Adaptação da farsa trágica A Birra do Morto de Vicente Sanches, interpretada pelos alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo – Interpretação (10.º 13), no Auditório Chaves Santos da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 14 de Junho de 2019. Encenação de Victor Sezinando. Fotografia, texto & vídeo: São Ludovino.
Reencenar repetidas vezes o mesmo texto implica reinterpretar, procurar novos ângulos na acção e na interacção entre as personagens, no contexto envolvente e na psicologia das personagens. O pobre mortal, que se recusa a morrer, n’A Birra do Morto, não é uma personagem monolítica e acabada, não é apenas o grito inglório do mortal contra a morte a que não pode escapar. Não o foi nesta nova encenação de Victor Sezinando. Nesta encenação, a dimensão social da personagem e as idiossincrasias que daí resultam, como um padrão de conduta, ganharam relevo e talvez até maior comicidade.
A Birra do Morto, photography by São Ludovino.
Este mortal julga-se de “classe superior”, trata todos em seu redor como inferiores e teima em fazer vingar os seus privilégios junto de todos e da própria morte. O tom afectado da voz e a pose pretensiosa torna-o mais ridículo, mas também mais ingénuo. A sua máscara é uma ilusão em que só ele acredita. O espectador, em vez de se solidarizar com o seu destino, ri-se da sua vaidade, das suas queixas, reivindicações e protestos, da sua ilusão de intocabilidade. A pose e o tom do discurso tornam-se tão artificiais, afastam-se tanto do genuíno sofrimento humano, que a personagem parece reduzir-se de facto a uma mera personagem, deixa de ser um ser humano com emoções profundas e autênticas. O pobre mortal morre, antes de mais, porque finge em excesso; o ser humano e social que é (representa) reduz-se a si mesmo a mera personagem. Não conquista a empatia ou a compaixão, desperta antes o sentido crítico e o riso. Só na cena de maior intimidade com a “viúva” parece aflorar alguma emoção genuína, mas por pouco tempo, porque logo se percebe que o seu medo de partir só e viver só a eternidade não é apenas uma natural manifestação de medo; é a reivindicação de um direito que julga ter, o direito de decidir sobre a vida (e a morte) dos outros. Se ele parte, ela terá de partir também, se ele perde o privilégio de estar vivo, ela terá de perdê-lo também.
Outros aspectos do contexto social e profissional das personagens ganharam também novas nuances. As “carpideiras” nem sequer choram lágrimas de crocodilo, suspiram de desejo quando vêem o agente funerário todo janota e queixam-se sobretudo do curso normal da Natureza; um corpo morto, degenera, exala odores, mostra a sua insignificância e finitude de forma muito sensorial. As esbeltas e elegantes senhoras não suportam tais manifestações da Natureza e queixam-se permanentemente. Vestem-se como gente que tem posses mas não trabalha e o tom das suas observações revela a mesma crença na ilusória superioridade que o morto também pensa ter. Vieram apenas para vê-lo partir, para se pavonearem e terem tema de conversa. Mas são também estes seres fúteis e presunçosos que relembram ao pobre mortal que, doravante, terá apenas uma noiva e companheira, a própria morte. Este decreto saído da boca de tais criaturas soa extremamente sádico e cínico, não resulta da indignação ou revolta daqueles que o morto terá explorado ou ofendido mas do simples prazer em demonstrar a vã superioridade dos vivos sobre os mortos.
A Birra do Morto, photography by São Ludovino.
E deste modo, o absurdo subjacente a este texto é enfatizado e revela-se quase desnudado tal como o pobre mortal que surge em palco apenas de cuecas e uma camisa branca. Nada importam as aparências ou os “regulamentos”, nem perante a morte nem perante as vãs convenções sociais. Os guardas que são chamados para meterem à força o mortal no caixão não parecem ter qualquer autoridade, nem sequer sobre o falecido; parecem marionetas que se divertem infantilmente com o poder dos “regulamentos” e se distraem constantemente com detalhes que nada têm a ver com as suas funções cívicas. Ao longo de toda a peça parece não haver uma única personagem que possua uma completa sanidade ou um carácter exemplar. Não existem mortais perfeitos. As virtudes são uma ficção e a única verdade é a própria morte.
