sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Textos Intermináveis - II

PINÁCULOS DE TOPÁZIO

Há locais na terra onde chega quase tudo…

Chegam vendedores, publicitários e contrabandistas,
Pirotécnicos, tatuadores, ciganos, turistas de calções,
Especialistas em lavagens ao estômago e ao cérebro,
Bocas risonhas despejando melífluos contos do vigário;
Chegam gatos siameses, cavalos de Tróia,
Alvos arminhos e focas do Árctico;
Chegam cartas em atraso, cartas perfumadas,
Cartas viciadas, cartas circulares, círculos viciosos
Embrulhados em celofane e veludo,
Jogadores de poker sentados em nuvens de fumo,
Jogadores de xadrez tão velozes como a luz,
Jogadores de futebol petrificados fora de jogo,
Faquires, ilusionistas e hipnotizadores,
Pepitas, pérolas e clepsidras,
Andorinhas, computadores,
Raios de sol perpendiculares,
Memórias e esperas e conchas com areia,
Tigres sossegados com o tempo,
Meninas com brincos coloridos e vespas nos olhos,
Videntes, profetas, ovnis, ministros, horóscopos,
Folhetos que anunciam o fim do mundo,
O fim da estrada, o fim da dor,
Roupa lavada, roupa nova, mendigos, canções, folhetins,
Fotografias de cidades modernas,
Revistas que prometem o prazer de mil e uma formas,
Notícias de exemplares raros em extinção,
De exemplares únicos em exposição,
De quadros roubados ou falsificados,
De pessoas desaparecidas, em fuga, em chamas,
De pessoas encontradas a passar a fronteira
Clandestinamente, irresistivelmente esguias, velozes,
 
Encontradas a rondar o aeroporto,
Encontradas azuis junto ao mar,
Encontradas a balbuciar numa estação de metro,
Encontradas sós num concerto rock,
Encontradas com manchas de enxofre e mercúrio,
Encontradas nuas com um molho de chaves na mão,
Encontradas a desenhar peixes nas montras,
Encontradas num quadro abstracto,
Encontradas ausentes em parte incerta,
Encontradas num labirinto em Pequim,
Em círculo na cama da prima Antonieta,
Encontradas perplexas no jardim da Celeste,
Encontradas num barril de dólares na mansão do tio Samuel,
Encontradas a espreitar a bela Maria
― que atingiu um relacionamento fenomenal com os pombos brancos ―
Encontradas estóicas e exangues
Encontradas nos braços lassos de Epicuro
Nos braços cínicos de Diógenes
Nos braços cosmológicos de Empédocles
Nos braços esquivos do infinito Pessoa
Nos braços amplos de Emerson, Thoreau, Whitman
Nos braços universais da mãe natural e ubíqua
Encontradas intactas na curva da estrada
Estáticas, rectilíneas, frenéticas, apócrifas, hipotérmicas febris
Teimosas em fúria, espúrias, incandescentes em contramão
De braços abertos em ângulo raso, lasso, crasso
De mãos dadas em sentido literal, único, lúdico, fatal
Sem rumo, sem prazo, sem frémito ou cansaço
Encontradas invictas nas pedras da calçada
Encontradas esquecidas nas pregas de um sonho
Encontradas perdidas no labirinto de Creta
 
Perdidas numa expedição em busca da prima Vera,
Do paradigma perdido, do sintagma convicto
Do axioma contorcionista, do teorema funâmbulo
Perdidas em Moscovo na Convenção dos Não-Alinhados,
Perdidas no negrume de vermelhas e alvas utopias
Perdidas nas páginas do único jornal do mundo
Perdidas no desenlace do livro interminável
Perdidas extáticas no túmulo de Tutankhamon
Perdidas à procura de Humphrey Bogart em Casablanca,
Perdidas, perdidamente perdidas em extrema perdição

