quinta-feira, 9 de maio de 2019

PROVA DE CARÁCTER


PROVA DE CARÁCTER
As Alegres Comadres de Windsor / The Merry Wives of Windsor, comédia de William Shakespeare, interpretada pelos alunos de Artes do Espectáculo (Interpretação), 10.º 13, da Escola Secundária D. Pedro V, no Auditório Chaves Santos, Lisboa, 21 de Fevereiro de 2019. Encenação de Estrela Novais. 

     Todas as relações sociais, pessoais e familiares têm como pilar fundamental a confiança recíproca. Em muitos casos, essa confiança não é genuína nem recíproca, é meramente uma aparência, uma estratégia convencional, tacitamente aceite pelos que são dignos de confiança e confiam e pelos que não são fiáveis mas, por isso mesmo, precisam ainda mais da confiança e da fiabilidade como emblema social. Entre ambos, nesse território meramente convencional em que uns enganam e iludem e outros são iludidos e enganados, reinam as aparências, as ilusões e infinitos jogos sociais e psicológicos. Aí germina e viceja um vírus que provavelmente nunca será extinto: a dissimulação e o fingimento, a ocultação e os jogos de aparências, em suma, a mentira nas suas múltiplas formas. Por isso, o Mundo é Comédia e Palco. E se é comédia e pura representação, então é também certamente tragédia. N’ As Alegres Comadres de Windsor não chega a haver tragédia; os enganos desfazem-se, o enganador é desmascarado e castigado e tudo acaba bem. O reino de enganos lá ficou incólume, apesar de o enredo fazer crer que tudo se tornou transparente e harmonioso. 
     Nesta peça, Sir John Falstaff é o paradigma do vigarista, boémio, ocioso e conquistador (uma espécie de Don Juan boçal) que não é leal nem fiável. É um fingidor nato que vive de estratagemas, supondo sempre que os seus alvos serão tolos e ingénuos. Tem aversão ao trabalho e desconhece os métodos honestos de ganhar dinheiro. Tudo nele é excessivo e compulsivo: a corpulência, a boçalidade, a bebida e a comida, a basófia e a vaidade, as patranhas e os embustes. Aparentemente, Falstaff é incapaz de um acto verdadeiramente honesto, é o último ser em quem se poderia confiar. Contudo, há nele algo de autêntico; é assim porque não pode ser de outra forma, é a sua natureza. E tudo aquilo que em Falstaff é excessivo e caricato é também parte da universal natureza humana. Falstaff é uma caricatura dos vícios humanos encobertos por sucessivas máscaras. 
     As comadres de Windsor são as mulheres casadas que ele corteja com calculismo, para se aproveitar delas e dos seus bens e para sentir o prazer de enganar os respectivos maridos. Dissimular e enganar são para ele um prazer, uma forma de vida. Vive rodeado de gente semelhante a ele, marginais, rufias, ladrões e alcoólicos. As mulheres com quem convive habitualmente são as prostitutas e as criadas das estalagens. Esse é o seu mundo normal, aí não há vício nem pecado, aí o vício é uma virtude, uma qualidade e um bem de que só os amorais podem usufruir. Os outros, os idiotas que se deixam enganar, ou que ele pensa enganar, são seres menores facilmente ludibriados pela sua esperteza e manha. 
