sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

UCRÂNIA - Lições de coragem & liberdade - I

A VOZ DOS LIVRES

I - O azul que nunca será teu

Um prego numa tabuinha decepada
É o que resta de ontem
De há um segundo atrás
De uma vida inteira
Foi-se o cansaço e a esperança
Ficou o ódio eterno ao ditador
Aos assassinos gélidos e paranóicos
Às feras de todos os tempos
Do czar ao bolchevique
Do denunciante ao homem de aço.
Que importa que tenha morrido
Se o império perdura, devora, espezinha, mata?
Raízes nascidas no inferno nunca perdem o veneno
Espalham-se malignas, serpenteiam, infectam
Buscam, caçam, asfixiam
Matam cobardemente, morrem e nada aprendem
Nem com a vida nem com a morte.
Delas brota todo o mal
Como poderia eu querer comer tais frutos
Sentar-me de braços cruzados sobre o sangue dos meus?
Tenho 80 anos, sou tão velho como a casa roubada
Como a poeira destes escombros
Não importam os anos, tenho a força dos livres
Não nasci para ser de novo escravo
A vossa falsa utopia já eu conheço
Levou-me pais e avós, metade da minha vida
Tantas vidas que já não posso contá-las
Não quero contá-las, quero honrá-las
Lembro-me de todos sem nunca os ter conhecido
A noite traz-me os seus corpos decepados
E eu só já tenho este amor enraivecido
Para os amar invencivelmente.
Vivo para ver morrer, a ti, a vós, ao vosso império.
Seja como for, nada podes fazer
Nem tu nem os teus fuinhas nem a tua bomba
Podem vergar a força de um povo livre.
O teu dia está próximo
Tão próximo
Que já lhe sinto o bafo
Já te vejo o esgar tão pouco soberbo
Já vejo ao longe o azul deste céu
Que nunca há-de ser teu…

São Ludovino, 1/12/2022

 

II - IRRECONHECÍVEL


Isto tem de ter algum sentido
Isto tudo que acontece
Isto tudo que não estava aqui antes
Falta tanto neste lugar
Foram-se os dias felizes
Ficou o carrasco e o sádico torturador.
Nesta cela que antes era uma sala da minha escola
Só resto eu, frente a frente com mil demónios
Arrancam-me a pele, tentam arrancar-me a alma
Fazer-me fiel seguidor, traidor, verme estropiado
Antes morrer definitivamente
Ou ceder temporariamente
Sobreviver e depois matar.
Que outra alternativa resta?

Estas palavras não sou eu
Esta não é a minha canção
Este não é o meu hino
Esta não é a minha história
Esta não é a minha poesia
Nasci antes de ti
Roubaste-me a história
Mas não a verdade
Nunca a memória.

Nesta cadeira electrificada, o meu corpo agoniza
Nesta mesa onde as crianças escreviam com orgulho
“Ucrânia livre! Glória à Ucrânia! Glória aos heróis!”
O meu sangue mistura-se ao dos outros.
Por instantes, que vêm e vão
Eu só consigo ver o que lá está
Vermelho e eloquente:
O sangue, o martírio dos resistentes.
A dor adormece e acorda
Procura pontos de luz no negrume
Basta um minúsculo ponto de luz para não desistir
E então eu venço a dor lancinante
E lembro a mesa cansada
A folha manchada de borsch
Em que escrevi mil vezes
”Só tu me guias, liberdade
Pátria amada e intransmissível!”

De novo o ar é cortado pelo silvo dos obuses
O anúncio de mais e mais mortes
Diz-me que é tempo de partir
Mas o choque eléctrico faz-me resistir.
Atordoado, penso que ouço lá fora
A minha língua, a voz libertadora dos meus.
Não é uma ilusão, a minha força regressa
Alimentada apenas pela promessa de liberdade.
Que inútil é a perversidade dos brutos!

Voltei ao lugar onde ficava a minha casa
Onde havia uma sala com uma mesa
Companheira de luta, de sonhos e pesadelos.
É agora lenha que me aquece neste inverno
Agora escrevo nos troncos das árvores vivas
Nas pétalas dos girassóis que hão-de vir
As mesmas luminosas palavras
”Só tu me guias, liberdade!”

São Ludovino, 1/12/2022

III - INEXPLICÁVEL


Não me perguntes porquê?
Porque invadem, torturam, matam?
Não há uma razão para o mal
O mal é o mal
Não precisa de mais definições ou explicações.
Não existem causas que justifiquem o mal
O mal é um efeito do mal
Causa-se a si mesmo
Propaga-se lenta ou velozmente
Desde que seja tolerado, alimentado, temido.
O mal alimenta-se da arrogância e da estupidez
Da cobardia e da hipocrisia.
O mal precisa de muitos servos
Sempre mais do que os livres.
O mal tem um só líder
Um inventor de causas e pretextos
Um inventor de verdades e quimeras.
O líder é um polvo metálico
Com braços e ventosas muito eficientes e letais.
O líder é teólogo, ideólogo, inquisidor e executor
O líder não cabe em nenhum território
Tem de ir sempre mais além
Enroscar os seus braços em redor de mais gargantas
Arrancar mais gritos e mais vivas dos fantoches:
“Sim, mestre! Sim, mestre!
O mal é o bem e o bem é o mal
Veneramos este mal porque é o supremo bem!”

Não me perguntes porquê?
Porque há sombras que te perseguem
Garras que te esmagam
Vozes que te falam nos ecrãs, nas paredes da tua casa
Nas ruas, nas fábricas, nos escritórios, nos campos
Que te dizem quem és, quem deves ser
Tudo o que podes ser
Se podes ou não existir
Se amanhã serás outro ou ninguém
Que te dizem como podes ser bom se fores suficientemente mau.

Não vale a pena falar da engrenagem, do grande plano
Da engenharia latente que tudo corrompe.
Para quê falar do óbvio?
Não percebeste ainda que as regras do mal são corruptas por natureza
Aplicam-se por acordo tácito e recíproco.
Não vale mesmo a pena perguntar, se não quiseres responder.
Ousa, duvida, acredita, acredita em ti, responde.
O mal é um nevoeiro extremamente transparente e antitético.
Podes chamar-lhe ditadura, autocracia, teocracia
Podes chamar-lhe liberdade, democracia, utopia.
Pouco importa.
O mal determina que todos sejam conceitos vazios e equivalentes.
O mal é um grande designer, desenha a realidade com rótulos
Símbolos decorativos, labirintos, espaços de transição em cenários fixos
O mal é loquaz e persuasivo, atento e extremamente interventivo.
O mal engana-te com o seu jogo de palavras
Os seus equívocos e paradoxos.

