A VOZ DOS LIVRES
I
- O azul que nunca será teu
É o que resta de ontem
De há um segundo atrás
De uma vida inteira
Foi-se o cansaço e a esperança
Ficou o ódio eterno ao ditador
Aos assassinos gélidos e paranóicos
Às feras de todos os tempos
Do czar ao bolchevique
Do denunciante ao homem de aço.
Que importa que tenha morrido
Se o império perdura, devora, espezinha, mata?
Raízes nascidas no inferno nunca perdem o veneno
Espalham-se malignas, serpenteiam, infectam
Buscam, caçam, asfixiam
Matam cobardemente, morrem e nada aprendem
Nem com a vida nem com a morte.
Delas brota todo o mal
Como poderia eu querer comer tais frutos
Sentar-me de braços cruzados sobre o sangue dos meus?
Tenho 80 anos, sou tão velho como a casa roubada
Como a poeira destes escombros
Não importam os anos, tenho a força dos livres
Não nasci para ser de novo escravo
A vossa falsa utopia já eu conheço
Levou-me pais e avós, metade da minha vida
Tantas vidas que já não posso contá-las
Não quero contá-las, quero honrá-las
Lembro-me de todos sem nunca os ter conhecido
A noite traz-me os seus corpos decepados
E eu só já tenho este amor enraivecido
Para os amar invencivelmente.
Vivo para ver morrer, a ti, a vós, ao vosso império.
Seja como for, nada podes fazer
Nem tu nem os teus fuinhas nem a tua bomba
Podem vergar a força de um povo livre.
O teu dia está próximo
Tão próximo
Que já lhe sinto o bafo
Já te vejo o esgar tão pouco soberbo
Já vejo ao longe o azul deste céu
Que nunca há-de ser teu…
II - IRRECONHECÍVEL
Isto tem de ter algum sentido
Isto tudo que acontece
Isto tudo que não estava aqui antes
Falta tanto neste lugar
Foram-se os dias felizes
Ficou o carrasco e o sádico torturador.
Nesta cela que antes era uma sala da minha escola
Só resto eu, frente a frente com mil demónios
Arrancam-me a pele, tentam arrancar-me a alma
Fazer-me fiel seguidor, traidor, verme estropiado
Antes morrer definitivamente
Ou ceder temporariamente
Sobreviver e depois matar.
Que outra alternativa resta?
Estas palavras não sou eu
Esta não é a minha canção
Este não é o meu hino
Esta não é a minha história
Esta não é a minha poesia
Nasci antes de ti
Roubaste-me a história
Mas não a verdade
Nunca a memória.
Nesta cadeira electrificada, o meu corpo agoniza
Nesta mesa onde as crianças escreviam com orgulho
“Ucrânia livre! Glória à Ucrânia! Glória aos heróis!”
O meu sangue mistura-se ao dos outros.
Por instantes, que vêm e vão
Eu só consigo ver o que lá está
Vermelho e eloquente:
O sangue, o martírio dos resistentes.
A dor adormece e acorda
Procura pontos de luz no negrume
Basta um minúsculo ponto de luz para não desistir
E então eu venço a dor lancinante
E lembro a mesa cansada
A folha manchada de borsch
Em que escrevi mil vezes
”Só tu me guias, liberdade
Pátria amada e intransmissível!”
De novo o ar é cortado pelo silvo dos obuses
O anúncio de mais e mais mortes
Diz-me que é tempo de partir
Mas o choque eléctrico faz-me resistir.
Atordoado, penso que ouço lá fora
A minha língua, a voz libertadora dos meus.
Não é uma ilusão, a minha força regressa
Alimentada apenas pela promessa de liberdade.
Que inútil é a perversidade dos brutos!
Voltei ao lugar onde ficava a minha casa
Onde havia uma sala com uma mesa
Companheira de luta, de sonhos e pesadelos.
É agora lenha que me aquece neste inverno
Agora escrevo nos troncos das árvores vivas
Nas pétalas dos girassóis que hão-de vir
As mesmas luminosas palavras
”Só tu me guias, liberdade!”