     Neste mundo às avessas, são sobretudo as mulheres que dão uma lição a Falstaff. Os homens deixam-se iludir, mesmo quando recorrem às mesmas estratégias de Falstaff (veja-se o caso do Senhor Ford); as mulheres vencem recorrendo sobretudo ao conhecimento empírico da natureza humana. Elas também usam estratagemas semelhantes aos de Falstaff mas estão sempre um passo à frente porque fingem ser as ingénuas que não são. Ambas (a Senhora Ford e a Senhora Page) têm personalidades fortes e dominadoras e são as verdadeiras administradoras dos seus lares, das suas vidas e dos seus bens. Percebem de antemão que Falstaff está sobretudo interessado nas vantagens materiais que poderiam resultar da conquista. Enganam benevolamente os maridos apenas para dar uma lição a Falstaff. 
     De um modo ou outro, todos fingem, todos mentem, tal como Falstaff, como se a mentira fosse afinal indispensável para desmascarar outras mentiras e só métodos desonestos pudessem vencer os seres desonestos. Será mesmo assim? Se todos se servem das mesmas estratégias, então ninguém é perfeitamente honesto. O desenlace faz crer que sim, que a desonestidade marginal é punida, Falstaff é ridicularizado e humilhado, mas os ardis dos “honestos” são legítimos. E o rol de desonestidades tacitamente aceite no jogo social e político ao longo das eras? Vigarices, fraudes, corrupção, oportunismo, nepotismo continuam a ser práticas comuns, só que estes Falstaff raramente são desmascarados e punidos. Perante tal triste comédia, quando algum é apanhado e o mundo se concerta (lembremos o desconcerto do mundo de que fala Camões) fica-se espantado ou quase se sente pena do trafulha. A impunidade tornou-se regra e as excepções são tão raras que parecem fruto do acaso e não da justiça. 
     Mas é precisamente esta sucessão de enganos e desenganos que torna esta comédia um espelho intemporal das práticas e das relações humanas. E na época em que foi escrita e representada (entre 1597 e 1602), um tempo em que as convenções e os contratos matrimoniais se sobrepunham aos genuínos afectos e todos aceitavam o teatro social como um ingrediente natural das relações humanas, o público ria a bom rir enquanto se mirava nesse espelho. 
     Consta que esta peça terá sido encomendada a Shakespeare pela própria rainha Isabel I que desejava assistir a uma peça em que entrasse a personagem John Falstaff, a mesma que já encontrara em Henrique IV. Shakespeare terá escrito As Alegres Comadres de Windsor em apenas 14 dias para agradar à rainha. Mas será que agradou? O John Falstaff que entra nesta peça não se assemelha ao que fora personagem das partes I e II de Henrique IV. Aquele John Falstaff fora provavelmente decalcado do cavaleiro (Sir John Fastolf também conhecido como Lord Cobham e ainda como John Oldcastle) que fora amigo do príncipe Hal, o mesmo que foi acusado de assassinar Ricardo II, para depois subir ao trono como Henrique V. Aquele fora