está para aí inclinada. 

     Rocambólia fica Entre Norte e Sul, não no Equador, que o Equador não é um continente, é uma linha imaginária e Entre Norte e Sul é um continente bem real, rodeado por várias linhas imaginárias. É provável que Entre Norte e Sul tenha sido o primeiro continente a formar-se a partir da Pangeia e, por isso, é considerado o mais velho dos continentes, embora eu tenha certas dúvidas… Rocambólia, por sua vez, afirmam alguns, é o reino de mais provecta idade no mundo inteiro, do que duvido ainda mais, se bem que há coisas bem lamentáveis que tendem a perdurar muito mais do que as desejáveis e sensatas. Mas enfim, também não sou geógrafo nem historiador, e é bem possível que tudo isto seja verdade. O certo é que, dependendo da parte do mundo em que me encontre, os nativos desse lugar tendem a representar Rocambólia de maneiras muito diversas. Não há dois mapas de Rocambólia coincidentes. Alguns situam-na até alguns quilómetros acima do nível do mar, não no topo de uma montanha, mas algures entre as nuvens que passam a vida a mudar de lugar. Talvez, por isso, as memórias pessoais que guardo de Rocambólia às vezes parecem-me algo nebulosas e incertas e até já dei comigo a perguntar-me: “Terei eu ido realmente a Rocambólia? Ou apenas me lembro de um emaranhado das muitas representações que vi, li e ouvi dela…?” É que eu já vi, ouvi e li muito, muito mais do que seria expectável de um simplório pacato como eu. Tentei muitas vezes tomar nota das minhas observações mais curiosas. Escrevinhei, rabisquei, enchi de esboços páginas sem fim e até costumava trazer junto do meu farnel aquela papelada muito bem atada com uma fita de cetim azul. Mas acontece que em certo dia, estando eu esfomeado no meio de nenhures, me vi obrigado a comer as minhas anotações por não ter nenhum outro alimento. 

     Agora que, finalmente, disponho de algum tempo, de sossego e nada de excepcional se passa à minha volta, decidi reescrever algumas dessas anotações. Mas o que é aquilo…? Será uma sombra, um adereço de teatro, algum visitante inesperado ou talvez sejam simplesmente os meus olhos que me enganam. Talvez esteja mesmo enganado, talvez este não seja nem o tempo nem o lugar apropriado para escrever. Esta mesa, esta cadeira, esta janela, o mundo lá fora… Peço que me perdoem a distração. Mas é que passou agora mesmo por aqui um chapéu montado num cavalo branco. Por instantes pensei que, de algum modo inexplicável, a minha memória me tivesse transportado de novo até Rocambólia, embora eu nem estivesse em Rocambólia na altura em que foi promulgada a tal lei, a dos chapéus. Penso que tal aparição poderá ser um indício misterioso de que uma nova lei foi promulgada entretanto, a Lei dos Chapéus Sem Cavaleiro ou Lei dos Cavalos com Chapéu ou dos Chapéus Cavaleiros, sabe-se lá. Quem sou eu para conjecturar sobre as infinitas leis de Rocambólia? Eu chamo-me Dodgson, não Charles nem Ludwidge, apenas Dodgson, o próprio, um simples mortal. 

     Este incidente fez-me lembrar outra peripécia que li n’ A Outra História da Alice (The Other Alice’s Story) de uma jovem autora de cujo nome não me recordo ao certo; penso que era S… qualquer coisa. Havia um chapéu que passava a galope num cavalo branco, enquanto gritava: “Estou livre, livre! Livre daquela cabeça oca, cheia de ventanias e trovões. Não quero ser usado e explorado. Deve pensar que eu sou o elmo de palha de algum Quixote…” Logo a seguir, apareceu uma cabeça, completamente desnorteada, gritando: “Alguém me salve, alguém me ajude a encontrar o meu chapéu! Desapareceu ontem à noite, sem qualquer explicação e levou-me o cavalo… Não consigo pensar, sinto a cabeça vazia, logo eu que…” Um Chapéu Que Guarda ou Lê Pensamentos, pensei. Mas também se podia dar o caso de haver Chapéus Que Roubam Pensamentos… Que ideia assustadora! Como se isso não bastasse, mais adiante, a cabeça desnorteada cruzou-se com um pudim de gelatina verde que fugira da cozinha da Rainha de Copas antes de ser devorado. Fuga nada surpreendente. Toda a gente sabe como a rainha adora pudins de gelatina, sobretudo verdes ― todos tremem como varas verdes na sua presença. Isso é o que ela acha mais adorável e saboroso nos pudins de gelatina. 

