quinta-feira, 9 de maio de 2019

PROVA DE CARÁCTER


PROVA DE CARÁCTER
As Alegres Comadres de Windsor / The Merry Wives of Windsor, comédia de William Shakespeare, interpretada pelos alunos de Artes do Espectáculo (Interpretação), 10.º 13, da Escola Secundária D. Pedro V, no Auditório Chaves Santos, Lisboa, 21 de Fevereiro de 2019. Encenação de Estrela Novais. 

     Todas as relações sociais, pessoais e familiares têm como pilar fundamental a confiança recíproca. Em muitos casos, essa confiança não é genuína nem recíproca, é meramente uma aparência, uma estratégia convencional, tacitamente aceite pelos que são dignos de confiança e confiam e pelos que não são fiáveis mas, por isso mesmo, precisam ainda mais da confiança e da fiabilidade como emblema social. Entre ambos, nesse território meramente convencional em que uns enganam e iludem e outros são iludidos e enganados, reinam as aparências, as ilusões e infinitos jogos sociais e psicológicos. Aí germina e viceja um vírus que provavelmente nunca será extinto: a dissimulação e o fingimento, a ocultação e os jogos de aparências, em suma, a mentira nas suas múltiplas formas. Por isso, o Mundo é Comédia e Palco. E se é comédia e pura representação, então é também certamente tragédia. N’ As Alegres Comadres de Windsor não chega a haver tragédia; os enganos desfazem-se, o enganador é desmascarado e castigado e tudo acaba bem. O reino de enganos lá ficou incólume, apesar de o enredo fazer crer que tudo se tornou transparente e harmonioso. 
     Nesta peça, Sir John Falstaff é o paradigma do vigarista, boémio, ocioso e conquistador (uma espécie de Don Juan boçal) que não é leal nem fiável. É um fingidor nato que vive de estratagemas, supondo sempre que os seus alvos serão tolos e ingénuos. Tem aversão ao trabalho e desconhece os métodos honestos de ganhar dinheiro. Tudo nele é excessivo e compulsivo: a corpulência, a boçalidade, a bebida e a comida, a basófia e a vaidade, as patranhas e os embustes. Aparentemente, Falstaff é incapaz de um acto verdadeiramente honesto, é o último ser em quem se poderia confiar. Contudo, há nele algo de autêntico; é assim porque não pode ser de outra forma, é a sua natureza. E tudo aquilo que em Falstaff é excessivo e caricato é também parte da universal natureza humana. Falstaff é uma caricatura dos vícios humanos encobertos por sucessivas máscaras. 
     As comadres de Windsor são as mulheres casadas que ele corteja com calculismo, para se aproveitar delas e dos seus bens e para sentir o prazer de enganar os respectivos maridos. Dissimular e enganar são para ele um prazer, uma forma de vida. Vive rodeado de gente semelhante a ele, marginais, rufias, ladrões e alcoólicos. As mulheres com quem convive habitualmente são as prostitutas e as criadas das estalagens. Esse é o seu mundo normal, aí não há vício nem pecado, aí o vício é uma virtude, uma qualidade e um bem de que só os amorais podem usufruir. Os outros, os idiotas que se deixam enganar, ou que ele pensa enganar, são seres menores facilmente ludibriados pela sua esperteza e manha. 
     Neste mundo às avessas, são sobretudo as mulheres que dão uma lição a Falstaff. Os homens deixam-se iludir, mesmo quando recorrem às mesmas estratégias de Falstaff (veja-se o caso do Senhor Ford); as mulheres vencem recorrendo sobretudo ao conhecimento empírico da natureza humana. Elas também usam estratagemas semelhantes aos de Falstaff mas estão sempre um passo à frente porque fingem ser as ingénuas que não são. Ambas (a Senhora Ford e a Senhora Page) têm personalidades fortes e dominadoras e são as verdadeiras administradoras dos seus lares, das suas vidas e dos seus bens. Percebem de antemão que Falstaff está sobretudo interessado nas vantagens materiais que poderiam resultar da conquista. Enganam benevolamente os maridos apenas para dar uma lição a Falstaff. 
     De um modo ou outro, todos fingem, todos mentem, tal como Falstaff, como se a mentira fosse afinal indispensável para desmascarar outras mentiras e só métodos desonestos pudessem vencer os seres desonestos. Será mesmo assim? Se todos se servem das mesmas estratégias, então ninguém é perfeitamente honesto. O desenlace faz crer que sim, que a desonestidade marginal é punida, Falstaff é ridicularizado e humilhado, mas os ardis dos “honestos” são legítimos. E o rol de desonestidades tacitamente aceite no jogo social e político ao longo das eras? Vigarices, fraudes, corrupção, oportunismo, nepotismo continuam a ser práticas comuns, só que estes Falstaff raramente são desmascarados e punidos. Perante tal triste comédia, quando algum é apanhado e o mundo se concerta (lembremos o desconcerto do mundo de que fala Camões) fica-se espantado ou quase se sente pena do trafulha. A impunidade tornou-se regra e as excepções são tão raras que parecem fruto do acaso e não da justiça. 