E tu, sim tu, que anuis e condescendes,
Tu que estás a salvo no teu reduto
Que procuras explicar o que é claro e transparente
Justificar o injustificável
Com veemência moral, parcial, invertida
Tu que interrogas e acusas David, mas nunca Golias
Tu que acreditas em falácias e na superioridade dos prepotentes
Que acreditas que tudo isto é feito por ti, para teu bem e salvação
Que acreditas na força da ordem, e na ordem dos fortes.
Tu sabes, não finjas que não sabes
Sabes o que é o mal
Sabes por que vieram, por que matam, por que te querem a seu lado.
Não te parece que em vez de perguntares deverias acordar dessa fé
Dessa dormência, essa peçonha viscosa
Simplesmente abrir os olhos, lavar a mente
Respirar, ser
E depois agir?

Ah, ainda estás adormecido e convencido
Estás confortável, bem vejo
Vês o cortejo fúnebre passar
Nada te diz a coragem, o sacrifício
A imensa dor de milhões.
Não é tua a dor, bem sei
Achas-te demasiadamente importante para ser humano
Simplesmente humano
Rendes-te à banalidade do mal.
"É a ordem natural das coisas", insistes…

Os que se rendem à irracionalidade desumana do mal
Nunca serão independentes, nunca serão livres
Nunca serão verdadeiramente.

São Ludovino, 1/12/2022



Peace by ©Waldemar Walczak.

Catherine, 70, Borodyanka, Kyiv region, Ukraine, October 20, 2022, photo by © Emilio Morenatti.

Mikhailo Dianov, Azovstal defender, photography by ©Dmytro 'Orest' Kozatskyi, May 10, 2022.



Textos Intermináveis - II

PINÁCULOS DE TOPÁZIO

Há locais na terra onde chega quase tudo…

Chegam vendedores, publicitários e contrabandistas,
Pirotécnicos, tatuadores, ciganos, turistas de calções,
Especialistas em lavagens ao estômago e ao cérebro,
Bocas risonhas despejando melífluos contos do vigário;
Chegam gatos siameses, cavalos de Tróia,
Alvos arminhos e focas do Árctico;
Chegam cartas em atraso, cartas perfumadas,
Cartas viciadas, cartas circulares, círculos viciosos
Embrulhados em celofane e veludo,
Jogadores de poker sentados em nuvens de fumo,
Jogadores de xadrez tão velozes como a luz,
Jogadores de futebol petrificados fora de jogo,
Faquires, ilusionistas e hipnotizadores,
Pepitas, pérolas e clepsidras,
Andorinhas, computadores,
Raios de sol perpendiculares,
Memórias e esperas e conchas com areia,
Tigres sossegados com o tempo,
Meninas com brincos coloridos e vespas nos olhos,
Videntes, profetas, ovnis, ministros, horóscopos,
Folhetos que anunciam o fim do mundo,
O fim da estrada, o fim da dor,
Roupa lavada, roupa nova, mendigos, canções, folhetins,
Fotografias de cidades modernas,
Revistas que prometem o prazer de mil e uma formas,
Notícias de exemplares raros em extinção,
De exemplares únicos em exposição,
De quadros roubados ou falsificados,
De pessoas desaparecidas, em fuga, em chamas,
De pessoas encontradas a passar a fronteira
Clandestinamente, irresistivelmente esguias, velozes,
 
Encontradas a rondar o aeroporto,
Encontradas azuis junto ao mar,
Encontradas a balbuciar numa estação de metro,
Encontradas sós num concerto rock,
Encontradas com manchas de enxofre e mercúrio,
Encontradas nuas com um molho de chaves na mão,
Encontradas a desenhar peixes nas montras,
Encontradas num quadro abstracto,
Encontradas ausentes em parte incerta,
Encontradas num labirinto em Pequim,
Em círculo na cama da prima Antonieta,
Encontradas perplexas no jardim da Celeste,
Encontradas num barril de dólares na mansão do tio Samuel,
Encontradas a espreitar a bela Maria
― que atingiu um relacionamento fenomenal com os pombos brancos ―
Encontradas estóicas e exangues
Encontradas nos braços lassos de Epicuro
Nos braços cínicos de Diógenes
Nos braços cosmológicos de Empédocles
Nos braços esquivos do infinito Pessoa
Nos braços amplos de Emerson, Thoreau, Whitman
Nos braços universais da mãe natural e ubíqua
Encontradas intactas na curva da estrada
Estáticas, rectilíneas, frenéticas, apócrifas, hipotérmicas febris
Teimosas em fúria, espúrias, incandescentes em contramão
De braços abertos em ângulo raso, lasso, crasso
De mãos dadas em sentido literal, único, lúdico, fatal
Sem rumo, sem prazo, sem frémito ou cansaço
Encontradas invictas nas pedras da calçada
Encontradas esquecidas nas pregas de um sonho
Encontradas perdidas no labirinto de Creta
 
Perdidas numa expedição em busca da prima Vera,
Do paradigma perdido, do sintagma convicto
Do axioma contorcionista, do teorema funâmbulo
Perdidas em Moscovo na Convenção dos Não-Alinhados,
Perdidas no negrume de vermelhas e alvas utopias
Perdidas nas páginas do único jornal do mundo
Perdidas no desenlace do livro interminável
Perdidas extáticas no túmulo de Tutankhamon
Perdidas à procura de Humphrey Bogart em Casablanca,
Perdidas, perdidamente perdidas em extrema perdição