     Pois, bem sei que me desviei de novo do cerne da questão ― a Lei dos Chapéus em Rocambólia e a perturbação que ela gerou ― mas não perdi o fio à meada pois todos estes fios fazem parte do mesmo novelo. Por ora, deponho as minhas dúvidas e analogias e entro no miolo deste enredo: a Lei dos Chapéus e os dias turbulentos que se viveram por causa dela. 

     Em primeiro lugar, devo esclarecer que Serenildo Bonança, o Mordomo-Mor, não se demitiu, foi demitido no mesmo instante em que principiava a manifestar a sua oposição à lei. É bem provável que ele próprio se tivesse demitido mas não teve tempo. Nem sequer essa réstia de dignidade lhe deixaram. 

     A permanência de Serenildo no cargo era há muito questionada pelos sete conselheiros e por uma grande parte da população. Na verdade, opunha-se a quase todas as leis promulgadas e era abertamente crítico em relação aos populares monarcas, os mais populares na história de Rocambólia. Que o abuso, a injustiça e a arbitrariedade fossem tão bem aceites pelos súbditos seria o mais surpreendente em qualquer lugar, mas não em Rocambólia. Ali reinava um festivo espírito masoquista. De vez em quando, levantava-se aqui e ali um burburinho, depois vinham Turbulino e Turbulina na sua majestosa carruagem, atiravam sobre a multidão uns balões e uns pedaços de pão e, misteriosamente, o motim terminava. Muitas vezes eram os próprios cabecilhas da insurreição os primeiros a vir para a frente, faziam grandes vénias aos monarcas, gritavam-lhes “vivas” e juravam-lhes fidelidade eterna. Às vezes até havia algumas cabeças que rolavam, não por ordem dos monarcas, mas porque os próprios amotinados desembainhavam a espada e zás, assim demonstravam o fervor das suas convicções. Quando os monarcas faziam rolar cabeças, faziam-no com mais pompa e circunstância. Montavam um grande espectáculo numa das praças principais, vestiam as indumentárias mais vistosas e sorriam amenamente cada vez que uma cabeça rolava e a multidão gritava de euforia. 

     Como Serenildo nem chegou a ter tempo de justificar o seu desacordo com a lei dos chapéus, fez o que já antes fizera muitas vezes, sempre a coberto do anonimato. Desta vez, foi ele próprio por todas as praças pregando aos transeuntes e afixando folhas volantes nas estátuas, nas esquinas e nas tabernas. Só que desta vez não foi vestido de Robim dos Bosques, de maltrapilho ou de ilusionista lunático. Foi assim mesmo como era, com a sua cara de Serenildo e a longa capa azul que usava todos os dias. Acrescentou apenas um lampião para lhe iluminar o caminho, quer nas noites escuras quer nos dias mais soalheiros. Assim sendo, era impossível confundir-lhe a identidade: «É ele, é Serenildo, o maldito Mordomo-Mor! Desaparece, maldito traidor ou ainda ficas sem cabeça!» gritavam alguns. Serenildo levantava o lampião e fitava o rosto que vociferava, tal como Diógenes em busca de um verdadeiro homem entre a multidão. E que via Serenildo sob o foco de luz do seu lampião? Uma máscara de papel com um esgar rasgado, igual a todas as outras máscaras de papel, de latão, de ouro que vociferavam pelo reino fora. As máscaras nunca se revoltavam contra Turbulino e Turbulina, faziam-no em nome de suas majestades, mesmo sem que lho pedissem. À luz do lampião os fios que lhes prendiam os membros e a cabeça eram bem visíveis. Só não se via o palco nem o mestre dos fantoches. 