     Mas é precisamente esta sucessão de enganos e desenganos que torna esta comédia um espelho intemporal das práticas e das relações humanas. E na época em que foi escrita e representada (entre 1597 e 1602), um tempo em que as convenções e os contratos matrimoniais se sobrepunham aos genuínos afectos e todos aceitavam o teatro social como um ingrediente natural das relações humanas, o público ria a bom rir enquanto se mirava nesse espelho. 
     Consta que esta peça terá sido encomendada a Shakespeare pela própria rainha Isabel I que desejava assistir a uma peça em que entrasse a personagem John Falstaff, a mesma que já encontrara em Henrique IV. Shakespeare terá escrito As Alegres Comadres de Windsor em apenas 14 dias para agradar à rainha. Mas será que agradou? O John Falstaff que entra nesta peça não se assemelha ao que fora personagem das partes I e II de Henrique IV. Aquele John Falstaff fora provavelmente decalcado do cavaleiro (Sir John Fastolf também conhecido como Lord Cobham e ainda como John Oldcastle) que fora amigo do príncipe Hal, o mesmo que foi acusado de assassinar Ricardo II, para depois subir ao trono como Henrique V. Aquele fora o herói de muitas batalhas durante a Guerra dos Cem Anos, entre a Casa dos Plantagenetas (Ingleses) e a Casa de Valois (Franceses), era um patriota, um militar, um homem leal ao seu senhor. Foi até considerado um mártir, pois segundo o Livro dos Mártires de John Fox, terá sido condenado à fogueira como herético da seita de John Wycliffe (criador do movimento igualitário com propósitos semelhantes aos de Lutero um século mais tarde), isto é, como inimigo da Igreja Católica. Terá sido executado no dia 14 de Dezembro de 1417 e existem até imagens que retratam essa barbárie tão comum na época. 
     O John Falstaff d’As Alegres Comadres de Windsor não é um cavaleiro medieval, nada tem de sério e respeitável e não foi condenado a nenhum martírio, excepto o vexame e a chacota a que o sujeitaram as comadres Ford e Page. Tivesse ou não agradado à rainha este novo Falstaff, o que é certo, é que a peça teve sucesso e foi reencenada milhares de vezes ao longo destes 300 anos de vida, no teatro, na ópera e no cinema. Em muitas dessas encenações, Falstaff ganha até um relevo desmesurado, ganha por vezes sobriedade, outras é reduzido à sua própria caricatura. Apareceu pelo menos em quatro óperas, a de Antonio Salieri (1750 – 1825), Falstaff (Dramma giocoso in due atti) representada em 1799, a de Carl Otto Ehrenfried Nicolai (1810 – 1849), Die Lustigen Weiber von Windsor / O Feliz Divórcio de Windsor, estreada em 1849, a de Giuseppe Verdi (1813-1901), Falstaff, estreada em 1893 e a de Ralph Vaughan Williams (1872-1958), Sir John in Love, estreada em 1929. Orson Welles realizou em 1965 The Chimes at Midnight, em que ele próprio desempenha o papel de Falstaff e David Jones realizou para a BBC uma série sobre peças de Shakespeare em que o Falstaff d’As Alegres Comadres de Windsor (1982) teve algum relevo. 
     Certos autores e literatos (Harold Bloom, Orson Welles) consideram Falstaff uma das personagens maiores da criação dramatúrgica de Shakespeare, a par de Hamlet. Parecem ver nele uma espécie de retrato das misérias e fraquezas da humanidade, mas também o eco grosseiro dos seus anseios e das suas quimeras. Enfim, um misto de personagem cómica e trágica. Se assim é, Falstaff terá uma longa vida, no palco e fora dele. Até já tem um adjectivo criado para designar alguém com características físicas, psicológicas e comportamentais semelhantes às de Falstaff: “falstafiano”. 
     Esta é uma peça longa (quase duas horas) e nada fácil de encenar e interpretar. Os jovens intérpretes mostraram ser capazes de enfrentar o desafio, combinando a tradição com a inovação, a naturalidade do discurso familiar com uma certa afectação típica da época, a tensão dramática com a leveza da comédia. Os figurinos coloriram o fundo negro e surpreenderam pelo inesperado (os meliantes que aparecem como gangsters e um karateca chinês, o pajem de Falstaff vestido como uma mistura de majorete e paquete, o próprio Falstaff fazia lembrar um padrinho da máfia). Parabéns pelo excelente trabalho! 

