quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Palavras Antigas - III

ONDE CABEM TODAS AS COISAS

Lá no cimo do monte
As janelas estão abertas para Oeste.
Os olhos das aves repousam sob um céu quase lilás.
Encostados aos rochedos os guardadores de rebanhos
Escutam os sinos das catedrais de cidades antigas
Ecos de rituais e temores trazidos pelo vento
Misturam-se com o granito selvagem
E lá ficam para sempre.

Numa prece
Alguém me pede para entrar na sua cabana.
Diz-me que tem um livro que tenho de ler
Fala-me no mesmo tom místico
Das ervas e de deus
Diz-me que tenho de aprender a linguagem dos elementos
Sentir as vozes de todos os seres
Dialogar com os átomos e as células
Abdicar do mundo e da razão pura
Para entendê-lo plenamente.
Diz-me que é preciso começar sempre
Primeiro pelo silêncio
Deixar os olhos pairar
O olhar diluir-se nas coisas
E o coração tem de acompanhar todos os ritmos
Para a alma sentir o espírito de todas as coisas
Bater ao ritmo das cascatas, do crescer das plantas
Da tempestade e da bonança, da luz e da sombra.
Depois um lago oceânico vem mostrar-nos o nosso reflexo
No reflexo de tudo
E a quietude fica nas nossas mentes.

A aragem entra por uma fresta
A barba branca do velho lembra-me o esquecimento
Mas a humidade azul-cinza dos olhos
Não me deixa duvidar da sua memória.

«Este livro nada explica;
Não explica os segredos da vida ou da morte
Da passagem do tempo ou da permanência da paixão.
Este livro narra apenas;
Conta-te a história de todas as coisas
Embora nenhuma delas tenha fim
Ou possa cindir-se de todas as outras.
Embora o isolamento seja o caminho para a sabedoria
Nada vive isolado neste mundo
Nada é livre ou completo
Se não na unidade com o todo.
Para entenderes este livro
Terás de mergulhar com a mesma coragem e o mesmo fervor
Nas trevas e na luz
Sem, contudo, jamais as confundires.
Só quem tiver uma alma imensa e pura
Uma mente arguta e determinada
Poderá ler integralmente este livro
Abarcar num só pensamento as infinitas histórias
Entender o mundo no seu caleidoscópio de possibilidades
E conviver pacificamente com os mistérios
Que nenhum sábio poderá desvendar…
Terás tu a alma e a mente
Por que este livro espera?
Terás tu a voz, o olhar, o coração
Do iniciado que este livro poderá conduzir
Ao Templo Cintilante…?»

Abriu o livro na primeira página
E pediu-me para ler.
A voz que ouvi não era a minha
Mas a das coisas feitas palavras.
Todos os seres e todos os tempos
Estavam vivos naquele livro
Através das palavras…

A cabana agiganta-se
Abóbadas e naves
Rodeiam-nos imprecisas.
Não tem fim este espaço sagrado.
Lá à frente fica uma cordilheira rosada.
Só a lareira resta da cabana-realidade.
Os lugares, os seres, o mundo
A matéria e o espírito de todas as coisas
Emergem das páginas
E vão-se dispondo à nossa volta
Até ao infinito
Da chama refulgente deste tronco
Ao primeiro raio da primeira estrela.
Assistimos em simultâneo
À recriação do universo.

Sentamo-nos na laje do soalho
Para contemplar o fluir da grande obra
E deixamos a nossa fé seguir o rumo
Dos ritmos infinitos do tempo.
As páginas volteiam-se uma sobre a outra
Sem que as minhas mãos lhes toquem.
Esvoaçam lentas e velozes
Muito para além da velocidade da luz
E eu vejo-as como o lento cair de uma folha.
O velho sorri e com um gesto brando
Faz deter o esvoaçar das páginas.
Há ali uma página em branco
Escapa-nos ainda.

É nela que reescrevemos a cada instante
Os mistérios, o alfa e o ómega dos nossos dias.
Erguemo-nos e caminhamos pelo chão de pedra.
É infinita esta página em branco
Nela se guarda a origem e os segredos
De todos os infinitos que nos foi dado vislumbrar.
Este é o reino de toda a esperança e de toda a ilusão.

Chegados à última página
Encontramos de novo a página em branco
Multiplicada infinitamente.
A partir daqui
Recomeça a demanda
A filosofia e a meditação
Sem livros nem palavras herméticas.

Erguemos os olhos ao céu
E contemplamos a constância dos elementos.
Por vezes
Caem gotas
Por vezes
Caem pétalas
Por vezes, ambrósia e frutos
Por vezes, pedras minúsculas coloridas
Por vezes, caem sinais estranhos das abóbadas
Coisas infinitas e pequenas
Que continuam a preencher o Grande Livro.
E nós, que ainda mal aprendemos a ler,
Continuamos a caminhada…


Suy / São Ludovino, 2/11/1985 (3:00 a.m.)

Liquid stones, photography by São Ludovino.


 

 

  

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