o herói de muitas batalhas durante a Guerra dos Cem Anos, entre a Casa dos Plantagenetas (Ingleses) e a Casa de Valois (Franceses), era um patriota, um militar, um homem leal ao seu senhor. Foi até considerado um mártir, pois segundo o Livro dos Mártires de John Fox, terá sido condenado à fogueira como herético da seita de John Wycliffe (criador do movimento igualitário com propósitos semelhantes aos de Lutero um século mais tarde), isto é, como inimigo da Igreja Católica. Terá sido executado no dia 14 de Dezembro de 1417 e existem até imagens que retratam essa barbárie tão comum na época. 
     O John Falstaff d’As Alegres Comadres de Windsor não é um cavaleiro medieval, nada tem de sério e respeitável e não foi condenado a nenhum martírio, excepto o vexame e a chacota a que o sujeitaram as comadres Ford e Page. Tivesse ou não agradado à rainha este novo Falstaff, o que é certo, é que a peça teve sucesso e foi reencenada milhares de vezes ao longo destes 300 anos de vida, no teatro, na ópera e no cinema. Em muitas dessas encenações, Falstaff ganha até um relevo desmesurado, ganha por vezes sobriedade, outras é reduzido à sua própria caricatura. Apareceu pelo menos em quatro óperas, a de Antonio Salieri (1750 – 1825), Falstaff (Dramma giocoso in due atti) representada em 1799, a de Carl Otto Ehrenfried Nicolai (1810 – 1849), Die Lustigen Weiber von Windsor / O Feliz Divórcio de Windsor, estreada em 1849, a de Giuseppe Verdi (1813-1901), Falstaff, estreada em 1893 e a de Ralph Vaughan Williams (1872-1958), Sir John in Love, estreada em 1929. Orson Welles realizou em 1965 The Chimes at Midnight, em que ele próprio desempenha o papel de Falstaff e David Jones realizou para a BBC uma série sobre peças de Shakespeare em que o Falstaff d’As Alegres Comadres de Windsor (1982) teve algum relevo. 
     Certos autores e literatos (Harold Bloom, Orson Welles) consideram Falstaff uma das personagens maiores da criação dramatúrgica de Shakespeare, a par de Hamlet. Parecem ver nele uma espécie de retrato das misérias e fraquezas da humanidade, mas também o eco grosseiro dos seus anseios e das suas quimeras. Enfim, um misto de personagem cómica e trágica. Se assim é, Falstaff terá uma longa vida, no palco e fora dele. Até já tem um adjectivo criado para designar alguém com características físicas, psicológicas e comportamentais semelhantes às de Falstaff: “falstafiano”. 
     Esta é uma peça longa (quase duas horas) e nada fácil de encenar e interpretar. Os jovens intérpretes mostraram ser capazes de enfrentar o desafio, combinando a tradição com a inovação, a naturalidade do discurso familiar com uma certa afectação típica da época, a tensão dramática com a leveza da comédia. Os figurinos coloriram o fundo negro e surpreenderam pelo inesperado (os meliantes que aparecem como gangsters e um karateca chinês, o pajem de Falstaff vestido como uma mistura de majorete e paquete, o próprio Falstaff fazia lembrar um padrinho da máfia). Parabéns pelo excelente trabalho! 