Encontradas a executar a metafísica do amor de Schopenhauer,
Encontradas com o lápis de Toulouse-Lautrec no Moulin Rouge,
Encontradas com sessenta gramas de heroína,
Vinte e um gramas de vida, cinco gramas de alma
Encontradas a escrever cartas a Napoleão,
À mãe, aos ministros dos Negócios Estrangeiros de todo o mundo,
Ao primeiro amor, ao próximo amor, ao amor impossível,
Encontradas em flagrante delito, delíquio, delírio, delícia,
Delibação, deletério, delação, delapidação,
Encontradas empunhando armas, núcleos
Dermes e epidermes de átomos
Gatos e leões e tigres de Schrödinger
Demagogia com queijo e uma ratoeira cintilante
Denodo, mãos nuas, mãos sujas, mãos futuras
Encontradas no estaleiro da obra em desconstrução,
Deportadas sem aviso para o reino da (des)ilusão
Alinhadas com toda a precisão
Nas estruturas traiçoeiras do acaso
Nas escadarias dos templos
Nos corredores do poder paralelo
Alternativo, subversivo, imersivo
Nas rodas dentadas das fábricas
Apanhadas na voragem da ventania
Provavelmente sós,
Provavelmente violentas
Provavelmente imprecisas
Provavelmente promíscuas
Desinteressadamente desatentas e lentas
Detidas nas fronteiras do tempo
Sem mapas nem bagagens
Detidas porque sim, porque não, porque talvez
Porque o perigo espreita a fera e a presa
Só porque existem e são quem são
Azuis, laranja, brancas, verdes, vermelhas, amarelas…
Porque estão acordadas ou adormecidas
Porque caminham ou se despenham de inalcançáveis precipícios
Porque resistem ou desistem
Porque persistem ou se dissolvem na poeira
Porque são a sombra ou a claridade
Porque respiram, inspiram, transpiram
Submissas, insubmissas,
Quixotes e moinhos de vento
Comuns como o ar e o sal dos oceanos
Encontradas espantadas e irrepetíveis
Encontradas a falar com os seus botões,
Encontradas a pôr o carro à frente dos bois,
Dos camelos, dos elefantes e até dos ocapis
Encontradas por acaso, por mero acaso
Por completo e absoluto acaso
Quase desaparecidas
No lado oculto da lua
Numa versão inédita de um mito grego
Numa saga nórdica inacabada
Minúsculas na palma da mão de um gigante atlântico
Cantarolando no eco sinfónico do vento
Dissolvidas no esplendor de uma aurora boreal
Hesitantes entre duas vielas de Paris
Reencontradas junto a uma erva daninha no topo do Evereste
Abraçadas às rochas nas grutas de Lascaux
Deslizantes nos desfiladeiros do Utah
Sedentas, sós, arenosas oásicas nas dunas do Sahara
Relendo livros de areia, o passado, a história do tempo
Transfiguradas na retorta do alquimista
Vislumbradas na linha mutável do horizonte
Vistas a sair do ventre da mãe
Do coração dos que amam deveras
Dos que odeiam sempre
Do banco, do hospital, da feira da ladra
Vistas de relance a beber champanhe no banco de trás de um Rolls Royce,
A devorar desalmadamente lagostas torturadas
A regurgitar num requintado lupanar
Vistas claramente a limpar as dedadas de um revólver fumegante
Ou subrepticiamente a retocar a máscara,
Debruçadas com os seus diamantes dos camarotes de honra,
Enquanto outras as olham como boi para palácio de feno, veneno dourado,
Encontradas zangadas num dia de cobrança ou nevoeiro,
Encontradas mortas... Somente mortas
Sem explicação, sem causa necessária ou suficiente
Apenas mortas… irreparavelmente mortas…

Chegam notícias de pessoas que voltaram as costas para o Oriente,
De estátuas poliédricas de vidro verde inquebrável,
De estátuas de jaspe roubadas do túmulo do imperador da China,
De estátuas que fogem da própria sombra,
De sombras que invadiram o teatro de Moscovo
E nunca mais foram vistas, vivas, dignas
Notícias de pessoas que circum-navegam o mundo
Em barcos à vela ou copos de whisky,
De pessoas que pararam ali,
Enquanto sonham eternamente com além,
Pessoas a tricotar com seda os dias vulgares,
Pessoas a amarem sem amor,
Pessoas sem sombra, pessoas ninguém
Pessoas completas, pessoas complexas, intactas
Pessoas simples, pessoas simplistas, pessoas de bem
Pessoas imensas, pessoas diversas, pessoas inversas
Pessoas planificadas, pessoas sem planos, sem danos
Pessoas raptadas entre o dia e a noite
Pessoas lúbricas, púdicas, concupiscentes
Pessoas mais além…

