sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Textos Intermináveis - I

     Aquilo a que costumo chamar "textos intermináveis" ou "textos de processo" são isso mesmo: textos que podem ser prolongados indefinidamente a partir de um processo de construção formal, assente numa ideia ou conceito. A dimensão formal e a dimensão conceptual são interdependentes, alimentam-se reciprocamente. Fazer perguntas é sempre um processo profícuo e pode aplicar-se às mais diversas linhas de pensamento. O próprio processo nunca é fechado e permite construir mapas semânticos com ramificações, sobreposições, jogando com o literal e o metafórico, explorando paradigmas e o potencial dos campos lexicais e semânticos. A interrogação cria também uma estrutura dialógica mesmo que o texto seja um longo monólogo. No caso do texto "Sei lá...", escrito em 1984, parte de uma interrogação sobre aquilo que sabemos e desconhecemos: "Saberá alguém". Tudo o resto são possibilidades de resposta ou de falta dela.   

SEI LÁ…

Saberá alguém
cumprir os poemas
ser instrumento e imagem fiel
das palavras.

 Saberá alguém
que há cavalos selvagens
em New York.
E ilhas de coral
na Praça Vermelha, de manhã
sobre a neve e as pegadas da Revolução
que o fantasma de Lenine desenha
com o dedo roxo de frio.

Saberá alguém
que quando se ama e deseja o absoluto e o infinito
se teme ainda o segredo da morte
e das viagens clandestinas nos barcos
brancos da loucura.

Saberá alguém
que há sempre mais alguém
na nossa solidão.

Saberá alguém
que nada é imutável
nem sequer a perfeição
e tenho a certeza de que as borboletas não choram
por terem apenas duas semanas de vida com asas.

Saberá alguém
procurar pérolas no fundo do Pacífico
sem despertar a insaciedade dos tubarões
e invejar os peixes por não desejarem
um paraíso.

Saberá alguém
que os peixes do Pacífico têm contudo desejos excessivos.

Saberá alguém
que as anacondas não têm destino
e só existem no Amazonas
e que no Amazonas
o tempo é devorado apenas pelas piranhas.

Saberá alguém
que a sede é excessiva nos trópicos
é indefinida no equador
e assassina nos pólos.

Saberá alguém
que as contradições
são como os cactos no deserto:
visíveis, dolorosas e persistentes,
imprescindíveis como as miragens,
indissolúveis como a areia,
inegáveis como os espinhos
balsâmicas como a seiva.

Saberá alguém
de alguém.

Saberá alguém
de alguém assim
assim gémeo e inconfundível.

Saberá alguém
que nos quartéis-generais
há sempre alguém que fala alemão como o Führer.

Saberá alguém
que um Mercedes preto e o papel higiénico
são imprescindíveis a um ministro
para manter o equilíbrio mental.

Saberá alguém
que o equilíbrio mental do poder
é pura ilusão.

Saberá alguém
que as joaninhas
têm as asas mais misteriosas
e que o mais comum dos humanos
tem sempre umas mãos misteriosas
que transformam o universo numa imensa joaninha
com sóis vermelhos e buracos negros
que voa dentro de si mesmo
sempre que descobre o absurdo na Primavera
e não se lembra mais de nada

Saberá alguém
que Ícaro
também tinha milhões de irmãos gémeos
e nenhum desistiu da obsessão comum
para que os sonhos ainda existam no futuro
os arquitectos da mente não morram de tédio
e assim o senso comum tem ainda quem castigar
e os modestos mestres-escola
têm ainda um enigma para os confundir.

Saberá alguém
que embora tenha sido sempre assim
a alquimia se tornou irreversivelmente um ramo
da meta-psicologia que persiste em não poder
ser científica
e que a pedra filosofal se tornou um paradigma
indistinto da vontade
o talismã de todos os desejos
quer o alquimista demonstre ou não
que o prazer é o elixir que faz o cosmos
e o tempo infinitos
o movimento de rotação ou translação
a obstinação ou a indiferença
o cachimbo d’água, o suicídio ou a felicidade.

Saberá alguém
saberá.

Saberá alguém
de mim
aqui
a uma distância indizível de quase tudo.

Saberá alguém
que as mil e uma noites
se repetem incessantemente pelos tempos
às vezes em cada segundo
para quem vive em Finisterra.