     Aqui e ali, por entre as gentes que passavam, Serenildo vislumbrava um ou outro rosto mais atento, uns passos que se detinham, um silêncio de concordância, mas nem uma só voz se unia à sua. E Serenildo prosseguia: «É o vosso silêncio cúmplice, a vossa cegueira e cobardia que fizeram desta terra um antro de parasitas e de corruptos. Vendeis a alma por migalhas, ficais satisfeitos com a ignorância em que viveis mergulhados e não perguntais sequer se há mais mundo do que este, outras formas de governar e de viver.» Serenildo não parecia um louco, sabia muito bem o que dizia e por que o dizia. Mas era tratado como um louco e perigoso. 

     À medida que os dias passavam ia vendo na prática como é que a Lei dos Chapéus estava a ser implementada com a cooperação de todos ou quase todos. Alguns abraçaram os seus chapéus com todo o entusiasmo. Os que usavam os Chapéus Enfáticos, recobertos de diamantes e esmeraldas, rebrilhavam de vaidade, enchiam os palácios de convivas e festejavam a sua própria supremacia, espezinhavam com vigor e náusea os lacaios, vergados pela gratidão de servir tais sumidades. E quando se cansavam dos palácios e dos cortejos, passavam longas temporadas em caçadas inúteis e sangrentas. Lacaios e presas, todos cobertos com os seus Chapéus Raquíticos anuíam ao sarcasmo e às balas e riam-se eles próprios de si mesmos enquanto pereciam aos pés dos seus amos e caçadores. Além destes havia muitos mais que usavam também os Chapéus Raquíticos e por cima deles os Chapéus Gaiola e por cima de todos os Chapéus Sem Cabeça: os camponeses, os artesãos, os pescadores, os mineiros e todos os que faziam trabalho manual. Como é evidente, os Chapéus Raquíticos transformavam os seus utilizadores em débeis criaturas a quem restava apenas a força necessária para cumprir as suas obrigações e nenhuma para reflectir, questionar ou protestar. Os Chapéus Gaiola faziam descer grades em torno daqueles que, mesmo assim ousassem, executar algum movimento não programado, em suma, era o chapéu da rotina perfeita. 

     Os Chapéus Místicos estavam reservados apenas ao clero, aos filósofos e aos artistas, puros eufemismos, não os chapéus mas os filósofos e artistas. Eram todos membros da elite real e a sua função consistia simplesmente em roubar as ideias que, apesar de todas as cautelas, pudessem escapar de algum chapéu. Depois de devidamente moldadas e remodeladas, essas ideias eram transformadas em ícones que povoavam as praças ou livros lustrosamente encadernados que forravam a biblioteca real e meia dúzia de bibliotecas privadas. Eram como uma paisagem inerte já que raramente eram abertos. A única coisa dinâmica e viva naqueles livros eram os padrões de cor conseguidos com uma certa organização das lombadas. Os únicos que continham algum tipo de filosofia eram pequeníssimos livros que eram distribuídos gratuitamente a todos os súbditos. Era uma espécie de catecismo, a súmula simplificada da História e da Ordem Eterna de Rocambólia. Esses livrinhos apareciam todos assinados por Turbulino e por Turbulina embora não se soubesse ao certo quem era o autor. Os Chapéus Místicos tinham sobretudo uma função aparente, ou melhor, tinham o condão de confundir aparências e realidade. Aqueles que os usavam, independentemente dos absurdos que proferissem, eram acreditados como sábios vindos directamente da casa dos deuses. Por isso, eram carregados em carruagens de vidro cintilante, rodeados por uma luz tão intensa que os tornava quase invisíveis. Ofuscados por tal aparato, os ouvintes bebiam cada palavra como se gotejasse directamente de alguma nascente divina. Estes oradores eram muito úteis aos monarcas. Se o medo da dor e das penas humanas falhava, lá vinha o medo das penas infernais e a esperança de começar finalmente a viver mais além, depois de já terem partido deste mundo. Os utilizadores destes chapéus pontificavam em templos, caminhavam por tapetes de rosas, usavam auréolas douradas e falavam com voz melíflua. Eram taças de mel para apanhar moscas. E as moscas caíam lá dentro aos milhares. Depois de caírem, raramente se levantavam e saíam. Eram presas pegajosas e felizes, tão pegajosas que, às vezes, mesmo sem grande esforço, atraiam mais moscas, moscardos e vespas. E a taça parecia nunca estar cheia. Os mais dogmáticos continuavam a falar do enxame tresmalhado, das asas que não caíram, dos ferrões que não foram amputados, da ingratidão dos que não queriam alimentar-se do mel da salvação. Como é evidente, caro leitor, estes chapéus não eram místicos mas eufemísticos. 