Novas e velhas tribos, castas e castos,
Ilhas e arquipélagos e vulcões
Istmos de cristal, penínsulas ensolaradas ou geladas,
Cabeças, pernas e braços de continentes
Cálamos, tálamos e dosséis de fundos marinhos abissais
Preâmbulos e ditirambos bailando nos areais
Orações védicas, profundas, intraduzíveis
Avatares do Grande Insondável
Inscrições em sânscrito, persa, gaélico, lusitano
Mensagens de amor voador, asas amantes amadas
Ícaros, Prometeus, Sísifos, Adamastores, Circes e Pandoras
Peregrinos suados, rotos devotos, maltrapilhos famintos
Filantropos de Quioto, Bombaim, Tombuctu e Nova Iorque
Altruístas fraternais, maternais, frugais, nunca demais
Terroristas, sectários, fanáticos, bombásticos com rastilho
Cegos de raiva, disfarçados, replicados, pérfidos, fétidos
Homicidas, suicidas, fratricidas e outros sufixos mortíferos,
Insecticidas, herbicidas, fungicidas, sulfamidas
Ditadores genocidas, democidas, humanicidas
Banqueiros pantagruélicos, famélicos, famosos, gulosos, tinhosos
Celeiros, palheiros, sapateiros, pés descalços, poeira, lama, nada
Notas de banco, notas de dívida, notas musicais
Informais, longitudinais, horizontais, oblíquas, perpendiculares
Burocratas, actas, alpergatas, sonatas, fragatas e beatas
Tecnocratas, folhas de cálculo, folhas de flandres, contabilistas,
Plutocratas, plutocretinos, mineiros do Hades, carcereiros do paraíso
Cleptocratas, sanguessugas, parasitas, filigrana falsificada, enlatada,
Paraísos fiscais, artificiais, iscos, anzóis, faróis, Cila e Caríbdis
Czars insaciáveis com o império na tripa, no ceptro, na mitra
Emires, sultões, califas, sabres, escravos, odaliscas, pataniscas
Receptadores, penhores, usurários, prestamistas
Cleópatra, Midas, Ptolomeu e a rainha do Sabá
Rothschild, Rosencrantz e Guildenstern
Andy Warhol, Marilyn e Al Capone
Cortinas de néon, cortinas de fumo, cortinas de cetim
Lenine, Estaline, Pavlov, Gastev, utopia violada
Gulags, purgas, valas comuns, muros de aço,
Bandeiras, sinais, símbolos, slogans, ordem e obediência
Endoutrinadores, escultores de mentes, oleiros sem dores,
Armas de destruição maciça, dissuasoras inúteis, apocalípticas
Falsificadores de arte, notícias, quimeras, éticas patéticas
Linguistas formalistas, estruturalistas, generativistas,
Construtivistas, atávicos, pavónicos, erráticos, erróneos,
Bizantinos cheios de bizantinices, turbantes, garras ululantes, serpentes
Chineses desaparecidos aos milhões, chinesices do Grande Salto para a Frente
Para trás, para o lado, utopia cadafalso, arrozais decapitados
Florentinos, floreados dantescos, peste negra, branca, última, próxima
Fotógrafos imperceptíveis, imperfectíveis do microcosmos e do macrocosmos
Cineastas furtivos, selectivos monocromáticos e policromáticos
Do film noir, rouge, vert et blanc, da vanguarda, da retaguarda e da pós-modernidade
Dramaturgos, encenadores, cenógrafos e actores da grande comédia do mundo
Teatro do absurdo, de fantoches, de sombras, de alto e baixo coturno
Beckett, Brecht, Shakespeare, os que vieram antes
Os que vieram depois e os que hão-de vir
Sátiros e ninfas, bailarinos, florestas, incêndios, fotossíntese
Loucos pedagogos, sensatos, sossegados, sentados, peripatéticos
Romancistas cansados, irritados, anarquistas, niilistas, nudistas
Poetas futuristas, surrealistas, calados, silenciados, executados
Melómanos harmónicos, melódicos, polifónicos, operáticos
Personagens secundárias, plenárias, subsidiárias, subsidiadas
Figurantes célebres, substitutos, mortos em duplo combate
Protagonistas impertinentes, suspiradores, vilões alados enfadados
Arquitectos e engenheiros de jardins das delícias, do mel, do fel, da loucura