Encontradas a executar a metafísica do amor de Schopenhauer,
Encontradas com o lápis de Toulouse-Lautrec no Moulin Rouge,
Encontradas com sessenta gramas de heroína,
Vinte e um gramas de vida, cinco gramas de alma
Encontradas a escrever cartas a Napoleão,
À mãe, aos ministros dos Negócios Estrangeiros de todo o mundo,
Ao primeiro amor, ao próximo amor, ao amor impossível,
Encontradas em flagrante delito, delíquio, delírio, delícia,
Delibação, deletério, delação, delapidação,
Encontradas empunhando armas, núcleos
Dermes e epidermes de átomos
Gatos e leões e tigres de Schrödinger
Demagogia com queijo e uma ratoeira cintilante
Denodo, mãos nuas, mãos sujas, mãos futuras
Encontradas no estaleiro da obra em desconstrução,
Deportadas sem aviso para o reino da (des)ilusão
Alinhadas com toda a precisão
Nas estruturas traiçoeiras do acaso
Nas escadarias dos templos
Nos corredores do poder paralelo
Alternativo, subversivo, imersivo
Nas rodas dentadas das fábricas
Apanhadas na voragem da ventania
Provavelmente sós,
Provavelmente violentas
Provavelmente imprecisas
Provavelmente promíscuas
Desinteressadamente desatentas e lentas
Detidas nas fronteiras do tempo
Sem mapas nem bagagens
Detidas porque sim, porque não, porque talvez
Porque o perigo espreita a fera e a presa
Só porque existem e são quem são
Azuis, laranja, brancas, verdes, vermelhas, amarelas…
Porque estão acordadas ou adormecidas
Porque caminham ou se despenham de inalcançáveis precipícios
Porque resistem ou desistem
Porque persistem ou se dissolvem na poeira
Porque são a sombra ou a claridade
Porque respiram, inspiram, transpiram
Submissas, insubmissas,
Quixotes e moinhos de vento
Comuns como o ar e o sal dos oceanos
Encontradas espantadas e irrepetíveis
Encontradas a falar com os seus botões,
Encontradas a pôr o carro à frente dos bois,
Dos camelos, dos elefantes e até dos ocapis
Encontradas por acaso, por mero acaso
Por completo e absoluto acaso
Quase desaparecidas
No lado oculto da lua
Numa versão inédita de um mito grego
Numa saga nórdica inacabada
Minúsculas na palma da mão de um gigante atlântico
Cantarolando no eco sinfónico do vento
Dissolvidas no esplendor de uma aurora boreal
Hesitantes entre duas vielas de Paris
Reencontradas junto a uma erva daninha no topo do Evereste
Abraçadas às rochas nas grutas de Lascaux
Deslizantes nos desfiladeiros do Utah
Sedentas, sós, arenosas oásicas nas dunas do Sahara
Relendo livros de areia, o passado, a história do tempo
Transfiguradas na retorta do alquimista
Vislumbradas na linha mutável do horizonte
Vistas a sair do ventre da mãe
Do coração dos que amam deveras
Dos que odeiam sempre
Do banco, do hospital, da feira da ladra
Vistas de relance a beber champanhe no banco de trás de um Rolls Royce,
A devorar desalmadamente lagostas torturadas
A regurgitar num requintado lupanar
Vistas claramente a limpar as dedadas de um revólver fumegante
Ou subrepticiamente a retocar a máscara,
Debruçadas com os seus diamantes dos camarotes de honra,
Enquanto outras as olham como boi para palácio de feno, veneno dourado,
Encontradas zangadas num dia de cobrança ou nevoeiro,
Encontradas mortas... Somente mortas
Sem explicação, sem causa necessária ou suficiente
Apenas mortas… irreparavelmente mortas…

Chegam notícias de pessoas que voltaram as costas para o Oriente,
De estátuas poliédricas de vidro verde inquebrável,
De estátuas de jaspe roubadas do túmulo do imperador da China,
De estátuas que fogem da própria sombra,
De sombras que invadiram o teatro de Moscovo
E nunca mais foram vistas, vivas, dignas
Notícias de pessoas que circum-navegam o mundo
Em barcos à vela ou copos de whisky,
De pessoas que pararam ali,
Enquanto sonham eternamente com além,
Pessoas a tricotar com seda os dias vulgares,
Pessoas a amarem sem amor,
Pessoas sem sombra, pessoas ninguém
Pessoas completas, pessoas complexas, intactas
Pessoas simples, pessoas simplistas, pessoas de bem
Pessoas imensas, pessoas diversas, pessoas inversas
Pessoas planificadas, pessoas sem planos, sem danos
Pessoas raptadas entre o dia e a noite
Pessoas lúbricas, púdicas, concupiscentes
Pessoas mais além…