     Os Chapéus Sem Cabeça eram o corolário perfeito da ordem eterna que vigorava em Rocambólia. Depois de tantos limites e leis, na verdade até seriam desnecessários porque pouco restava para controlar. Mas os monarcas de Rocambólia sempre tinham desconfiado da diferença; por pequena que fosse, poderia ser a semente de alguma mudança que depois não se pudesse reverter. Por isso, os Chapéus Sem Cabeça vinham assegurar sem margem para dúvidas que ninguém seria capaz de pensar pela sua própria cabeça. Claro que os amáveis e argutos leitores já terão compreendido que não há sistemas perfeitos e toda a ordem tem as suas falhas, como adiante veremos. 

     Está, portanto, explicado por que é que 90% da população usava os Chapéus Sem Cabeça; eram usados em acumulação com outros pela maioria da população para que absolutamente nada falhasse. Só detentores de algum grau académico (quase sempre fictício porque todos os graus académicos eram honorários) ou de algum cargo de relevo no quadro institucional os usavam em exclusivo. O Mordomo-Mor era uma dessas pessoas. E quem ficava de fora destes chapéus? Apenas os monarcas, a família real e os seus servidores indefectíveis, aqueles que aderiram à sua causa por convicção inabalável e tinham exactamente os mesmo interesses e benefícios. 

     Numa teia de interesses tão bem estruturada, não é de admirar que Serenildo quase não tivesse ouvintes e simpatizantes e, se os tinha, mantinham-se em silêncio e resignados. Os alinhados, por seu turno, continuavam a invectivá-lo todos os dias e reivindicavam a sua eliminação. Consideravam-no uma ameaça para as suas vidas tão meticulosamente dispostas em todos os detalhes; ele era um factor de instabilidade num reino de ordem absoluta. Muitos pediram audiência a Turbulino e exigiram a decapitação de facto. Se se recusava a usar o Chapéu Sem Cabeça (que tinha um efeito semelhante à decapitação), então tinha de ser decapitado por outros meios. Turbulino concordou mas hesitou sem explicar os motivos das suas dúvidas. Foi o próprio Serenildo que, nas suas pregações, acabou por revelar os motivos, se bem que poucos o entenderam cabalmente. 

     Serenildo falou de hereditariedade e linhagens, da preservação das espécies e castas puras, de darwinismo social (eu sei, caro leitor, isso são coisas do futuro), de ciência autêntica e de ciência programada, de cientistas e executores de vontades, de fins e meios, de propaganda e hábito, de manipulação e aceitação, de liberdade e controlo, de criação e repetição, de regimes e ideologias, de sistemas económicos e engenharia financeira, de engenharia social e de engenharia do consentimento… Eu sei, atentíssimo leitor, isto também são coisas do futuro; mais uma razão para me entenderes cabalmente, melhor do que qualquer um destes habitantes de Rocambólia e do que eu mesmo. 

     As declarações de Serenildo culminaram com as revelações sobre a família real e a criação dos chapéus, alegremente usados por quase todos. Ao longo dos séculos, os regimes e as ideologias tinham mudado muitas vezes, assim como os governantes e muitos detalhes da organização estrutural e funcional do reino. Repúblicas e monarquias tinham-se sucedido com a mesma perfeição com que uma roda dentada encaixa noutra e continua o movimento há muito iniciado. Na superfície e no estilo muito tinha mudado, mas os governantes faziam todos parte de uma teia consanguínea que incluía apenas uma dezena de famílias. Mesmo as revoluções mais sangrentas e as rupturas mais radicais na superfície tinham dado continuidade às velhas linhas hereditárias. 