Saberá alguém
que o sabor da sidra
alucina os cavaleiros andantes da planície
e que Dulcineia é uma hidra de sete cabeças
que todos os homens desejam
porque não tem mãe consanguínea
descende directamente e apenas do impossível
e é imortal como todos os nós cegos
deuses e traidores.
Se tivesse memória recordar-se-ia que de facto
nunca nasceu sequer.

Saberá alguém
que as bandeiras de tréguas
são sempre vermelhas
por mais brancas que as pintem
e a rendição um axioma absurdo
onde a aranha tece a teia da raiva
e da revolta adiadas
e nesta guerra os exércitos
são apenas de pensamentos
sonhos e gotas dispersas de sangue de ideias.

Saberá alguém
que os brincos da princesa
eram azul metálico
e foram a causa da Pornex 84
e da queda das Nações Desenvolvidas.

Saberá alguém
que há um charlatão à solta no jardim
que deus é um ourives
e tudo no mundo são invenções
as duas mais fabulosas são os espelhos e o amor
mas ainda as facas e a cabra-cega.

Saberá alguém
que as histórias da carochinha
têm intenções bem mais duvidosas
que as “desflorações”.

Saberá alguém
que as realidades
que mais nos fascinam e nos movem obstinadamente
são as que nunca poderão ser reais
aquelas que conseguimos abstrair de tudo
e colocá-las dentro de nós
como uma suprema realidade
aquelas que tocamos com uma mão
ao mesmo tempo que as olhamos
por um binóculo mágico de abandono.

Saberá alguém
que a sanidade não existe
e os muros dos asilos não são
brancos por acaso.

Saberá alguém
que Sísifo tinha cabelos longos e uma barba infindável
embora permanecesse sempre mais jovem
que a pedra
e que o topo da montanha
é uma cratera com um fundo de mar doce
e não um pico pontiagudo.

Saberá alguém
que a nossa história
é a pré-história do inconsciente
e os bisontes e os mamutes
foram pintados nas cavernas pelas divindades
que depois cansadas do inacessível
encarnaram em nós
porque pensaram que éramos
prismas de vidro transparentes
e nunca tínhamos sono nem olhávamos
para trás nem víamos através das paredes
nem nos parecíamos irremediavelmente
com os seres estranhos dos seus sonhos.

Saberá alguém
quem mora agora na casa onde nascemos
e da qual perdemos a chave nos pântanos do tempo.

Saberá alguém
dos tapetes voadores
bêbados de purpurina e vertigem
em que passámos a rasar
sobre os monumentos do inexistido
e nos reconhecemos depois sem grande surpresa
num filme de aventuras fantásticas.

Saberá alguém
que os lagartos e os trapezistas
viajam numa redoma de vidro
pelas florestas densas e abissais
e pelas vertentes dos vulcões
em busca de um diamante azulado
que embora perpetuamente índigo cristalino afinal é incolor
e mesmo assim azul.

Saberá alguém
que há peregrinos em todas as cidades
e alguns mantêm as mãos fechadas nos bolsos
segurando as chaves de uma casa imaginária
onde tentam entrar
cada vez que fitam uns olhos como se fossem o mar
mas todos os peregrinos são estrelas cadentes
que nunca saem à rua nem chegam ao céu
e deambulam pela Via Láctea das ruas
como fotógrafos microscópicos
por um tapete persa.

Saberá alguém
desejar ser perpetuamente cristalino
sem perder definitivamente a posse da sanidade
que é apenas constante na ausência de desejos
e por isso impossível
ou possível apenas numa impossível solidão de plenitude
ou no útero de uma morte
de que apenas os suicidas podem beijar o plasma
com desespero e abandono
e depois tornar-se inquilino do absurdo
com os olhos abertos brilhantes e frescos de serenidade.

Saberá alguém
que o velho contrabandista
só trocava segredos com o ibex.
Dos montanheses de barbas brancas
aceitava metamorfoses do ouro
em troca de textos paranóicos
e páginas rasgadas do exemplar original
da Bíblia e/ou do Kama Sutra.

Saberá alguém
que os amantes morrem na neve
sob avalanches de máscaras negras
os beijos dos ursos brancos
e os aplausos insistentes e insatisfeitos dos pinguins.

Saberá alguém
de ti
aqui
a uma distância imprevisível do sonho.