Novas e velhas tribos, castas e castos,
Ilhas e arquipélagos e vulcões
Istmos de cristal, penínsulas ensolaradas ou geladas,
Cabeças, pernas e braços de continentes
Cálamos, tálamos e dosséis de fundos marinhos abissais
Preâmbulos e ditirambos bailando nos areais
Orações védicas, profundas, intraduzíveis
Avatares do Grande Insondável
Inscrições em sânscrito, persa, gaélico, lusitano
Mensagens de amor voador, asas amantes amadas
Ícaros, Prometeus, Sísifos, Adamastores, Circes e Pandoras
Peregrinos suados, rotos devotos, maltrapilhos famintos
Filantropos de Quioto, Bombaim, Tombuctu e Nova Iorque
Altruístas fraternais, maternais, frugais, nunca demais
Terroristas, sectários, fanáticos, bombásticos com rastilho
Cegos de raiva, disfarçados, replicados, pérfidos, fétidos
Homicidas, suicidas, fratricidas e outros sufixos mortíferos,
Insecticidas, herbicidas, fungicidas, sulfamidas
Ditadores genocidas, democidas, humanicidas
Banqueiros pantagruélicos, famélicos, famosos, gulosos, tinhosos
Celeiros, palheiros, sapateiros, pés descalços, poeira, lama, nada
Notas de banco, notas de dívida, notas musicais
Informais, longitudinais, horizontais, oblíquas, perpendiculares
Burocratas, actas, alpergatas, sonatas, fragatas e beatas
Tecnocratas, folhas de cálculo, folhas de flandres, contabilistas,
Plutocratas, plutocretinos, mineiros do Hades, carcereiros do paraíso
Cleptocratas, sanguessugas, parasitas, filigrana falsificada, enlatada,
Paraísos fiscais, artificiais, iscos, anzóis, faróis, Cila e Caríbdis
Czars insaciáveis com o império na tripa, no ceptro, na mitra
Emires, sultões, califas, sabres, escravos, odaliscas, pataniscas
Receptadores, penhores, usurários, prestamistas
Cleópatra, Midas, Ptolomeu e a rainha do Sabá
Rothschild, Rosencrantz e Guildenstern
Andy Warhol, Marilyn e Al Capone
Cortinas de néon, cortinas de fumo, cortinas de cetim
Lenine, Estaline, Pavlov, Gastev, utopia violada
Gulags, purgas, valas comuns, muros de aço,
Bandeiras, sinais, símbolos, slogans, ordem e obediência
Endoutrinadores, escultores de mentes, oleiros sem dores,
Armas de destruição maciça, dissuasoras inúteis, apocalípticas
Falsificadores de arte, notícias, quimeras, éticas patéticas
Linguistas formalistas, estruturalistas, generativistas,
Construtivistas, atávicos, pavónicos, erráticos, erróneos,
Bizantinos cheios de bizantinices, turbantes, garras ululantes, serpentes
Chineses desaparecidos aos milhões, chinesices do Grande Salto para a Frente
Para trás, para o lado, utopia cadafalso, arrozais decapitados
Florentinos, floreados dantescos, peste negra, branca, última, próxima
Fotógrafos imperceptíveis, imperfectíveis do microcosmos e do macrocosmos
Cineastas furtivos, selectivos monocromáticos e policromáticos
Do film noir, rouge, vert et blanc, da vanguarda, da retaguarda e da pós-modernidade
Dramaturgos, encenadores, cenógrafos e actores da grande comédia do mundo
Teatro do absurdo, de fantoches, de sombras, de alto e baixo coturno
Beckett, Brecht, Shakespeare, os que vieram antes
Os que vieram depois e os que hão-de vir
Sátiros e ninfas, bailarinos, florestas, incêndios, fotossíntese
Loucos pedagogos, sensatos, sossegados, sentados, peripatéticos
Romancistas cansados, irritados, anarquistas, niilistas, nudistas
Poetas futuristas, surrealistas, calados, silenciados, executados
Melómanos harmónicos, melódicos, polifónicos, operáticos
Personagens secundárias, plenárias, subsidiárias, subsidiadas
Figurantes célebres, substitutos, mortos em duplo combate
Protagonistas impertinentes, suspiradores, vilões alados enfadados
Arquitectos e engenheiros de jardins das delícias, do mel, do fel, da loucura
Casebres, mansões, condomínios fechados, isentos,
Intocáveis mesuras, etiqueta perneta, protocolos
Segurança privada, alcateia intocável,
Parques temáticos com entrada gratuita, fortuita
Candidatos a candidatos, a presidentes, ministros, deputados
Legisladores, pastas, prados e pastos
Escriturários, funcionários tributários, notários, perdulários
Juízes, advogados, taxistas, sentenças, perjuros e perjúrios
Eleições simuladas, viciadas, transparentes, indiferentes
Referendos, plebiscitos, comités, concílios, conselhos gerais e restritos
Estatísticas, esteticistas, estetoscópios, estroboscópios
Contrabandistas experientes, traficantes de tabaco, álcool puro,
Ouro fora da lei, influências, preferências, animais e gentes
Tráfico e tráfego estridentes, capciosos, ociosos
Fome daninha, vizinha, dia após dia
Dilemas, emblemas, problemas, gemas de ovos, discos de Newton,
Códigos legais e ilegais, deontológicos, epistemológicos e ontológicos
Espiões, infiltrados, escutados, liquidados, agentes duplos, triplos, infinitos
Aviões supersónicos, kamikaze, barcos de loucos,
Estradas intransitáveis para o céu, para casa, para a liberdade, para a verdade
Escorregadias e belas auto-estradas para o inferno, o exílio, o bairro, o limbo
Honra e desonra, equívocos, óbvios, eloquentes, infames,
Egotistas, narcisos, ranúnculos, criogenia, autocracia absoluta
Megalómanos, ciclopes de aço, titãs de gelo, areias movediças
Inventores improváveis, laboratórios infectados, sépticos, anti-éticos
Robots intrigados, cépticos, cibernéticos, patéticos, ferozes, lúdicos
Máquinas que ordenam, empilham, fazem bolas de sabão e antologias
Contratos intrincados, impostos, taxas e taxinhas, clausulados unilaterais
Dívidas impagáveis, inflacionáveis, irresponsáveis, peculato, economato
Nepotismo clubístico, abrangente, adstringente, habitual, intra-institucional,
Hipotecas do passado, do futuro, da casa, da paz, da liberdade
Da democracia… onde anda a democracia?
Promessas periclitantes, compromissos, suspiros, fonemas profícuos
Conversas hiperbólicas, redundantes, íntimas, casuais, agendadas, adiadas
Encomendas carimbadas, atrasadas atrás do tempo, do balcão, da fila de espera
Malas transviadas, esbaforidas, poliglotas,
Passageiros sem fôlego, atrasados, precoces, previdentes
Pangloss sempre no melhor dos mundos possíveis
Papistas mais papistas do que o papa, Pedro, Paulo, João
Mas não Cristo, rebelde pacífico, crucificado
Inquisidores, iconoclastas, pederastas, pedintes, pedaços de gente
Anacoretas, anacondas, animistas, transcendentalistas
Idealistas, darwinistas, criacionistas, fatalistas, optimistas…
Criaturas estranhas deste planeta...

Chegam amigos e inimigos,
Em dias imprevistos
Em invólucros, em caixas chinesas, em matrioskas
Ou em carne, osso e sangue, exangues,
Chegam aves marinhas,
Copos a verter sede,
Estrelas (de)cadentes,
Dinossauros, quasares de coral,
Constelações desconhecidas,
Tratados e alianças de guerra e paz,
Versões da liberdade em infinitos volumes,
Palavras extremamente flexíveis
Extremamente mutáveis,
Verdades caleidoscópicas,
Compêndios da memória colectiva,
Xailes de esquecimento,
Singulares impressões da alma,
Que passa, que fica, que volta,
Chegam cartas ao futuro,
Árvores pensadoras,
Ouriços filosóficos,
Plantadores de absurdo,
Monges,
Pirilampos,
Piratas,
Rubis,
Traidores,
Fingidores exímios,
Histórias,
Ecos,
Miragens,
Gotas,
Inocentes,
Beijos,
Oceanos,
Sal…

...enfim, pode chegar quase tudo, mas o Verão...

Suy / São Ludovino, 29/4/1985

Life blood - I, photography by São Ludovino.



