quinta-feira, 9 de maio de 2019

SEM VONTADE NENHUMA DE PARTIR

DE QUE TE RIS, AFINAL?
Só Por Cima do Meu Cadáver (a partir da farsa trágica A Birra do Morto de Vicente Sanches), interpretada pelos alunos de Expressão Dramática da Universidade Sénior de Massamá e Monte Abraão, no Auditório Chaves Santos da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 7 de Junho de 2018. Encenação de Victor Sezinando.

   Vieram para se divertir e divertiram-se. Como é possível alguém divertir-se com algo absolutamente tétrico: a morte de alguém? Transformando o tétrico em cómico e gostando verdadeiramente do que se faz. Este mesmo enredo poderia ser interpretado de forma bem diferente, acentuando a hipocrisia dos que choram lágrimas de crocodilo, a indiferença dos gananciosos e oportunistas, a inconstância dos sentimentos, a luta inglória contra a própria morte. Mas o desenlace, que mostra o defunto escapando à morte, rindo de tudo e todos, trazia já em si a possibilidade de subverter tudo e transformar o trágico e inevitável numa comédia aparentemente inócua. Não é uma comédia inócua, por isso o próprio autor lhe chamou “farsa trágica”. O riso mascara o medo, a hipocrisia, a inevitável mortalidade e desmascara os vícios de carácter que só se revelam verdadeiramente quando o mortal parte e já nada pode fazer contra cinismos, oportunismos e falsas boas intenções. O homem que parte já não é o mesmo que é recordado. Pouco haveria, pois, para despertar um riso solto e leve. É precisamente a farsa dos que ficam, mais do que a (suposta) ressurreição do morto, que desperta o riso, nem sempre leve mas antes inconscientemente crítico. A ressurreição final do morto é quase como um ajuste de contas, em nome de todos os mortais, com a própria inevitabilidade da morte e a hipocrisia dos vivos.
     O facto de os intérpretes já não serem jovens podia impedi-los de abraçarem desprendidamente esta espécie de paródia da morte, mas não foi assim. Em certos momentos, a performance pareceu ter um efeito catártico: se não posso vencer a morte, rio-me dela. Talvez seja até uma predisposição natural da maioria dos mortais e há de facto diversas culturas que festejam a morte, embora o façam de modos diferentes e por motivos filosóficos ou religiosos diversos. Se é verdade que há algo muito incómodo nesta peça, também é verdade que ninguém conseguiria deixar de rir em muitos momentos. É como uma terapia em que se aplica um medicamento com efeitos secundários, causa dor e indisposição, não cura completamente mas atenua temporariamente os sintomas. É por tudo isso uma farsa trágica e divertida.
     D. Francisco Manuel de Melo escreveu num dos seus Apólogos Dialogais que a velhice era (ou deveria ser) como uma “suave pousada” antes da partida. Parece que o protagonista queria voltar à pousada e partir bem mais tarde, quando lhe apetecesse, se lhe apetecesse. Contestou, argumentou e voltou mesmo à pousada através da sua ressurreição metafórica. Foi como se vencesse sozinho um bando de vilões e de insignificante mortal passasse a herói imortal. Pelo menos desta vez, o último a rir foi o morto. 
     É evidente que todos os intervenientes desempenharam de forma empenhada e divertida os seus papéis. O facto de já não serem jovens mas revelarem uma energia jovial só acentuou a vivacidade do desempenho. É de sublinhar o gosto genuíno que manifestaram na performance, como se tivessem esperado longos anos para se dedicarem a uma actividade de que gostam verdadeiramente e a que se dedicam como parte relevante das suas vidas. O teatro é para eles uma espécie de sal que conserva o entusiasmo e o desejo de fazer coisas novas. O reconhecimento do público foi recebido com enorme gratidão e, como entre esse público, estavam dezenas de jovens alunos de Artes do Espectáculo, os séniores fizeram questão de lhes dirigir também palavras de admiração e reconhecimento. É que, pouco tempo antes, tinham sido estes actores séniores uma parte do público dos mais novos quando eles interpretaram o musical Nos Montes de Viriato, de José Carlos Godinho, também encenado por Victor Sezinando. Nesse dia estava eu no público entre os actores séniores e foi enternecedor ver como comentavam e aplaudiam o trabalho dos mais novos, como se estivessem ali não só para fruir aquele momento mas também para aprender e se inspirarem para futuras interpretações. 
   O professor e encenador Victor Sezinando deu-lhes liberdade para criarem e recriarem as personagens, deixou-os brilhar cada um a seu modo, segundo a sua predisposição e inventiva, e o resultado final foi francamente divertido. E rir de uma “farsa trágica” não é coisa que se consiga facilmente. É preciso ter-se uma certa veia de comediante mas também de empatia, se não com este ou aquele ser humano, pelo menos com o género humano de que nenhum comum mortal se pode excluir por muito que tente.
     E se isto foi apenas uma manifestação do vosso amor pelo teatro, então estou certa de que será uma caminhada para continuar. Parabéns a todos pelo vosso trabalho!
     Segue-se um diálogo que, de certo modo, explicita o conteúdo desta peça, questiona a noção de comédia e as motivações de quem escreve ou representa uma comédia, sobretudo se for uma “farsa trágica”.

