quinta-feira, 9 de maio de 2019

DRAMATURGIA INICIAL


RAPSÓDIA VICENTINA
Rapsódia constituída por excertos do Auto da Barca do Inferno, Todo o Mundo e Ninguém (Auto da Lusitânia), Comédia de Rubena (Diálogo Infantil), Mofina Mendes, Auto da Feira e Monólogo do Vaqueiro (ou Auto da Visitação), de Gil Vicente. Interpretada pelos alunos do Curso Profissional de Artes do Espectáculo, 10.º 13, no Auditório Chaves Santos da Escola Secundária D. Pedro V, Lisboa, 6 de Junho de 2018. Encenação de Estrela Novais.


     Tornou-se tradição encenar excertos de algumas peças de Gil Vicente no primeiro ano do Curso Profissional de Artes do Espectáculo (Interpretação). Uma tradição que faz todo o sentido por ser Gil Vicente o fundador do teatro português e por a sua obra oferecer uma galeria diversificada de personagens que exige, desde logo, aos potenciais actores versatilidade e capacidade de adaptação. 
     Regra geral, os excertos são encenados de forma livre, transportando as personagens através do tempo e fazendo adaptações nos figurinos e na própria performance. Chega-se assim mais perto de um público que é maioritariamente jovem (os próprios alunos da escola) e dá-se nova vida a velhos textos que, de um modo ou outro, encontram na própria representação a sua actualidade. Embora os excertos apresentados pertençam a géneros diversos (comédia e sátira, auto de moralidade, a fantasia alegórica e o panegírico festivo), a encenação acaba por conciliar dois ingredientes presentes em todas essas peças em doses diversas: a sátira (o humor crítico) e a moralização dos costumes. O que também faz todo o sentido porque um dos objectivos do mestre era precisamente moralizar os costumes através da sátira, tal como sintetiza a locução latina de Santeuil sobre a comédia: Ridendo castigat mores (Rindo se castigam os costumes).
     Para o jovem público, o que sobressai é de facto a sátira e todas as modalidades e gradações do cómico. Os momentos mais graves e reflexivos acabam por passar algo despercebidos como se fossem apenas um compasso de espera até à próxima gargalhada. O público mais atento vê todas essas nuances e acompanha a viagem no tempo desde as primeiras décadas do século XVI até ao presente, sai até dos limites do tempo e percebe a intemporalidade de virtudes e vícios inerentes não apenas às sociedades mas à própria natureza humana, como se de facto não houvesse fronteiras temporais nem verdadeira evolução social e moral. Os tipos vicentinos têm esse atributo de estátuas falantes sem idade que ecoam a voz de múltiplos tempos, não pela linguagem, muito diversa da actual, mas pelas atitudes e pelos juízos que fazem de si mesmos e dos outros.
    Uma parte dessa intenção moralizante prende-se naturalmente com a religiosidade, os preconceitos e a visão do mundo específica de uma época e sociedade. Mas em muitos momentos, Gil Vicente liberta-se dessas linhas de molde e consegue ser verdadeiramente intemporal e universal, como acontece em Todo o Mundo e Ninguém (excerto do Auto da Lusitânia). Pequenos grandes detalhes da encenação, como a escolha de um homem rico (banqueiro ou empresário), materialista, egoísta e ambicioso, que vai enrolando maços de notas e rindo de forma sarcástica, para representar Todo o Mundo e uma modesta empregada doméstica, que fala enquanto lava o chão de joelhos, para representar Ninguém, fizeram toda a diferença. 
     Considerando que esta foi a primeira apresentação pública de folgo desta turma que agora inicia a sua formação profissional, creio que a performance foi muito bem conseguida e merecedora dos aplausos de todos. Continuem o vosso bom trabalho!

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Lugar incerto
(texto introdutório do vídeo que se inicia com cenas do Auto da Barca do Inferno)

No cais, as barcas que não vemos esperam
Antes de partir
Ou naufragar...
Ambas levam passageiros
Os que querem ir
Os que querem ficar
E os que querem ir para outro lugar...

São Ludovino, 7/6/2018

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Retrato de Gil Vicente, c. 1465 - c. 1536, 
por António Nunes Júnior, 1882. 
Paços do Concelho de Lisboa.


     Excerto do Auto da Lusitânia, um dos últimos escritos por Gil Vicente. Foi escrito em 1531 e representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III para festejar o nascimento do seu filho, D. Manuel. Esta peça é habitualmente classificada como uma “fantasia alegórica”.


Ninguém: Que andas tu aí buscando?

Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:

                         delas não posso achar,
                         porém ando porfiando
                          por quão bom é porfiar. 

Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?

Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo

                         e meu tempo todo inteiro
                         sempre é buscar dinheiro
                         e sempre nisto me fundo. 

Ninguém: Eu hei nome Ninguém,

                    e busco a consciência.


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Elenco

Adriana Loureiro
Ana Beatriz Martins
Beatriz Carvalho
Cátia Castanheira
Diana Sardinha
Diogo Pereira
Filipa Lopes
Íris Sena
Joana Jorge
João Duarte
Maria Mendes
Mariana Correia
Nádia Antunes
Rafaela Alves
Raquel Simões
Samira Baldé
Sandro Dias
Sara Carvalho
Sofia Pedrosa
Tatiana Cavalheiro

Encenação
Estrela Novais

Apoio de Movimento e Voz
Victor Sezinando

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