Textos Intermináveis - I

     Aquilo a que costumo chamar "textos intermináveis" ou "textos de processo" são isso mesmo: textos que podem ser prolongados indefinidamente a partir de um processo de construção formal, assente numa ideia ou conceito. A dimensão formal e a dimensão conceptual são interdependentes, alimentam-se reciprocamente. Fazer perguntas é sempre um processo profícuo e pode aplicar-se às mais diversas linhas de pensamento. O próprio processo nunca é fechado e permite construir mapas semânticos com ramificações, sobreposições, jogando com o literal e o metafórico, explorando paradigmas e o potencial dos campos lexicais e semânticos. A interrogação cria também uma estrutura dialógica mesmo que o texto seja um longo monólogo. No caso do texto "Sei lá...", escrito em 1984, parte de uma interrogação sobre aquilo que sabemos e desconhecemos: "Saberá alguém". Tudo o resto são possibilidades de resposta ou de falta dela.   

SEI LÁ…

Saberá alguém
cumprir os poemas
ser instrumento e imagem fiel
das palavras.

 Saberá alguém
que há cavalos selvagens
em New York.
E ilhas de coral
na Praça Vermelha, de manhã
sobre a neve e as pegadas da Revolução
que o fantasma de Lenine desenha
com o dedo roxo de frio.

Saberá alguém
que quando se ama e deseja o absoluto e o infinito
se teme ainda o segredo da morte
e das viagens clandestinas nos barcos
brancos da loucura.

Saberá alguém
que há sempre mais alguém
na nossa solidão.

Saberá alguém
que nada é imutável
nem sequer a perfeição
e tenho a certeza de que as borboletas não choram
por terem apenas duas semanas de vida com asas.

Saberá alguém
procurar pérolas no fundo do Pacífico
sem despertar a insaciedade dos tubarões
e invejar os peixes por não desejarem
um paraíso.

Saberá alguém
que os peixes do Pacífico têm contudo desejos excessivos.

Saberá alguém
que as anacondas não têm destino
e só existem no Amazonas
e que no Amazonas
o tempo é devorado apenas pelas piranhas.

Saberá alguém
que a sede é excessiva nos trópicos
é indefinida no equador
e assassina nos pólos.

Saberá alguém
que as contradições
são como os cactos no deserto:
visíveis, dolorosas e persistentes,
imprescindíveis como as miragens,
indissolúveis como a areia,
inegáveis como os espinhos
balsâmicas como a seiva.

Saberá alguém
de alguém.

Saberá alguém
de alguém assim
assim gémeo e inconfundível.

Saberá alguém
que nos quartéis-generais
há sempre alguém que fala alemão como o Führer.

Saberá alguém
que um Mercedes preto e o papel higiénico
são imprescindíveis a um ministro
para manter o equilíbrio mental.

Saberá alguém
que o equilíbrio mental do poder
é pura ilusão.

Saberá alguém
que as joaninhas
têm as asas mais misteriosas
e que o mais comum dos humanos
tem sempre umas mãos misteriosas
que transformam o universo numa imensa joaninha
com sóis vermelhos e buracos negros
que voa dentro de si mesmo
sempre que descobre o absurdo na Primavera
e não se lembra mais de nada

Saberá alguém
que Ícaro
também tinha milhões de irmãos gémeos
e nenhum desistiu da obsessão comum
para que os sonhos ainda existam no futuro
os arquitectos da mente não morram de tédio
e assim o senso comum tem ainda quem castigar
e os modestos mestres-escola
têm ainda um enigma para os confundir.

Saberá alguém
que embora tenha sido sempre assim
a alquimia se tornou irreversivelmente um ramo
da meta-psicologia que persiste em não poder
ser científica
e que a pedra filosofal se tornou um paradigma
indistinto da vontade
o talismã de todos os desejos
quer o alquimista demonstre ou não
que o prazer é o elixir que faz o cosmos
e o tempo infinitos
o movimento de rotação ou translação
a obstinação ou a indiferença
o cachimbo d’água, o suicídio ou a felicidade.

Saberá alguém
saberá.

Saberá alguém
de mim
aqui
a uma distância indizível de quase tudo.

Saberá alguém
que as mil e uma noites
se repetem incessantemente pelos tempos
às vezes em cada segundo
para quem vive em Finisterra.

Saberá alguém
que o sabor da sidra
alucina os cavaleiros andantes da planície
e que Dulcineia é uma hidra de sete cabeças
que todos os homens desejam
porque não tem mãe consanguínea
descende directamente e apenas do impossível
e é imortal como todos os nós cegos
deuses e traidores.
Se tivesse memória recordar-se-ia que de facto
nunca nasceu sequer.

Saberá alguém
que as bandeiras de tréguas
são sempre vermelhas
por mais brancas que as pintem
e a rendição um axioma absurdo
onde a aranha tece a teia da raiva
e da revolta adiadas
e nesta guerra os exércitos
são apenas de pensamentos
sonhos e gotas dispersas de sangue de ideias.

Saberá alguém
que os brincos da princesa
eram azul metálico
e foram a causa da Pornex 84
e da queda das Nações Desenvolvidas.

Saberá alguém
que há um charlatão à solta no jardim
que deus é um ourives
e tudo no mundo são invenções
as duas mais fabulosas são os espelhos e o amor
mas ainda as facas e a cabra-cega.

Saberá alguém
que as histórias da carochinha
têm intenções bem mais duvidosas
que as “desflorações”.

Saberá alguém
que as realidades
que mais nos fascinam e nos movem obstinadamente
são as que nunca poderão ser reais
aquelas que conseguimos abstrair de tudo
e colocá-las dentro de nós
como uma suprema realidade
aquelas que tocamos com uma mão
ao mesmo tempo que as olhamos
por um binóculo mágico de abandono.

Saberá alguém
que a sanidade não existe
e os muros dos asilos não são
brancos por acaso.

Saberá alguém
que Sísifo tinha cabelos longos e uma barba infindável
embora permanecesse sempre mais jovem
que a pedra
e que o topo da montanha
é uma cratera com um fundo de mar doce
e não um pico pontiagudo.

