No primeiro ano da pandemia de Covid19 (2020), a Associação Europeia de Escolas de Escrita Criativa propôs a escrita de "microcontos", com apenas 100 palavras. Não é fácil conjugar a frugalidade verbal com a eficácia narrativa. Escrevi vários, mas todos tinham mais de 100 palavras. Este foi um dos mais pequenos que escrevi e também o que mais sofreu com a tentativa de reduzi-lo a apenas 100 palavras. Mas foi também um dos que melhor reflectia o espírito contraditório do início da pandemia: medo do futuro e do desconhecido, como sempre, mas também uma certa esperança na possibilidade de regeneração.
A quinta ponte assinala o ponto onde começa a regeneração... só não se sabe o que há na outra margem. Para alguns olhos, ela é absolutamente invisível, para outros um obstáculo para os seus passos, para muitos um alvo a abater, para um número impreciso é o sinal de uma invasão alienígena, para um número não considerado pelas estatísticas mais positivistas, é um sinal de um qualquer desígnio divino, para os mais comuns, que são a larga maioria, é um mistério que, com alguma sorte e muita determinação, há-de ser desvendado pela ciência, uma ciência qualquer, nem que seja a que muda com o ritmo das notícias do dia. Para o transeunte deste conto, a quinta ponte é mais um ponto de interrogação ao longo do caminho. O que vir e acontecer será a resposta, por muito inexplicável que seja.
HORA H
A Quinta Ponte
O homem que gostava de relógios seguia por
entre a multidão. Nem um relógio à vista, só cabeças e pessoas apressadas, até
que, à entrada da quinta ponte, aquela por onde raramente passava, viu um. Eram
exactamente 15:00 horas. Sentiu um certo alívio. Ainda faltavam 15 minutos.
Já na ponte, olhou para trás e sentiu um
sobressalto. O relógio marcava agora 13:00 horas. Olhou a multidão. Mais alguém
notara? Todos seguiam o seu caminho, mas pareciam algo diferentes. Olhou de
novo o relógio. Agora eram 11:00 horas. A multidão parecia estar em
metamorfose.
Aquele de cabeça alva apoiado numa bengala
seguia agora lesto como um jovem atleta. Aquela mãe que levava pela mão a filha
de 10 anos, tinha um bebé ao colo. O casal que seguia à sua frente, eram duas
crianças alegres…
Fechou os olhos. Olhou de novo o relógio.
Os números tinham desaparecido e o ponteiro estava quieto. Devia estar
apavorado, mas não. Ele, que amava os relógios, já não precisava de relógios. A
multidão seguia tranquila. Agora eram o que antes tinham sido. Agora era
possível recomeçar.
São Ludovino, 15/3/2020
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