     No passado, houvera muitos outros Turbulinos e muitas outras Turbulinas, uns republicanos, outros monárquicos, uns turbulinistas outros turbulinários, uns laicos outros sacros, mas todos pertencentes a uma das dez linhagens dominantes. Alguns chamavam-se precisamente Turbulino e Turbulina, e o povo via neles messias e desejados, outros tinham muitos outros nomes e em cada nome o povo tentava vislumbrar uma afinidade recôndita com o seu próprio nome e os seus antepassados. Esse é um dos motivos por que Rocambólia está cheia de nomes como Lino ou Lina, Bulino ou Bulina, Turlino ou Turlina, Burlino ou Burlina, Brut, Brat ou Brit, Bino ou Bina, Ulino ou Ulina… e tantos outros. Mas ninguém se chama exactamente Turbulino e Turbulina, além dos próprios; esses nomes são propriedade exclusivamente sua, dos seus antepassados e dos seus descendentes. Todos os cruzamentos eram feitos dentro das possibilidades que as dez linhagens ofereciam incluindo a bastardia endémica. 

     E logo da multidão vinha uma voz de escárnio: «E ainda dizes tu que as pessoas é que fazem a diferença! Se assim fosse, tudo seria sempre diferente, pois como tu próprio afirmaste, as pessoas foram mudando sempre…” 

     «As pessoas, sim, mudaram, mudam constantemente», dizia Serenildo «mas não o seu sangue e muito menos as suas consciências. Os propósitos, os actos, os meios e os fins não mudaram. O fim continua a ser o mesmo: a sobrevivência e o bem-estar das linhagens dominantes.» 

     Serenildo ainda pensou que no dia em que revelasse toda a trama que se encontrava sob a produção e propósito dos chapéus haveria uma verdadeira epifania, uma onda de luz penetraria naquelas mentes e tudo começaria, finalmente, a mudar. 

     Num dia em que os próprios monarcas se passeavam por entre a multidão, confortavelmente acomodados entre o veludo de uma carruagem aberta, Serenildo decidiu interpelar Turbulino. 

     «Dizei agora, majestade, revelai ao vosso povo quem criou os chapéus e como o fez. Dizei-lhe qual o propósito das vossas infinitas leis, dizei-lhe por que têm todos, excepto vós e a vossa linhagem, de usar o Chapéu Sem Cabeça?» 

     Turbulino levantou-se, irado, pronto a ordenar aos guardas que decapitassem Serenildo. Mas conteve-se, entre um sorriso de desdém e a falsa condescendência dos prepotentes: «Fala então! Quero ver se consegues convencer alguém com as tuas patranhas…» 

     «Vou contar-vos como tudo se passou. Há cerca de um ano, o vosso venerado rei queixou-se ao Conselho Real, de que fiz parte juntamente com sete conselheiros, do elevado número de dissidentes que ultimamente se tinham manifestado. Entre os dissidentes, estavam os próprios filhos de Turbulino. Achou ele que decapitar os próprios filhos, como fazia habitualmente a todos os outros dissidentes, poderia ter algum efeito nocivo na simpatia popular que lhe é indispensável. Na verdade, nem havia muitos mais dissidentes do que o habitual, não mais de meia dúzia em todo o reino; e esses foram de facto julgados sem apelo nem agravo e rapidamente executados. Os filhos de sua majestade recusaram-se a comparecer em mais uma festa justiceira. E essa foi realmente a gota de água. Como compreendereis ― ou compreenderíeis se não usásseis esses chapéus ― se os próprios filhos se recusavam a participar e a continuar estes procedimentos, isso significava que o futuro das linhagens dominantes poderia estar em causa e, consequência inevitável, a ilusão de poder eterno poderia estar a chegar ao fim. Sua majestade viu-se perante um grave dilema: ou eliminava os seus próprios filhos ou fazia-os mudar radicalmente. Por outras palavras, tornava-os imagens fiéis, não de si mesmo, mas dos seus súbditos mais fervorosos. Mais tarde, pensaria num método para os tornar iguais a si mesmo e assim preservar o mundo perfeito em que vivia. 