Com esta lição final, este texto só podia ser mesmo uma “farsa trágica” (como o autor a classificou) que traz com o riso um sabor amargo e um espelho quebrado do mundo. O pobre mortal bem quer restaurar o espelho e rebobinar o tempo ou fazê-lo parar, mas não adianta. Por mais que olhe, a imagem está quebrada, já não reflecte a vida, apenas o ser e a sua mortalidade.
Tanto o encenador, Victor Sezinando, como os jovens intérpretes merecem um forte aplauso. Os intérpretes foram excessivos quando deviam ser para dar corpo à caricatura e revelar o ridículo da arrogância humana. Foram contidos e quase líricos quando foi necessário lembrar que tanto a vida como as emoções humanas (a dor, a perda, o amor) não são uma farsa, mas podem tornar-se uma farsa quando não são genuínos.
Mais uma vez, os detalhes fizeram a diferença e ganharam relevo. Um defunto de “classe superior” poderia aparecer pomposamente vestido, mas apareceu quase despido; e teria de ser mesmo assim, porque uma das manifestações da “birra do morto” consiste precisamente em recusar vestir a mortalha. A quase nudez, que pavoneia ostensivamente serve também o propósito de evidenciar a igualdade de todos na condição de mortais e ridicularizar a vaidade do falecido que, por ser de “classe superior”, pensa não precisar de adereços para continuar a ser superior na morte tal como pensava ter sido na vida.
O agente funerário, tal como qualquer negociante, apresenta-se feliz e sorridente com mais uma possibilidade de lucro, fazendo até uma pequena campanha de marketing junto dos espectadores, que olha como potenciais e futuros “clientes”.
As carpideiras apresentam-se excessivamente bem vestidas, como se fossem a uma festa ou baile. Essa aparência festiva denúncia desde logo a hipocrisia dos seus lamentos. A forma como advertem o falecido sobre a sua verdadeira condição, não de mortal mas de efectivamente morto, chega a ser perturbadora. Elas são a indiferença da morte perante a fragilidade e as ilusões humanas.
A empregada do falecido, vestida como uma “coelhinha da Playboy”, que atrai todos os olhares e faz salivar os guardas, acrescenta uma nota de cabaret vintage e faz esquecer a real situação; os prazeres efémeros da vida como uma espécie de antídoto, igualmente efémero, para a implacável realidade da morte. Ninguém quer pensar na morte, mesmo quando está perante os seus olhos, quando pode mergulhar, mesmo que por breves instantes, no doce esquecimento das sensações.
O médico que assina a certidão de óbito manifesta extrema indignação pelo facto de o falecido ter tentado suborná-lo e lhe ter pedido para o considerar vivo e não morto. A efectivação da morte é também legislada; não basta que o coração pare de bater, é preciso que um representante da ciência e da lei o declare morto… e se a ciência e a lei têm tal poder, então por que não teriam também o poder de decretar a existência de vida, sobretudo se o falecido for de “classe superior”…?
A Birra do Morto, photography by São Ludovino.
O cenário escuro e simétrico centrou-se no caixão, colocado entre duas filas de cadeiras destinadas aos participantes no velório. Um cenário de facto tétrico e deprimente. Mas se sobre o próprio caixão se desenrola uma luta desigual entre o defunto e os guardas, se o mesmo defunto, sentado dentro do caixão, tenta seduzir a mulher e convencê-la a “morrer” com ele, se o padre que preside às cerimónias coloca o livro sagrado nas próprias mãos do morto como se fosse um suporte de leitura (púlpito) e dá murros na tampa do caixão quando o morto tenta abri-lo, então o cenário tétrico torna-se também absurdo e hilariante, a condizer com o espírito desta “farsa trágica”.
