Em plena selva, durante a estação da seca,
um humano cruza-se com um animal esfomeado.
─ Por que mataste esse homem tão igual
a ti? ─ Perguntou o leão.
O humano, nada
surpreendido com a pergunta ou com o facto de vir de um animal, carnívoro e
feroz, que lhe falava tão pacificamente, respondeu com naturalidade:
─ Porque se não o matasse, ele poderia
vir a matar-me um dia.
─ Ah, um homicídio preventivo… Há
vários dias que observava esse homem. Estava gravemente doente e sei que não
sobreviveria durante muitos mais dias. Não o ataquei nem o matei, apesar de a
fome matar um pouco mais de mim a cada instante. Como sabes, eu não escolho
matar, apenas quero sobreviver porque gosto de estar vivo, gosto desta selva e
de todos os seres que a habitam. Todos menos alguns humanos… nunca vi seres
mais estranhos e pérfidos… ─ comentou o leão.
Enquanto ouvia o leão, o humano limpava o
sangue da sua espada reluzente e sorria com sarcasmo.
─ Nas histórias, tu poderás ser o rei
da selva, mas na vida eu sou o rei do mundo. Não desperdiço o meu tempo com
perguntas inúteis ou reflexões desnecessárias. No teu lugar, eu mediria melhor
as minhas palavras… se é que gostas mesmo da vida e queres sobreviver. Na
verdade, só te restam duas opções: ou te calas e me serves ou provarás o sabor
da minha lâmina. ─ Ameaçou o homicida.
Humano e leão envolveram-se numa luta
mortífera que durou pouco mais do que o eco de um trovão distante. O leão
acabou no chão a esvair-se em sangue, mas ainda proferiu:
─ A tua vitória é apenas uma triste
ilusão… não tardarás a saber porquê…
O humano soltou uma gargalhada, cortou a
juba do leão, meteu-a no saco e prosseguiu o caminho enquanto o leão soltava o
último suspiro. O saco, já pesado, de onde assomavam duas presas de um elefante
jovem, vergava-lhe as costas obrigando-o a caminhar de olhos postos na poeira.
Poucos quilómetros adiante, sentiu um calor
insuportável, a sede cortava-lhe a garganta e os músculos ficaram moles e os
passos trôpegos. O sol descia atrás das copas das poucas árvores mas a sensação
de calor aumentava até se tornar insuportável.
Um pouco mais adiante vislumbrou, ou
pensou vislumbrar, uma povoação. Casas humildes, cabanas de palha e vultos
humanos. Pediu ajuda, a água tinha acabado e a garganta ardia como fogo vindo
das entranhas do inferno. Embora fosse muito diferente de todos eles, ninguém
hesitou em se aproximar dele; ampararam-no e levaram-no para uma das casas mais
amplas e frescas. Lavaram-no, vestiram-no com uma túnica macia e limpa e
deram-lhe a beber a água mais límpida que tinham. Ninguém lhe perguntou por que
trazia uma espada ou por que estava ensanguentado. Apenas cuidaram dele como se
fosse um deles ou o melhor ser do mundo.
No dia seguinte, um dos habitantes da
aldeia percorreu a pé muitos quilómetros para ir buscar um médico à cidade mais
próxima. O médico veio de carro com o nativo e levou o doente. Instalou-o no
hospital e procedeu a muitos exames. Não sabia que doença era aquela mas era
evidente que era muito grave.
Os resultados das análises e dos exames
foram inconclusivos. No dia seguinte, o homem estava coberto de manchas roxas e
verdes e gritava com dores lancinantes apesar de todos os analgésicos que lhe
tinham ministrado. Algo tinha alterado completamente o funcionamento do sistema
nervoso central e do cérebro, uma infecção estranha alastrava por todo o
organismo e o doente definhava a cada segundo. Antes que o sol voltasse a
pôr-se, o homem estava morto.
Por precaução, o corpo foi sepultado longe
da cidade. Junto ao amontoado de pedras que assinala a última morada, um rugido
de leão atravessa a noite e extingue-se na imensa abóboda do desconhecido. No
amplo céu, as constelações brilham como sempre, belas e sábias.
Suy / São Ludovino, 23/3/2020
Preserve
the rivers - I, photography by São Ludovino.
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