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Nota 1: Cf. Artigo sobre a execução de Sir John Oldcastle – 


Nota 2: Segundo Harold Bloom, todos os autores que vieram depois de Shakespeare têm um pouco dele nas suas obras, mesmo nas obras daqueles que conseguiram construir uma identidade literária própria. Sobre esta ideia, veja-se por exemplo O Cânone Ocidental, Círculo de Leitores, 1997. Veja-se também Falstaff - Give Me Life (Shakespeare's Personalities) by Harold Bloom, 2017 

Nota 3: Descrição de Falstaff num artigo do New York Times: «Not that there is anything ethereal about Fat Jack. This whiskery swag-bellied omnivorous cornucopia of appetites, red-eyed, unbuttoned, sherry-soaked. This nightwalker and whoremonger, a “muddy conger,” swinging at his old mistress Doll Tearsheet, a life-affirming liar whose truth is never to be a counterfeit. 

Falstaff is ancient energy thumping at volume through a temporary poundage of flesh. He is part pagan — the Lord of Misrule on the loose in Eastcheap, and as such his time is short. We meet him first in “Henry IV, Part 1,” already old, lusting at life, drinking pal of the young Prince Hal, who is calculatedly slumming it in London’s East End, like any rich kid running away from the family firm.» 


Nota 4: Estudos sobre a verdadeira identidade de John Falstaff: 

- The case of Sir John Fastolf and other historical studies by David Wallace Duthie, London, 1907 - https://archive.org/details/caseofsirjohnfas00duthiala/page/n7

- The Real Falstaff - Sir John Fastolf and the Hundred Years' War by Stephen Cooper 

Nota 5: Texto apócrifo de William Shakespeare: The history of Sir John Oldcastle, the good Lord Cobham, by William Shakespeare, London, 1734 – 


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Elenco 

Adriana Loureiro 
Ana Beatriz Martins 
Beatriz Carvalho 
Cátia Castanheira 
Diana Sardinha 
Diogo Pereira 
Filipa Lopes 
Íris Sena 
Joana Jorge 
João Duarte 
Maria Mendes 
Mariana Correia 
Nádia Antunes 
Rafaela Alves 
Raquel Simões 
Samira Baldé 
Sandro Dias 
Sara Carvalho 
Sofia Pedrosa 
Tatiana Cavalheiro 