     Perante o Conselho Real, Turbulino exigiu que lhe trouxessem todos os cientistas que havia no reino. Tal como os filósofos não eram exactamente filósofos, os cientistas também não eram exactamente cientistas, eram executores técnicos de vontades. Nada que surpreenda num reino onde nada é o que é suposto ser. 

     Aos cientistas, Turbulino disse que precisava de criar métodos eficazes para manter a ordem sem desordem, isto é, sem muito sangue, sem margem para falhas e com extrema rapidez, de modo que ninguém pudesse ter tempo para pensar e reagir. 

     Gracejando, disse a sua majestade que para conseguir tal propósito teria de colocar na cabeça de cada pessoa um chapéu que controlasse tudo o que cada um pensava e fazia. E acrescentei que, certamente, esse não era um chapéu que eu quisesse usar e onde certamente nenhum coelho quereria fazer a toca. Eu gracejei, e com óbvio sarcasmo, mas sua majestade achou que era uma excelente ideia para consolidar o sistema vigente e ordenou que se legislasse e se pusesse imediatamente em prática. Nunca lamentei tanto uma graça que tivesse saído da minha boca. 

     Logo no dia seguinte, os cientistas técnicos encetaram o trabalho. Eram chapeleiros, alfaiates, operários têxteis, tintureiros, mecânicos, ferreiros, designers publicitários, uma dezena de juízes e dois místicos psicólogos. A todos foi dado o epíteto de cientistas e um pin com a efígie de Turbulino para usar na lapela. Os ferreiros e os mecânicos construíram três grandes máquinas para auxiliar o trabalho manual dos artífices. É evidente que nenhuma vontade real se pode consumar sem os seus artífices. Sem eles nem sequer haveria poder de espécie alguma. 

     Ao fim de uma semana já tinham produzido muitos milhões, mais do que a população total de Rocambólia. Turbulino queria criar um excedente para os visitantes estrangeiros usarem mal cruzassem as fronteiras do reino e para o caso de haver algum extravio ou alguma súbita explosão demográfica. Como sabeis, todos os vossos filhos, desde o instante em que nascem, usam agora uma das cinco espécies de chapéus. Logo que atingirem os dez anos, passaram a usar também o maligno Chapéu Sem Cabeça… a menos que façais alguma coisa para os salvar de tal destino.» 

     Por breves instantes, Serenildo viu minúsculas gotas de luz atravessarem a multidão como uma onda tímida. Provavelmente, Turbulino também viu as gotículas de luz, porque se levantou e gritou: «Não te atrevas, maldito! Ou em breve ficarás sem…» Por precaução, calou-se e não quis fazer muitas ondas ele mesmo. Toda a gente sabe o que acontece quando uma onda choca com outra onda. Quem sabe se outras vagas viriam, maiores e mais fortes. Pensou em defeitos de fabrico e nas filas de artesãos encostados a um muro negro enquanto ele ordenava ao pelotão: “Disparar!”. 

     Serenildo continuou com uma nova força na voz. 

     «No último dia da produção, Turbulino convocou os conselheiros-legisladores e ditou-lhes a Lei dos Chapéus que todos conheceis. Três dias depois, preparava-me eu para apresentar a minha demissão, quando fui demitido por sua majestade. Antes de abandonar o palácio real ainda recordei a Turbulino que aprendera muito com os cientistas técnicos, aprendera a confeccionar chapéus de todos os modelos previstos, mas também outros tipos de chapéus, cachecóis, jóias e outros adereços. Eu próprio criara modelos de chapéus impensáveis em Rocambólia. Mostrei-lhe apenas um exemplar que tinha já concluído: um Chapéu Livre Pensador que só permitia ao seu utilizador dizer a verdade, mas também lhe permitia ver as falsidades que outros dissessem; aliás permitia até ler qualquer pensamento. Experimentei-o ali mesmo num dos lacaios mais submissos de sua majestade que costumava servir o chá e os bolinhos durante as reuniões do Conselho Real. O pobre coitado não conseguiu resistir a tal revelação e desatou a praguejar contra Turbulino. Nesse momento, sua majestade empalideceu, arrancou o chapéu da cabeça do lacaio e lançou-o na lareira. De imediato, o pobre servidor voltou a ser tão submisso e obtuso como antes, mas Turbulino não voltou a ser o mesmo. Começou a ser minado por múltiplos medos e pesadelos, e nunca mais andou sozinho, mesmo dentro do seu palácio. Além disso, criou a 