Parabéns ao encenador, Victor Sezinando, pela teimosia e tenacidade, por mostrar que a encenação e a interpretação são de facto uma segunda vida dos textos; de cada vez que é interpretado ganha uma nova vida que nunca é igual à anterior. Vénias e aplausos para todos os participantes; fizeram-nos rir, pensar e olhar para dentro com olhos humildes e críticos.
Encenação
Victor Sezinando
Interpretação
Alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo da Escola Secundária D. Pedro V - Lisboa, 14 de Junho de 2019
Este mesmo texto já me suscitou antes outras reflexões e a escrita de outros textos. Desta vez, a constante evocação dos “regulamentos” e o pretensiosismo do mortal que se recusa a morrer fizeram surgir de imediato na minha mente um regulamento ao gosto dos mortais de “classe superior”.
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Regulamento de Etiqueta, Protocolo, Bom Gosto
e Aparências Várias
Enquadramento Geral
Artigo 1
A decisão de morrer ou não, quando, onde e como fica reservada exclusivamente aos membros da classe superior dos viventes, a saber: gente de bem, gente fina, gente de sangue azul, beneficiários de nepotismo, amigos e parentes de todos os anteriores.
Artigo 2
A classificação e organização dos viventes em classes cabem exclusivamente aos viventes das classes superior e arqui-superior. São eles os autores deste regulamento e de todos os regulamentos que regem todas as classes.
Artigo 3
A principal finalidade do trabalho incansável e imprescindível da classe arqui-superior é a manutenção do estatuto natural, congénito, hereditário ou adquirido, no estrito respeito por este regulamento e pelos privilégios legítimos da classe superior e arqui-superior.
Artigo 4
Este regulamento não admite dúvidas ou objecções, protestos ou reivindicações por parte de qualquer classe, excepto a superior, pois tudo o que nele se contém é o produto da máxima sapiência, justiça e filantropia de classe.
Artigo 5
Por serem redundantes todos os artigos que poderiam especificar e delimitar os privilégios das classes superior e arqui-superior, por serem axiomas inquestionáveis, a Constituição e Regulamento do nosso excelso sistema especifica apenas os aspectos formais de algumas situações práticas e contextos recorrentes. Servem os seguintes artigos para sublinhar a importância dos interesses e conveniências, das aparências, do bom gosto, da etiqueta e do protocolo que conferem às classes superiores a sua máxima superioridade.
Regulamento Superior
Capítulo I
A Essência da Vida Superior
Artigo 1 e único
O vivente de classe superior tem sempre razão, vivo ou morto, e só ele pode determinar se está vivo ou morto. Evidências externas constituem uma irregularidade absolutamente inaceitável. O Regulamento serve apenas para confirmar a superior verdade de cada vivente superior, não sendo necessário invocá-lo para determinar a verdade dos factos superiores.
Capítulo II
Interacção Social e Laboral
Artigo 1
O vivente de classe superior não pode ser acusado de qualquer crime, pois, por definição apenas comete lapsos inocentes e é sempre um filantropo por natureza e por excelência, financiado e subsidiado pela classe arqui-superior e protegido pela Constituição e pelo Regulamento do nosso sistema infalível. Qualquer acusação será, pois, refutada e punida como vil difamação.
Artigo 2
O vivente superior sabe sempre o que quer em cada um dos seus caprichos. A obrigação de adaptação, cedência ou resignação nunca lhe cabe a si mas a quem, por dever legítimo e indeclinável, o deve servir.
Artigo 3
Mesmo que o vivente superior pareça não ter razão ou não estar certo, deverá ser sempre desculpado e defendido. Acusar é sempre uma prerrogativa exclusiva do vivente superior. O vivente inferior só pode limitar-se a obedecer ou, se assim lhe aprouver, poderá perecer do modo que entender. Esta é, aliás, a única prerrogativa inquestionável do vivente inferior.
