A Constituição do Sol
Como em todos os outros dias, o cinzento alagava o céu inteiro. Chovia torrencialmente, outra vez. Gotas de brilho metálico criavam uma cortina de miragens sobre os telhados e ao longo das ruas.
Os guarda-chuvas rompem-se ou quebram-se. As gotas despenham-se sobre as pedras da calçada e rolam em todas as direcções como se quisessem escapar. Um ou outro verga-se, apanha algumas gotas e guarda-as no bolso esperando mais tarde encontrar uma laranja, pão, sal, o sol, a liberdade.
Apesar da torrente, rios de manifestantes vindos de todos os lados caminham ruidosamente pelas ruas até desaguarem na grande Praça do Mundo. Levam muitos cartazes repletos de palavras pontiagudas e gritam, cada grupo, as suas palavras de ordem que raramente são coincidentes.
Uma única palavra é coincidente em todos os cartazes, discursos e gritos: Sol. «Queremos Sol!», «O Sol é nosso!», «O Sol é de todos!», «Sem Sol, não há liberdade nem justiça!», «Sem Sol, não há paz nem saúde!», «O Sol é a nossa casa!», «Sem Sol, morreremos famintos!», «Sem Sol, não há amor nem imaginação!», «Sem Sol, não há vida!», «Sem Sol, somos apenas sombras sem luz!», «Não há futuro sem Sol!», «Libertem o Sol, já!», «Uma nova ordem, uma nova realidade, o mesmo Sol!»…
Das janelas do palácio governamental os senhores do mundo espreitam, fumam charutos e sacodem as grossas gotas de chuva das lapelas. Voltam para dentro com a mesma indiferença e fecham as janelas.
Alguém atira a primeira pedra. A primeira vidraça fica desfeita em mil pedaços. À torrente pluvial junta-se uma chuva de pedras. Uma a uma, portas e janelas ficam despedaçadas. O alvo seguinte são os telhados. Os mais audazes trepam pelas caleiras até aos beirais. Uma a uma vão arrancando as telhas dando entrada à torrente, agora mais intensa e poderosa. Os manifestantes abrigam-se em lugares mais altos e sólidos.
Cada divisão do palácio se vai enchendo como um tanque de vasos comunicantes. Os mais audazes atam cordas à cintura e mergulham nas salas e corredores, abrem todas as portas e deixam que a torrente faça o resto. Em poucas horas, o palácio ficou vazio e inacreditavelmente limpo. Pelas ruas, a torrente segue o seu caminho, rumo ao rio e rumo ao mar levando consigo os despojos do poder.
E quando a torrente cessou, o céu azul abriu-se sobre a Praça do Mundo. Primeiro uma grande janela circular vertendo um azul purificador, depois um imenso arco de luz, de horizonte a horizonte, revelou a todos o mesmo Sol de sempre.
Deitaram fora os cartazes, as bandeiras, as braçadeiras e os crachats ─ já não importavam os partidos e as facções ─ e sentaram-se numa imensa roda. Os que pensavam do mesmo modo e os que pensavam de modo diferente perceberam que o essencial era o mesmo para todos. Com as mesmas palavras que tinham trazido a longa noite (porque as palavras dizem e fazem o que querem que digam e façam) redigiram a base da nova ordem, um número sucinto de princípios, aplicáveis a tudo e todos do mesmo modo. Assim nasceu a “Constituição do Sol”, uma declaração universal dos deveres e direitos da Humanidade.
Suy / São Ludovino, 15/3/2020
Coexistence
of Seasons I, photography by São Ludovino.
Coexistence of Seasons III, photography by São Ludovino.
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