Saberá alguém
que a nossa história
é a pré-história do inconsciente
e os bisontes e os mamutes
foram pintados nas cavernas pelas divindades
que depois cansadas do inacessível
encarnaram em nós
porque pensaram que éramos
prismas de vidro transparentes
e nunca tínhamos sono nem olhávamos
para trás nem víamos através das paredes
nem nos parecíamos irremediavelmente
com os seres estranhos dos seus sonhos.

Saberá alguém
quem mora agora na casa onde nascemos
e da qual perdemos a chave nos pântanos do tempo.

Saberá alguém
dos tapetes voadores
bêbados de purpurina e vertigem
em que passámos a rasar
sobre os monumentos do inexistido
e nos reconhecemos depois sem grande surpresa
num filme de aventuras fantásticas.

Saberá alguém
que os lagartos e os trapezistas
viajam numa redoma de vidro
pelas florestas densas e abissais
e pelas vertentes dos vulcões
em busca de um diamante azulado
que embora perpetuamente índigo cristalino afinal é incolor
e mesmo assim azul.

Saberá alguém
que há peregrinos em todas as cidades
e alguns mantêm as mãos fechadas nos bolsos
segurando as chaves de uma casa imaginária
onde tentam entrar
cada vez que fitam uns olhos como se fossem o mar
mas todos os peregrinos são estrelas cadentes
que nunca saem à rua nem chegam ao céu
e deambulam pela Via Láctea das ruas
como fotógrafos microscópicos
por um tapete persa.

Saberá alguém
desejar ser perpetuamente cristalino
sem perder definitivamente a posse da sanidade
que é apenas constante na ausência de desejos
e por isso impossível
ou possível apenas numa impossível solidão de plenitude
ou no útero de uma morte
de que apenas os suicidas podem beijar o plasma
com desespero e abandono
e depois tornar-se inquilino do absurdo
com os olhos abertos brilhantes e frescos de serenidade.

Saberá alguém
que o velho contrabandista
só trocava segredos com o ibex.
Dos montanheses de barbas brancas
aceitava metamorfoses do ouro
em troca de textos paranóicos
e páginas rasgadas do exemplar original
da Bíblia e/ou do Kama Sutra.

Saberá alguém
que os amantes morrem na neve
sob avalanches de máscaras negras
os beijos dos ursos brancos
e os aplausos insistentes e insatisfeitos dos pinguins.

Saberá alguém
de ti
aqui
a uma distância imprevisível do sonho.

Saberá alguém
que as epifanias de Joyce
são as únicas verdades possíveis
no palco da própria vida ou da escrita
onde o xadrez se joga com paradigmas
de múltiplos cérebros mesmo que o rosto seja só um
e as peças multicolores lêem no fundo dos olhos
dos camaleões-outros que o invadem
e mesmo dos camaleões-eus
porque na noite anterior
tinham sempre sonhado com deuses
que transformavam o espectro solar em palavras
ou oceanos desconhecidos com filmes sobre peixes transparentes
e os actores revelavam todos os segredos das expressões
para matar definitivamente o teatro
e as personagens poderem ser pessoas
simultaneamente fantásticas, intocáveis, críveis, vulgares e simples.

Saberá alguém
que a solidão é incomparavelmente
mais povoada do que a China Popular
mais apinhada de relatos e fantasias que a Biblioteca de Alexandria
e que nela vivem muitas tribos e povos
que nunca foram descobertos
embora alguns corram sucessivamente e constantemente
o perigo de extinção…
e provavelmente nunca o serão
porque há muitas crateras num eu só para um eu só
e às vezes em vez de olhar para elas
cai lá no fundo e tudo fica entregue
apenas ao esquecimento, ao tactear na escuridão
a um fascínio caótico
ou a um cárcere de anestesia.

Saberá alguém
que as autoridades suspeitam que alguém
tenha convertido as hierarquias
num tabuleiro de xadrez
e ficam em pânico e tornam-se ditadores
porque não sabem jogar
mas pressentem a existência de variantes infindáveis.

Saberá alguém
que não há diferença alguma
entre um pensamento, um instante e um engano
entre uma areia, uma história e um homem
entre a chuva, a memória e um mito
entre o perigo, o azul e a poesia
entre um espelho, a dialéctica e uma estátua
entre Borges, um caleidoscópio e a caverna de Platão
entre Kafka, um jardim de areia
e os ecos que se ouvem nas caves dos labirintos
onde monstros acéfalos se encaixam no grande puzzle
do grande caos do grande real.

Saberá alguém
compor tranquilamente um interlúdio
— com uma melodia clara e nunca entrecortada
por silêncios ferozes e estridentes
nem interrompida a meio da página —
a imagem e semelhança da inquietação da lucidez
e depois continuar a fazer bolas de sabão
e jogar às escondidas com o esquecimento
quando sabe que as aranhas continuam
a conspirar atrás de uma árvore
onde era suposto estar apenas Newton
ou a Branca de Neve

Saberá alguém
que os nómadas são todos morenos
porque há pó nas estradas e noite nos olhos e nos nervos
têm obsessões fixas e lêem sinas
nos hieróglifos dos poemas de êxtase
ou nas pestanas dos estranhos que os olham com nostalgia
e lhes beijam à distância a testa
extensíssima de sede suor e tatuagens.

Saberá alguém
amar simplesmente
sem condições nem sonhos futuros
sem espera nem ilusões tangíveis
sem acreditar nem procurar nada
e ainda assim não desistir sem querer.

Saberá alguém
olhar o seu próprio desespero por um telescópio
como se ele pertencesse a um firmamento muito longínquo
e acreditar sem querer que é uma sombra-máscara apenas
indistinta desse grande rosto em que estrelas brilhantes demais
não cessam de se desintegrar.

Saberá alguém
conter-se à porta dos labirintos da memória
espreitar apenas o calendário dos momentos que vão chegando
ou perder o rumo apenas quando a tempestade é iminente
e os raios vão iluminando parcialmente este ou aquele recanto do labirinto
que começa a rodopiar à volta da cabeça
e quando a tempestade pára ele já aterrou no topo
de uma daquelas montanhas inatingíveis
e é depois o deserto que a rodeia o único que contém
a tentativa de a escalar
a menos que o tempo tenha parado
ou todo o tempo se tenha reduzido a um irrecusável momento.

Saberá alguém
soletrar a verdade até ao fim
sem hesitar
sem se interrogar nunca.