Saberá alguém
que as epifanias de Joyce
são as únicas verdades possíveis
no palco da própria vida ou da escrita
onde o xadrez se joga com paradigmas
de múltiplos cérebros mesmo que o rosto seja só um
e as peças multicolores lêem no fundo dos olhos
dos camaleões-outros que o invadem
e mesmo dos camaleões-eus
porque na noite anterior
tinham sempre sonhado com deuses
que transformavam o espectro solar em palavras
ou oceanos desconhecidos com filmes sobre peixes transparentes
e os actores revelavam todos os segredos das expressões
para matar definitivamente o teatro
e as personagens poderem ser pessoas
simultaneamente fantásticas, intocáveis, críveis, vulgares e simples.

Saberá alguém
que a solidão é incomparavelmente
mais povoada do que a China Popular
mais apinhada de relatos e fantasias que a Biblioteca de Alexandria
e que nela vivem muitas tribos e povos
que nunca foram descobertos
embora alguns corram sucessivamente e constantemente
o perigo de extinção…
e provavelmente nunca o serão
porque há muitas crateras num eu só para um eu só
e às vezes em vez de olhar para elas
cai lá no fundo e tudo fica entregue
apenas ao esquecimento, ao tactear na escuridão
a um fascínio caótico
ou a um cárcere de anestesia.

Saberá alguém
que as autoridades suspeitam que alguém
tenha convertido as hierarquias
num tabuleiro de xadrez
e ficam em pânico e tornam-se ditadores
porque não sabem jogar
mas pressentem a existência de variantes infindáveis.

Saberá alguém
que não há diferença alguma
entre um pensamento, um instante e um engano
entre uma areia, uma história e um homem
entre a chuva, a memória e um mito
entre o perigo, o azul e a poesia
entre um espelho, a dialéctica e uma estátua
entre Borges, um caleidoscópio e a caverna de Platão
entre Kafka, um jardim de areia
e os ecos que se ouvem nas caves dos labirintos
onde monstros acéfalos se encaixam no grande puzzle
do grande caos do grande real.

Saberá alguém
compor tranquilamente um interlúdio
— com uma melodia clara e nunca entrecortada
por silêncios ferozes e estridentes
nem interrompida a meio da página —
a imagem e semelhança da inquietação da lucidez
e depois continuar a fazer bolas de sabão
e jogar às escondidas com o esquecimento
quando sabe que as aranhas continuam
a conspirar atrás de uma árvore
onde era suposto estar apenas Newton
ou a Branca de Neve

Saberá alguém
que os nómadas são todos morenos
porque há pó nas estradas e noite nos olhos e nos nervos
têm obsessões fixas e lêem sinas
nos hieróglifos dos poemas de êxtase
ou nas pestanas dos estranhos que os olham com nostalgia
e lhes beijam à distância a testa
extensíssima de sede suor e tatuagens.

Saberá alguém
amar simplesmente
sem condições nem sonhos futuros
sem espera nem ilusões tangíveis
sem acreditar nem procurar nada
e ainda assim não desistir sem querer.

Saberá alguém
olhar o seu próprio desespero por um telescópio
como se ele pertencesse a um firmamento muito longínquo
e acreditar sem querer que é uma sombra-máscara apenas
indistinta desse grande rosto em que estrelas brilhantes demais
não cessam de se desintegrar.

Saberá alguém
conter-se à porta dos labirintos da memória
espreitar apenas o calendário dos momentos que vão chegando
ou perder o rumo apenas quando a tempestade é iminente
e os raios vão iluminando parcialmente este ou aquele recanto do labirinto
que começa a rodopiar à volta da cabeça
e quando a tempestade pára ele já aterrou no topo
de uma daquelas montanhas inatingíveis
e é depois o deserto que a rodeia o único que contém
a tentativa de a escalar
a menos que o tempo tenha parado
ou todo o tempo se tenha reduzido a um irrecusável momento.

Saberá alguém
soletrar a verdade até ao fim
sem hesitar
sem se interrogar nunca.

Saberá alguém
devolver a alma aos habitantes da ilha
depois da plena simbiose dos sentidos plenos de alma
sem lhes tirar em troca uma única ave-do-paraíso.

Saberá alguém
erguer e povoar o seu reino
apenas com simetrias do sonho
apenas com paisagens secretas
apenas com os olhos dos viajantes
ou dos visitantes saídos dos quadros surrealistas
apenas com animais selvagens
tribos de um só ser
e um totem de ébano serenidade e marfim…

Suy / São Ludovino, 9/10/1984, (4h manhã)



Othelo - excerpt, photography by São Ludovino.


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