Artigo 4
O vivente da classe superior pode julgar e avaliar livremente e com total autoridade os viventes de todas as outras classes, excepto os da classe arqui-superior. Nesse juízo pode usar de todos os critérios que entender adequados, incluindo a subjectividade e a arbitrariedade, que são um exclusivo da sua classe.
Artigo 5
Todo o poder da classe superior é superior por definição, por insignificante que pareça, pois, por ínfimo que seja esse poder, confere-lhe sempre o direito a usá-lo discricionariamente como poder absoluto e todas as suas decisões são naturalmente irrevogáveis. Em circunstância alguma, podem os viventes das classes inferiores classificar este uso legítimo do poder como corrupto, fraudulento ou despótico.
Artigo 6
Os bens de cada vivente superior pertencem exclusivamente a si, quer os tenha obtido por herança ou adquirido ao abrigo do Regulamento e Constituição do nosso sistema. Os viventes das classes inferiores nada possuem em definitivo excepto aquele pedaço de terra em que hão-de jazer, mais dia, menos dia. O dever inelutável dos viventes das classes inferiores é, pois, contribuir diariamente para a riqueza e o bem-estar da classe superior.
Artigo 7
Só aos viventes da classe superior é permitido viver de aparências. Os subalternos estão absolutamente proibidos de usar máscaras, verniz, adereços preciosos ou qualquer indumentária resplandecente. Os viventes de classe inferior também não podem usar um discurso elaborado ou diminutivos terminados em “ecas”, “ocas” ou “ucas”. Não podem frequentar lugares selectos, desempenhar cargos de relevo ou qualquer outra tarefa que, de uma ou outra forma, possam afectar e prejudicar os viventes de classe superior. Deste modo, evita-se o terrível perigo de se confundir um ser superior com um ser inferior.
Artigo 8
Bens e direitos essenciais da classe superior, como a habitação, a saúde, a educação ou o alimento, só excepcionalmente devem ser extensíveis aos membros das classes inferiores, a saber: sempre que uma pequena parte desses direitos e bens, concedidos pontualmente e de modo sempre provisório às classes inferiores, puderem contribuir de forma decisiva e substancial para o bem-estar da classe superior e para a sua aparente filantropia.
Capítulo III
Vida Privada e Pessoal
Artigo 1
Toda a vida de um vivente superior é privada e, por isso mesmo, nunca é passível de escrutínio, dúvida ou questionamento. Os viventes de classe arqui-superior e os órgãos da Justiça devem zelar pela protecção da privacidade, punindo os infractores de modo exemplar. Em caso algum poderá um vivente de classe superior ser sujeito quer ao juízo público quer institucional e jurídico.
Artigo 2
Para manter o equilíbrio social e promover o entretenimento, qualquer vivente de classe superior pode invadir a privacidade de qualquer vivente de classe inferior que, por definição, não existe. Pode fazê-lo usando todos os meios ao seu alcance desde que o resultado seja proveitoso. Qualquer vivente de classe inferior ao serviço de qualquer vivente de classe superior tem o dever de manter a máxima discrição sobre a vida privada e pública do seu superior.
Artigo 3
Qualquer ofensa feita a qualquer vivente de classe superior é uma ofensa que atinge todos eles. Posto isto, todas as ofensas são simultaneamente pessoais e colectivas. Sempre que a ofensa se dirija a algum aspecto da vida pessoal de qualquer vivente superior, a punição deve revestir não só uma dimensão institucional e social mas deve também ser de natureza pessoal. Nestes casos, o ofensor deve ser destituído do nome, identidade social, ofício laboral, do direito a falar em público e do usufruto da própria atmosfera.
Advertência Final
Apesar dos evidentes, legítimos e inegáveis privilégios da classe superior dos viventes, convém ter cautela com certos factos, condicionalismos, imprevistos e circunstâncias várias que os insignes confrades da classe arqui-superior, que tudo governam, ainda não conseguiram controlar.
Ministro Vitalício dos Interesses da Classe Superior dos Viventes
Simplício Sinuoso Crispim Trujão de Mesquita e Mais-Além
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