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Nota 1: Cf. Artigo sobre a execução de Sir John Oldcastle – 


Nota 2: Segundo Harold Bloom, todos os autores que vieram depois de Shakespeare têm um pouco dele nas suas obras, mesmo nas obras daqueles que conseguiram construir uma identidade literária própria. Sobre esta ideia, veja-se por exemplo O Cânone Ocidental, Círculo de Leitores, 1997. Veja-se também Falstaff - Give Me Life (Shakespeare's Personalities) by Harold Bloom, 2017 

Nota 3: Descrição de Falstaff num artigo do New York Times: «Not that there is anything ethereal about Fat Jack. This whiskery swag-bellied omnivorous cornucopia of appetites, red-eyed, unbuttoned, sherry-soaked. This nightwalker and whoremonger, a “muddy conger,” swinging at his old mistress Doll Tearsheet, a life-affirming liar whose truth is never to be a counterfeit. 

Falstaff is ancient energy thumping at volume through a temporary poundage of flesh. He is part pagan — the Lord of Misrule on the loose in Eastcheap, and as such his time is short. We meet him first in “Henry IV, Part 1,” already old, lusting at life, drinking pal of the young Prince Hal, who is calculatedly slumming it in London’s East End, like any rich kid running away from the family firm.» 


Nota 4: Estudos sobre a verdadeira identidade de John Falstaff: 

- The case of Sir John Fastolf and other historical studies by David Wallace Duthie, London, 1907 - https://archive.org/details/caseofsirjohnfas00duthiala/page/n7

- The Real Falstaff - Sir John Fastolf and the Hundred Years' War by Stephen Cooper 

Nota 5: Texto apócrifo de William Shakespeare: The history of Sir John Oldcastle, the good Lord Cobham, by William Shakespeare, London, 1734 – 


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Elenco 

Adriana Loureiro 
Ana Beatriz Martins 
Beatriz Carvalho 
Cátia Castanheira 
Diana Sardinha 
Diogo Pereira 
Filipa Lopes 
Íris Sena 
Joana Jorge 
João Duarte 
Maria Mendes 
Mariana Correia 
Nádia Antunes 
Rafaela Alves 
Raquel Simões 
Samira Baldé 
Sandro Dias 
Sara Carvalho 
Sofia Pedrosa 
Tatiana Cavalheiro 

Encenação 
Estrela Novais 

Apoio de Voz 
Gonçalo Costa 

Apoio de Movimento 
Victor Sezinando


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