Encenação 
Estrela Novais 

Apoio de Voz 
Gonçalo Costa 

Apoio de Movimento 
Victor Sezinando


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SEM VONTADE NENHUMA DE PARTIR

DE QUE TE RIS, AFINAL?
Só Por Cima do Meu Cadáver (a partir da farsa trágica A Birra do Morto de Vicente Sanches), interpretada pelos alunos de Expressão Dramática da Universidade Sénior de Massamá e Monte Abraão, no Auditório Chaves Santos da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 7 de Junho de 2018. Encenação de Victor Sezinando.

   Vieram para se divertir e divertiram-se. Como é possível alguém divertir-se com algo absolutamente tétrico: a morte de alguém? Transformando o tétrico em cómico e gostando verdadeiramente do que se faz. Este mesmo enredo poderia ser interpretado de forma bem diferente, acentuando a hipocrisia dos que choram lágrimas de crocodilo, a indiferença dos gananciosos e oportunistas, a inconstância dos sentimentos, a luta inglória contra a própria morte. Mas o desenlace, que mostra o defunto escapando à morte, rindo de tudo e todos, trazia já em si a possibilidade de subverter tudo e transformar o trágico e inevitável numa comédia aparentemente inócua. Não é uma comédia inócua, por isso o próprio autor lhe chamou “farsa trágica”. O riso mascara o medo, a hipocrisia, a inevitável mortalidade e desmascara os vícios de carácter que só se revelam verdadeiramente quando o mortal parte e já nada pode fazer contra cinismos, oportunismos e falsas boas intenções. O homem que parte já não é o mesmo que é recordado. Pouco haveria, pois, para despertar um riso solto e leve. É precisamente a farsa dos que ficam, mais do que a (suposta) ressurreição do morto, que desperta o riso, nem sempre leve mas antes inconscientemente crítico. A ressurreição final do morto é quase como um ajuste de contas, em nome de todos os mortais, com a própria inevitabilidade da morte e a hipocrisia dos vivos.
     O facto de os intérpretes já não serem jovens podia impedi-los de abraçarem desprendidamente esta espécie de paródia da morte, mas não foi assim. Em certos momentos, a performance pareceu ter um efeito catártico: se não posso vencer a morte, rio-me dela. Talvez seja até uma predisposição natural da maioria dos mortais e há de facto diversas culturas que festejam a morte, embora o façam de modos diferentes e por motivos filosóficos ou religiosos diversos. Se é verdade que há algo muito incómodo nesta peça, também é verdade que ninguém conseguiria deixar de rir em muitos momentos. É como uma terapia em que se aplica um medicamento com efeitos secundários, causa dor e indisposição, não cura completamente mas atenua temporariamente os sintomas. É por tudo isso uma farsa trágica e divertida.
     D. Francisco Manuel de Melo escreveu num dos seus Apólogos Dialogais que a velhice era (ou deveria ser) como uma “suave pousada” antes da partida. Parece que o protagonista queria voltar à pousada e partir bem mais tarde, quando lhe apetecesse, se lhe apetecesse. Contestou, argumentou e voltou mesmo à pousada através da sua ressurreição metafórica. Foi como se vencesse sozinho um bando de vilões e de insignificante mortal passasse a herói imortal. Pelo menos desta vez, o último a rir foi o morto. 
     É evidente que todos os intervenientes desempenharam de forma empenhada e divertida os seus papéis. O facto de já não serem jovens mas revelarem uma energia jovial só acentuou a vivacidade do desempenho. É de sublinhar o gosto genuíno que manifestaram na performance, como se tivessem esperado longos anos para se dedicarem a uma actividade de que gostam verdadeiramente e a que se dedicam como parte relevante das suas vidas. O teatro é para eles uma espécie de sal que conserva o entusiasmo e o desejo de fazer coisas novas. O reconhecimento do público foi recebido com enorme gratidão e, como entre esse público, estavam dezenas de jovens alunos de Artes do Espectáculo, os séniores fizeram questão de lhes dirigir também palavras de admiração e reconhecimento. É que, pouco tempo antes, tinham sido estes actores séniores uma parte do público dos mais novos quando eles interpretaram o musical Nos Montes de Viriato, de José Carlos Godinho, também encenado por Victor Sezinando. Nesse dia estava eu no público entre os actores séniores e foi enternecedor ver como comentavam e aplaudiam o trabalho dos mais novos, como se estivessem ali não só para fruir aquele momento mas também para aprender e se inspirarem para futuras interpretações. 
   O professor e encenador Victor Sezinando deu-lhes liberdade para criarem e recriarem as personagens, deixou-os brilhar cada um a seu modo, segundo a sua predisposição e inventiva, e o resultado final foi francamente divertido. E rir de uma “farsa trágica” não é coisa que se consiga facilmente. É preciso ter-se uma certa veia de comediante mas também de empatia, se não com este ou aquele ser humano, pelo menos com o género humano de que nenhum comum mortal se pode excluir por muito que tente.
     E se isto foi apenas uma manifestação do vosso amor pelo teatro, então estou certa de que será uma caminhada para continuar. Parabéns a todos pelo vosso trabalho!
     Segue-se um diálogo que, de certo modo, explicita o conteúdo desta peça, questiona a noção de comédia e as motivações de quem escreve ou representa uma comédia, sobretudo se for uma “farsa trágica”.