     Comissão de Fiscalização da Qualidade Real dos Chapéus para evitar qualquer adulteração, contrafacção ou substituição dos chapéus obrigatórios. 

     Eis, pois, o motivo pelo qual Turbulino me tolera e prefere que eu seja simplesmente tomado por louco. Teme que, mesmo que me elimine, algum dos meus poucos amigos, que guardam em locais recônditos e desconhecidos muitos dos chapéus que já criei, venham destruir por completo a sua portentosa farsa. 

     Nunca cheguei a usar o Chapéu Sem Cabeça que me foi atribuído e desde então não tenho feito mais do que tentar revelar-vos um pouco deste mundo perfeitamente ordenado em que viveis. Passou apenas cerca de um ano, mas parecem milénios. Tanto se perdeu nesta terra onde já se tinha perdido tanto! 

     Também eu pertenço a uma das dez linhagens dominantes, mas sou apenas um bastardo como tantos outros. Aliás, nada há de puro nestas linhagens, nem no sangue que lhes corre nas veias nem nas raquíticas consciências que mirraram por completo.» 

     Nesse momento, uma nova onda de gotículas de luz percorreu as cabeças da multidão, muito maior do que a anterior. Muitas cabeças se descobriram, chapéus voaram pelos ares, outros foram pisados e inutilizados. Um burburinho crescente levantou-se cada vez mais alto até que, de entre o ruído algumas vozes se tornaram audíveis. Turbulino ouviu-as distintamente, entraram-lhe pelos tímpanos e foram espetar-se direitamente nos neurónios, também eles gélidos e perfeitamente organizados até àquele momento. Uma dor aguda desceu-lhe até ao peito mas não o matou. O medo não mata os poderosos, apenas os torna mais ferozes, mas também mais espertos e dissimulados. Com ar complacente, voltou-se para Serenildo e disse: «Pobre coitado, está louco, completamente louco. Seria um crime decapitá-lo. A minha imensa misericórdia concede-te o perdão… desde que…» O resto das suas palavras ficou completamente inaudível entre a algazarra de uma parte da multidão que gritava vivas histéricos ao generoso benfeitor e dirigia apupos e risadas de escárnio a Serenildo. Por entre a enxurrada, Turbulino foi saindo sorrateiramente, abandonou a praça na sua carruagem cintilante aspergindo bênçãos e migalhas de pão. Antes de a carruagem desaparecer no fundo da praça, Turbulino ainda viu uma nova onda de gotículas de luz. Vinha-se espraiando na sua direcção, lenta, muito lentamente. 

     Por entre os uivos frenéticos e os risos, Serenildo ainda tentou concluir a pregação daquele dia. Também ele vira a nova onda, mais forte e cintilante do que as anteriores. Sentia-se mais vivo e mais lúcido do que nunca. 

     «Não uso chapéu algum que eu não tenha escolhido nem creio que os chapéus devam ser ferramentas perigosas ao serviço de alguma vontade prepotente. Nem sequer o meu coelho de estimação usa chapéu, excepto um vulgar chapéu de palha com dois buracos por onde saem duas orelhas atentas e sábias.» 

     Não te conto, curioso leitor, o que sucedeu depois. Essa parte da história só tu, com a tua habitual determinação, a poderás adivinhar ou descobrir pelos teus próprios meios. O que te posso garantir é que não precisas de chapéu algum para o fazer. 

São Ludovino, 2/5/2020

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