São Ludovino, 1/12/2022
III - INEXPLICÁVEL
Não me perguntes porquê?
Porque invadem, torturam, matam?
Não há uma razão para o mal
O mal é o mal
Não precisa de mais definições ou explicações.
Não existem causas que justifiquem o mal
O mal é um efeito do mal
Causa-se a si mesmo
Propaga-se lenta ou velozmente
Desde que seja tolerado, alimentado, temido.
O mal alimenta-se da arrogância e da estupidez
Da cobardia e da hipocrisia.
O mal precisa de muitos servos
Sempre mais do que os livres.
O mal tem um só líder
Um inventor de causas e pretextos
Um inventor de verdades e quimeras.
O líder é um polvo metálico
Com braços e ventosas muito eficientes e letais.
O líder é teólogo, ideólogo, inquisidor e executor
O líder não cabe em nenhum território
Tem de ir sempre mais além
Enroscar os seus braços em redor de mais gargantas
Arrancar mais gritos e mais vivas dos fantoches:
“Sim, mestre! Sim, mestre!
O mal é o bem e o bem é o mal
Veneramos este mal porque é o supremo bem!”
Não me perguntes porquê?
Porque há sombras que te perseguem
Garras que te esmagam
Vozes que te falam nos ecrãs, nas paredes da tua casa
Nas ruas, nas fábricas, nos escritórios, nos campos
Que te dizem quem és, quem deves ser
Tudo o que podes ser
Se podes ou não existir
Se amanhã serás outro ou ninguém
Que te dizem como podes ser bom se fores suficientemente mau.
Não vale a pena falar da engrenagem, do grande plano
Da engenharia latente que tudo corrompe.
Para quê falar do óbvio?
Não percebeste ainda que as regras do mal são corruptas por natureza
Aplicam-se por acordo tácito e recíproco.
Não vale mesmo a pena perguntar, se não quiseres responder.
Ousa, duvida, acredita, acredita em ti, responde.
O mal é um nevoeiro extremamente transparente e antitético.
Podes chamar-lhe ditadura, autocracia, teocracia
Podes chamar-lhe liberdade, democracia, utopia.
Pouco importa.
O mal determina que todos sejam conceitos vazios e equivalentes.
O mal é um grande designer, desenha a realidade com rótulos
Símbolos decorativos, labirintos, espaços de transição em cenários fixos
O mal é loquaz e persuasivo, atento e extremamente interventivo.
O mal engana-te com o seu jogo de palavras
Os seus equívocos e paradoxos.
E tu, sim tu, que anuis e condescendes,
Tu que estás a salvo no teu reduto
Que procuras explicar o que é claro e transparente
Justificar o injustificável
Com veemência moral, parcial, invertida
Tu que interrogas e acusas David, mas nunca Golias
Tu que acreditas em falácias e na superioridade dos prepotentes
Que acreditas que tudo isto é feito por ti, para teu bem e salvação
Que acreditas na força da ordem, e na ordem dos fortes.
Tu sabes, não finjas que não sabes
Sabes o que é o mal
Sabes por que vieram, por que matam, por que te querem a seu lado.
Não te parece que em vez de perguntares deverias acordar dessa fé
Dessa dormência, essa peçonha viscosa
Simplesmente abrir os olhos, lavar a mente
Respirar, ser
E depois agir?
Ah, ainda estás adormecido e convencido
Estás confortável, bem vejo
Vês o cortejo fúnebre passar
Nada te diz a coragem, o sacrifício
A imensa dor de milhões.
Não é tua a dor, bem sei
Achas-te demasiadamente importante para ser humano
Simplesmente humano
Rendes-te à banalidade do mal.
"É a ordem natural das coisas", insistes…
Os que se rendem à irracionalidade desumana do mal
Nunca serão independentes, nunca serão livres
Nunca serão verdadeiramente.
São Ludovino, 1/12/2022
Peace by ©Waldemar Walczak.
Catherine, 70, Borodyanka, Kyiv region,
Ukraine, October 20, 2022, photo by © Emilio Morenatti.


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