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DE QUE TE RIS, AFINAL?

     ─ Para que serve a comédia? ─ Pergunta um comediante amador a um comediante profissional. 
     ─ Para fazer rir, claro! ─ Responde convicto o profissional. 
    ─ Sim, mas não só. Há muito mais na comédia. A mim parece-me que a comédia foi inventada para espantar os medos.
    ─ O verdadeiro comediante nem se lembra que existe medo. Por isso é que é comediante, para poder rir de tudo.
    ─ E tu crês que podes rir realmente de tudo? A mim parece-me que isso seria uma espécie de tortura ou de loucura.
  ─ Não me venhas com os teus bons sentimentos. Supõe este enredo bem verosímil. Um tipo perde o emprego, transforma-se num meliante razoável, aprende a furtar, aprende a disfarçar-se e mais tarde volta a candidatar-se precisamente ao mesmo lugar de onde tinha sido despedido. Mais, é adorado e promovido de imediato. Os seus novos modos e métodos agradam sumamente aos manda-chuvas da finança e da política. Em breve é promovido a presidente do banco de onde tinha sido despedido por excesso de zelo. Aplica à arte de administrar o dinheiro alheio todas as manhas que aprendeu com diversos rufias e em breve o banco está completamente falido e ele com os bolsos cheios. Discretamente ausenta-se para as ilhas Caimão onde goza impune os milhões que desviou para um offshore. Os que o despediram, os mesmos que o tinham primeiramente contratado, vivem agora na penúria e recorrem às escondidas ao Banco Alimentar. Um suicidou-se e um quase que foi condenado a uma pena de prisão por ter falsificado uma assinatura; a única prova material aceite em tribunal pelo meticuloso juiz que era profundo conhecedor do Código de Processo Penal. O governo e o Banco Nacional acobardaram-se porque tinham uma série de telhados de vidro e tudo termina com dezenas de falências, austeridade, impostos redobrados, os contribuintes honestos a pagar as dívidas do espertalhaço e uma subida em flecha da taxa de desemprego que vai gerar mais uma cadeia infinita de desgraças… Agora diz-me, isto é uma comédia ou não? Para mim é. Enfim, admito que possa ser uma tragicomédia mas não deixa de ser uma comédia.
   ─ Percebo o teu ponto de vista. Estás confortável e indiferente no teu seguro reduto de sarcasmo e olhas todo o mundo com desdém… por isso, podes rir-te e ris-te do mesmo que faz chorar outros. Agora tenta lá usar de um pouco de empatia.
     Imagina que és um tipo vulgar, sem qualidades extraordinárias e dois ou tês vícios sem grande gravidade ou consequências; bebes uma cerveja a mais quando o teu clube joga, de vez em quando fazes de conta que não tens trocos para o teu colega pagar a tua bica, não declaras às finanças um ou outro biscato que fazes ao fim de semana. Enfim, sem seres um tipo exemplar, também não és um crápula merecedor de duro castigo. Pois, mesmo assim, acabas por morrer ainda relativamente jovem com uma congestão provocada provavelmente por uma daquelas cervejas geladas caída num estômago tenso e cheio de ácidos devido ao almoço excessivamente condimentado. Ninguém esperava a tua morte, na verdade até parecia que respiravas saúde, mas aconteceu. Agora imagina que os que cá ficaram descobrem subitamente todas as vantagens da tua partida precoce e querem a todo o custo acelerar e concluir o teu funeral. Quer-me parecer que não ias gostar nada da situação. Desconfio até que farias os possíveis e impossíveis para regressar à vida e dar uma lição às carpideiras e aos abutres oportunistas. Tenho quase a certeza de que te recusarias a morrer e havias de fazê-lo com tal alarido e inflexibilidade que acabarias por levar a melhor. E quando todos já te davam por definitivamente ausente havias de aparecer para aspergir a tua raiva e o teu sarcasmo. E eu seria provavelmente dos poucos que riria contigo e aplaudiria a tua monumental birra, porque era perfeitamente legítima e compreensível em qualquer comum mortal que prefira estar vivo a…
   ─ Está bem, está bem, já percebi. Essa até me parece uma boa ideia para uma comédia, mas cáustica e cheia de nonsense
   ─ Nem penses, não vais escrever essa peça. A ideia é minha, já escrevi a peça e estou a pensar encená-la em breve. Mas se queres fazer parte da comédia, ofereço-te desde já o papel principal. Parece-me que seria uma excelente ocasião para praticares a empatia. Afinal de contas, um dia poderás ter mesmo de representar esse papel ou eu ou outro qualquer… Mas é sempre conveniente ensaiar primeiro… 

São Ludovino, 23/6/2018 


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DRAMATURGIA INICIAL


RAPSÓDIA VICENTINA
Rapsódia constituída por excertos do Auto da Barca do Inferno, Todo o Mundo e Ninguém (Auto da Lusitânia), Comédia de Rubena (Diálogo Infantil), Mofina Mendes, Auto da Feira e Monólogo do Vaqueiro (ou Auto da Visitação), de Gil Vicente. Interpretada pelos alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo, 10.º 13, no Auditório Chaves Santos da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 6 de Junho de 2018. Encenação de Estrela Novais.