Saberá alguém
devolver a alma aos habitantes da ilha
depois da plena simbiose dos sentidos plenos de alma
sem lhes tirar em troca uma única ave-do-paraíso.

Saberá alguém
erguer e povoar o seu reino
apenas com simetrias do sonho
apenas com paisagens secretas
apenas com os olhos dos viajantes
ou dos visitantes saídos dos quadros surrealistas
apenas com animais selvagens
tribos de um só ser
e um totem de ébano serenidade e marfim…

Suy / São Ludovino, 9/10/1984, (4h manhã)



Othelo - excerpt, photography by São Ludovino.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Palavras Antigas - III

ONDE CABEM TODAS AS COISAS

Lá no cimo do monte
As janelas estão abertas para Oeste.
Os olhos das aves repousam sob um céu quase lilás.
Encostados aos rochedos os guardadores de rebanhos
Escutam os sinos das catedrais de cidades antigas
Ecos de rituais e temores trazidos pelo vento
Misturam-se com o granito selvagem
E lá ficam para sempre.

Numa prece
Alguém me pede para entrar na sua cabana.
Diz-me que tem um livro que tenho de ler
Fala-me no mesmo tom místico
Das ervas e de deus
Diz-me que tenho de aprender a linguagem dos elementos
Sentir as vozes de todos os seres
Dialogar com os átomos e as células
Abdicar do mundo e da razão pura
Para entendê-lo plenamente.
Diz-me que é preciso começar sempre
Primeiro pelo silêncio
Deixar os olhos pairar
O olhar diluir-se nas coisas
E o coração tem de acompanhar todos os ritmos
Para a alma sentir o espírito de todas as coisas
Bater ao ritmo das cascatas, do crescer das plantas
Da tempestade e da bonança, da luz e da sombra.
Depois um lago oceânico vem mostrar-nos o nosso reflexo
No reflexo de tudo
E a quietude fica nas nossas mentes.

A aragem entra por uma fresta
A barba branca do velho lembra-me o esquecimento
Mas a humidade azul-cinza dos olhos
Não me deixa duvidar da sua memória.

«Este livro nada explica;
Não explica os segredos da vida ou da morte
Da passagem do tempo ou da permanência da paixão.
Este livro narra apenas;
Conta-te a história de todas as coisas
Embora nenhuma delas tenha fim
Ou possa cindir-se de todas as outras.
Embora o isolamento seja o caminho para a sabedoria
Nada vive isolado neste mundo
Nada é livre ou completo
Se não na unidade com o todo.
Para entenderes este livro
Terás de mergulhar com a mesma coragem e o mesmo fervor
Nas trevas e na luz
Sem, contudo, jamais as confundires.
Só quem tiver uma alma imensa e pura
Uma mente arguta e determinada
Poderá ler integralmente este livro
Abarcar num só pensamento as infinitas histórias
Entender o mundo no seu caleidoscópio de possibilidades
E conviver pacificamente com os mistérios
Que nenhum sábio poderá desvendar…
Terás tu a alma e a mente
Por que este livro espera?
Terás tu a voz, o olhar, o coração
Do iniciado que este livro poderá conduzir
Ao Templo Cintilante…?»

Abriu o livro na primeira página
E pediu-me para ler.
A voz que ouvi não era a minha
Mas a das coisas feitas palavras.
Todos os seres e todos os tempos
Estavam vivos naquele livro
Através das palavras…

A cabana agiganta-se
Abóbadas e naves
Rodeiam-nos imprecisas.
Não tem fim este espaço sagrado.
Lá à frente fica uma cordilheira rosada.
Só a lareira resta da cabana-realidade.
Os lugares, os seres, o mundo
A matéria e o espírito de todas as coisas
Emergem das páginas
E vão-se dispondo à nossa volta
Até ao infinito
Da chama refulgente deste tronco
Ao primeiro raio da primeira estrela.
Assistimos em simultâneo
À recriação do universo.

Sentamo-nos na laje do soalho
Para contemplar o fluir da grande obra
E deixamos a nossa fé seguir o rumo
Dos ritmos infinitos do tempo.
As páginas volteiam-se uma sobre a outra
Sem que as minhas mãos lhes toquem.
Esvoaçam lentas e velozes
Muito para além da velocidade da luz
E eu vejo-as como o lento cair de uma folha.
O velho sorri e com um gesto brando
Faz deter o esvoaçar das páginas.
Há ali uma página em branco
Escapa-nos ainda.

É nela que reescrevemos a cada instante
Os mistérios, o alfa e o ómega dos nossos dias.
Erguemo-nos e caminhamos pelo chão de pedra.
É infinita esta página em branco
Nela se guarda a origem e os segredos
De todos os infinitos que nos foi dado vislumbrar.
Este é o reino de toda a esperança e de toda a ilusão.

Chegados à última página
Encontramos de novo a página em branco
Multiplicada infinitamente.
A partir daqui
Recomeça a demanda
A filosofia e a meditação
Sem livros nem palavras herméticas.

Erguemos os olhos ao céu
E contemplamos a constância dos elementos.
Por vezes
Caem gotas
Por vezes
Caem pétalas
Por vezes, ambrósia e frutos
Por vezes, pedras minúsculas coloridas
Por vezes, caem sinais estranhos das abóbadas
Coisas infinitas e pequenas
Que continuam a preencher o Grande Livro.
E nós, que ainda mal aprendemos a ler,
Continuamos a caminhada…


Suy / São Ludovino, 2/11/1985 (3:00 a.m.)

Liquid stones, photography by São Ludovino.


 

 

  

Palavras Antigas - II

ARMADILHA COM PÉTALAS

Diz uma voz:
Se o medo é a lança
Que está no fundo da armadilha,
Façamos de conta que a morte não existe
Ou que somos nós a armadilha
Calota negra sem fundo
Manto envolvente e invisível
O vulto escuro da dor
O sono profundo da analgia.

Outra voz da mesma voz lhe replica:
Ou então a flor que não murcha
A semente do próximo sonho
A raiz que alimenta a árvore
A nuvem que alimenta a raiz
O cardume de estrelas que ilumina o universo
A gota de amor que semeia nuvens
Sobre todas as armadilhas.