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DE QUE TE RIS, AFINAL?

     ─ Para que serve a comédia? ─ Pergunta um comediante amador a um comediante profissional. 
     ─ Para fazer rir, claro! ─ Responde convicto o profissional. 
    ─ Sim, mas não só. Há muito mais na comédia. A mim parece-me que a comédia foi inventada para espantar os medos.
    ─ O verdadeiro comediante nem se lembra que existe medo. Por isso é que é comediante, para poder rir de tudo.
    ─ E tu crês que podes rir realmente de tudo? A mim parece-me que isso seria uma espécie de tortura ou de loucura.
  ─ Não me venhas com os teus bons sentimentos. Supõe este enredo bem verosímil. Um tipo perde o emprego, transforma-se num meliante razoável, aprende a furtar, aprende a disfarçar-se e mais tarde volta a candidatar-se precisamente ao mesmo lugar de onde tinha sido despedido. Mais, é adorado e promovido de imediato. Os seus novos modos e métodos agradam sumamente aos manda-chuvas da finança e da política. Em breve é promovido a presidente do banco de onde tinha sido despedido por excesso de zelo. Aplica à arte de administrar o dinheiro alheio todas as manhas que aprendeu com diversos rufias e em breve o banco está completamente falido e ele com os bolsos cheios. Discretamente ausenta-se para as ilhas Caimão onde goza impune os milhões que desviou para um offshore. Os que o despediram, os mesmos que o tinham primeiramente contratado, vivem agora na penúria e recorrem às escondidas ao Banco Alimentar. Um suicidou-se e um quase que foi condenado a uma pena de prisão por ter falsificado uma assinatura; a única prova material aceite em tribunal pelo meticuloso juiz que era profundo conhecedor do Código de Processo Penal. O governo e o Banco Nacional acobardaram-se porque tinham uma série de telhados de vidro e tudo termina com dezenas de falências, austeridade, impostos redobrados, os contribuintes honestos a pagar as dívidas do espertalhaço e uma subida em flecha da taxa de desemprego que vai gerar mais uma cadeia infinita de desgraças… Agora diz-me, isto é uma comédia ou não? Para mim é. Enfim, admito que possa ser uma tragicomédia mas não deixa de ser uma comédia.
   ─ Percebo o teu ponto de vista. Estás confortável e indiferente no teu seguro reduto de sarcasmo e olhas todo o mundo com desdém… por isso, podes rir-te e ris-te do mesmo que faz chorar outros. Agora tenta lá usar de um pouco de empatia.
     Imagina que és um tipo vulgar, sem qualidades extraordinárias e dois ou tês vícios sem grande gravidade ou consequências; bebes uma cerveja a mais quando o teu clube joga, de vez em quando fazes de conta que não tens trocos para o teu colega pagar a tua bica, não declaras às finanças um ou outro biscato que fazes ao fim de semana. Enfim, sem seres um tipo exemplar, também não és um crápula merecedor de duro castigo. Pois, mesmo assim, acabas por morrer ainda relativamente jovem com uma congestão provocada provavelmente por uma daquelas cervejas geladas caída num estômago tenso e cheio de ácidos devido ao almoço excessivamente condimentado. Ninguém esperava a tua morte, na verdade até parecia que respiravas saúde, mas aconteceu. Agora imagina que os que cá ficaram descobrem subitamente todas as vantagens da tua partida precoce e querem a todo o custo acelerar e concluir o teu funeral. Quer-me parecer que não ias gostar nada da situação. Desconfio até que farias os possíveis e impossíveis para regressar à vida e dar uma lição às carpideiras e aos abutres oportunistas. Tenho quase a certeza de que te recusarias a morrer e havias de fazê-lo com tal alarido e inflexibilidade que acabarias por levar a melhor. E quando todos já te davam por definitivamente ausente havias de aparecer para aspergir a tua raiva e o teu sarcasmo. E eu seria provavelmente dos poucos que riria contigo e aplaudiria a tua monumental birra, porque era perfeitamente legítima e compreensível em qualquer comum mortal que prefira estar vivo a…
   ─ Está bem, está bem, já percebi. Essa até me parece uma boa ideia para uma comédia, mas cáustica e cheia de nonsense
   ─ Nem penses, não vais escrever essa peça. A ideia é minha, já escrevi a peça e estou a pensar encená-la em breve. Mas se queres fazer parte da comédia, ofereço-te desde já o papel principal. Parece-me que seria uma excelente ocasião para praticares a empatia. Afinal de contas, um dia poderás ter mesmo de representar esse papel ou eu ou outro qualquer… Mas é sempre conveniente ensaiar primeiro… 

São Ludovino, 23/6/2018 


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