     Tornou-se tradição encenar excertos de algumas peças de Gil Vicente no primeiro ano do Curso Profissional de Artes do Espectáculo (Interpretação). Uma tradição que faz todo o sentido por ser Gil Vicente o fundador do teatro português e por a sua obra oferecer uma galeria diversificada de personagens que exige, desde logo, aos potenciais actores versatilidade e capacidade de adaptação. 
     Regra geral, os excertos são encenados de forma livre, transportando as personagens através do tempo e fazendo adaptações nos figurinos e na própria performance. Chega-se assim mais perto de um público que é maioritariamente jovem (os próprios alunos da escola) e dá-se nova vida a velhos textos que, de um modo ou outro, encontram na própria representação a sua actualidade. Embora os excertos apresentados pertençam a géneros diversos (comédia e sátira, auto de moralidade, a fantasia alegórica e o panegírico festivo), a encenação acaba por conciliar dois ingredientes presentes em todas essas peças em doses diversas: a sátira (o humor crítico) e a moralização dos costumes. O que também faz todo o sentido porque um dos objectivos do mestre era precisamente moralizar os costumes através da sátira, tal como sintetiza a locução latina de Santeuil sobre a comédia: Ridendo castigat mores (Rindo se castigam os costumes).
     Para o jovem público, o que sobressai é de facto a sátira e todas as modalidades e gradações do cómico. Os momentos mais graves e reflexivos acabam por passar algo despercebidos como se fossem apenas um compasso de espera até à próxima gargalhada. O público mais atento vê todas essas nuances e acompanha a viagem no tempo desde as primeiras décadas do século XVI até ao presente, sai até dos limites do tempo e percebe a intemporalidade de virtudes e vícios inerentes não apenas às sociedades mas à própria natureza humana, como se de facto não houvesse fronteiras temporais nem verdadeira evolução social e moral. Os tipos vicentinos têm esse atributo de estátuas falantes sem idade que ecoam a voz de múltiplos tempos, não pela linguagem, muito diversa da actual, mas pelas atitudes e pelos juízos que fazem de si mesmos e dos outros.
    Uma parte dessa intenção moralizante prende-se naturalmente com a religiosidade, os preconceitos e a visão do mundo específica de uma época e sociedade. Mas em muitos momentos, Gil Vicente liberta-se dessas linhas de molde e consegue ser verdadeiramente intemporal e universal, como acontece em Todo o Mundo e Ninguém (excerto do Auto da Lusitânia). Pequenos grandes detalhes da encenação, como a escolha de um homem rico (banqueiro ou empresário), materialista, egoísta e ambicioso, que vai enrolando maços de notas e rindo de forma sarcástica, para representar Todo o Mundo e uma modesta empregada doméstica, que fala enquanto lava o chão de joelhos, para representar Ninguém, fizeram toda a diferença. 
     Considerando que esta foi a primeira apresentação pública de folgo desta turma que agora inicia a sua formação profissional, creio que a performance foi muito bem conseguida e merecedora dos aplausos de todos. Continuem o vosso bom trabalho!

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Lugar incerto
(texto introdutório do vídeo que se inicia com cenas do Auto da Barca do Inferno)

No cais, as barcas que não vemos esperam
Antes de partir
Ou naufragar...
Ambas levam passageiros
Os que querem ir
Os que querem ficar
E os que querem ir para outro lugar...

São Ludovino, 7/6/2018

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Retrato de Gil Vicente, c. 1465 - c. 1536, 
por António Nunes Júnior, 1882. 
Paços do Concelho de Lisboa.


     Excerto do Auto da Lusitânia, um dos últimos escritos por Gil Vicente. Foi escrito em 1531 e representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III para festejar o nascimento do seu filho, D. Manuel. Esta peça é habitualmente classificada como uma “fantasia alegórica”.


Ninguém: Que andas tu aí buscando?

Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:

                         delas não posso achar,
                         porém ando porfiando
                          por quão bom é porfiar. 

Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?

Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo

                         e meu tempo todo inteiro
                         sempre é buscar dinheiro
                         e sempre nisto me fundo. 

Ninguém: Eu hei nome Ninguém,

                    e busco a consciência.


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Elenco

Adriana Loureiro
Ana Beatriz Martins
Beatriz Carvalho
Cátia Castanheira
Diana Sardinha
Diogo Pereira
Filipa Lopes
Íris Sena
Joana Jorge
João Duarte
Maria Mendes
Mariana Correia
Nádia Antunes
Rafaela Alves
Raquel Simões
Samira Baldé
Sandro Dias
Sara Carvalho
Sofia Pedrosa
Tatiana Cavalheiro

Encenação
Estrela Novais

Apoio de Movimento e Voz
Victor Sezinando

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