E outra voz que ecoava as anteriores de um modo novo
Replicou com toda a tranquilidade:
Num momento ou outro
Todos conhecem a lança e a flor
É possível imaginar tantos “ses”
Metade deles são a armadilha
A outra metade são pétalas
Da flor que não murcha
Mesmo quando é trespassada pela lança.
É a própria lança que agora diz:
Se o medo é a própria dor
Amputação de membro indefinido
Sensação circular e pesada
Não vale a pena fazer de conta
Ousemos…

Suy / São Ludovino, 7/10/1983 (1:00 a.m.)

Unnoticed work I, photography by São Ludovino.

Combination III, photography by São Ludovino.

Quiet work II, photography by São Ludovino.



Palavras Antigas - I

 ABARCÁVEL

As portas que se abrem
No cair da tarde
Levam cada uma
A um ponto diferente
Do poente
Da vida
Do dia
Da clarividência.
É ela a rainha e senhora
Dos raios de sol
Da chuva e do vento
Dos passos e dos compassos
Do destino e do acaso.

No seu diário
Há reflexões iniciais
Sobre todas as filosofias
Jamais existidas e futuras
São crianças com cabeça de nuvem
São nuvens com asas de criança.

Que tardes cinzentas e luminosas
Estas em que tudo se contempla
De longe, muito longe
E tudo fica tão perto
E distinto
E completo
E explicável.

Nada parece haver de absurdo
Na incerteza
Na sombra que se ilumina
Na luz que se apaga
Nas nervuras da folha que seca
Na gota lenta que brota da nascente
E se perde nos veios da rocha.
É tudo uma questão de fé
Acreditar no deus certo
No momento certo.

O grande génio
A grande porta
O grande susto
A grande paz
É descobrir deuses
Para todos os momentos
Para todas as perspectivas
Todos os horizontes
Todas as combinações de realidade e ficção
Todos os estados de alma
Todos os actos
Todas as inquietações…
Estavas doente e já não estás
Tinhas medo, agora guia-te a coragem
Atravessavas a custo as veredas entre a multidão
Agora tens o mundo ao alcance
Da soleira dessa porta…

Suy / São Ludovino, 3/9/1991

The precious things that always remain, photography by São Ludovino.



Contos Breves - II

 O Equilíbrio das Constelações
ou
A Última Escolha

     Em plena selva, durante a estação da seca, um humano cruza-se com um animal esfomeado.

     Por que mataste esse homem tão igual a ti? Perguntou o leão.

O humano, nada surpreendido com a pergunta ou com o facto de vir de um animal, carnívoro e feroz, que lhe falava tão pacificamente, respondeu com naturalidade:

     Porque se não o matasse, ele poderia vir a matar-me um dia.

     Ah, um homicídio preventivo… Há vários dias que observava esse homem. Estava gravemente doente e sei que não sobreviveria durante muitos mais dias. Não o ataquei nem o matei, apesar de a fome matar um pouco mais de mim a cada instante. Como sabes, eu não escolho matar, apenas quero sobreviver porque gosto de estar vivo, gosto desta selva e de todos os seres que a habitam. Todos menos alguns humanos… nunca vi seres mais estranhos e pérfidos… comentou o leão.

     Enquanto ouvia o leão, o humano limpava o sangue da sua espada reluzente e sorria com sarcasmo.

     Nas histórias, tu poderás ser o rei da selva, mas na vida eu sou o rei do mundo. Não desperdiço o meu tempo com perguntas inúteis ou reflexões desnecessárias. No teu lugar, eu mediria melhor as minhas palavras… se é que gostas mesmo da vida e queres sobreviver. Na verdade, só te restam duas opções: ou te calas e me serves ou provarás o sabor da minha lâmina. Ameaçou o homicida.

     Humano e leão envolveram-se numa luta mortífera que durou pouco mais do que o eco de um trovão distante. O leão acabou no chão a esvair-se em sangue, mas ainda proferiu:

    A tua vitória é apenas uma triste ilusão… não tardarás a saber porquê…

     O humano soltou uma gargalhada, cortou a juba do leão, meteu-a no saco e prosseguiu o caminho enquanto o leão soltava o último suspiro. O saco, já pesado, de onde assomavam duas presas de um elefante jovem, vergava-lhe as costas obrigando-o a caminhar de olhos postos na poeira.

     Poucos quilómetros adiante, sentiu um calor insuportável, a sede cortava-lhe a garganta e os músculos ficaram moles e os passos trôpegos. O sol descia atrás das copas das poucas árvores mas a sensação de calor aumentava até se tornar insuportável.

     Um pouco mais adiante vislumbrou, ou pensou vislumbrar, uma povoação. Casas humildes, cabanas de palha e vultos humanos. Pediu ajuda, a água tinha acabado e a garganta ardia como fogo vindo das entranhas do inferno. Embora fosse muito diferente de todos eles, ninguém hesitou em se aproximar dele; ampararam-no e levaram-no para uma das casas mais amplas e frescas. Lavaram-no, vestiram-no com uma túnica macia e limpa e deram-lhe a beber a água mais límpida que tinham. Ninguém lhe perguntou por que trazia uma espada ou por que estava ensanguentado. Apenas cuidaram dele como se fosse um deles ou o melhor ser do mundo.

     No dia seguinte, um dos habitantes da aldeia percorreu a pé muitos quilómetros para ir buscar um médico à cidade mais próxima. O médico veio de carro com o nativo e levou o doente. Instalou-o no hospital e procedeu a muitos exames. Não sabia que doença era aquela mas era evidente que era muito grave.

     Os resultados das análises e dos exames foram inconclusivos. No dia seguinte, o homem estava coberto de manchas roxas e verdes e gritava com dores lancinantes apesar de todos os analgésicos que lhe tinham ministrado. Algo tinha alterado completamente o funcionamento do sistema nervoso central e do cérebro, uma infecção estranha alastrava por todo o organismo e o doente definhava a cada segundo. Antes que o sol voltasse a pôr-se, o homem estava morto.

     Por precaução, o corpo foi sepultado longe da cidade. Junto ao amontoado de pedras que assinala a última morada, um rugido de leão atravessa a noite e extingue-se na imensa abóboda do desconhecido. No amplo céu, as constelações brilham como sempre, belas e sábias. 

Suy / São Ludovino, 23/3/2020

A Wise Life - I, photography by São Ludovino.

Preserve the rivers - I, photography by São Ludovino.

A Wise Life - II, photography by São Ludovino.