Casebres, mansões, condomínios fechados, isentos,
Intocáveis mesuras, etiqueta perneta, protocolos
Segurança privada, alcateia intocável,
Parques temáticos com entrada gratuita, fortuita
Candidatos a candidatos, a presidentes, ministros, deputados
Legisladores, pastas, prados e pastos
Escriturários, funcionários tributários, notários, perdulários
Juízes, advogados, taxistas, sentenças, perjuros e perjúrios
Eleições simuladas, viciadas, transparentes, indiferentes
Referendos, plebiscitos, comités, concílios, conselhos gerais e restritos
Estatísticas, esteticistas, estetoscópios, estroboscópios
Contrabandistas experientes, traficantes de tabaco, álcool puro,
Ouro fora da lei, influências, preferências, animais e gentes
Tráfico e tráfego estridentes, capciosos, ociosos
Fome daninha, vizinha, dia após dia
Dilemas, emblemas, problemas, gemas de ovos, discos de Newton,
Códigos legais e ilegais, deontológicos, epistemológicos e ontológicos
Espiões, infiltrados, escutados, liquidados, agentes duplos, triplos, infinitos
Aviões supersónicos, kamikaze, barcos de loucos,
Estradas intransitáveis para o céu, para casa, para a liberdade, para a verdade
Escorregadias e belas auto-estradas para o inferno, o exílio, o bairro, o limbo
Honra e desonra, equívocos, óbvios, eloquentes, infames,
Egotistas, narcisos, ranúnculos, criogenia, autocracia absoluta
Megalómanos, ciclopes de aço, titãs de gelo, areias movediças
Inventores improváveis, laboratórios infectados, sépticos, anti-éticos
Robots intrigados, cépticos, cibernéticos, patéticos, ferozes, lúdicos
Máquinas que ordenam, empilham, fazem bolas de sabão e antologias
Contratos intrincados, impostos, taxas e taxinhas, clausulados unilaterais
Dívidas impagáveis, inflacionáveis, irresponsáveis, peculato, economato
Nepotismo clubístico, abrangente, adstringente, habitual, intra-institucional,
Hipotecas do passado, do futuro, da casa, da paz, da liberdade
Da democracia… onde anda a democracia?
Promessas periclitantes, compromissos, suspiros, fonemas profícuos
Conversas hiperbólicas, redundantes, íntimas, casuais, agendadas, adiadas
Encomendas carimbadas, atrasadas atrás do tempo, do balcão, da fila de espera
Malas transviadas, esbaforidas, poliglotas,
Passageiros sem fôlego, atrasados, precoces, previdentes
Pangloss sempre no melhor dos mundos possíveis
Papistas mais papistas do que o papa, Pedro, Paulo, João
Mas não Cristo, rebelde pacífico, crucificado
Inquisidores, iconoclastas, pederastas, pedintes, pedaços de gente
Anacoretas, anacondas, animistas, transcendentalistas
Idealistas, darwinistas, criacionistas, fatalistas, optimistas…
Criaturas estranhas deste planeta...

Chegam amigos e inimigos,
Em dias imprevistos
Em invólucros, em caixas chinesas, em matrioskas
Ou em carne, osso e sangue, exangues,
Chegam aves marinhas,
Copos a verter sede,
Estrelas (de)cadentes,
Dinossauros, quasares de coral,
Constelações desconhecidas,
Tratados e alianças de guerra e paz,
Versões da liberdade em infinitos volumes,
Palavras extremamente flexíveis
Extremamente mutáveis,
Verdades caleidoscópicas,
Compêndios da memória colectiva,
Xailes de esquecimento,
Singulares impressões da alma,
Que passa, que fica, que volta,
Chegam cartas ao futuro,
Árvores pensadoras,
Ouriços filosóficos,
Plantadores de absurdo,
Monges,
Pirilampos,
Piratas,
Rubis,
Traidores,
Fingidores exímios,
Histórias,
Ecos,
Miragens,
Gotas,
Inocentes,
Beijos,
Oceanos,
Sal…

...enfim, pode chegar quase tudo, mas o Verão...

Suy / São Ludovino, 29/4/1985

Life blood - I, photography by São Ludovino.



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