domingo, 31 de dezembro de 2023

Contos Breves - III

I

 O HOMEM NA LUA

     Havia há muito, muito tempo, um homem quase transparente, quase invisível, quase vulgar. Andava há muito tempo a construir a sua casa infinita em todos os lugares. Não usava tijolos nem cimento, martelos ou pregos, gruas ou retroescavadoras, pedras, madeira ou tintas. A sua única matéria-prima e ferramenta era uma porta desdobrável que ia colocando aqui e ali. Trazia-a sempre debaixo do braço, como outros trazem um livro, um jornal ou uma pasta leve. Às vezes, parecia um quadro, às vezes, semi-aberta, servia de banco repousante nas longas caminhadas, às vezes era janela andante nas noites de luar. E era mala de viagem donde saía o alimento e o cobertor quente nos dias de Inverno.

     Era uma velha porta, construída em criança num daqueles dias infindáveis em que os pássaros não querem dormir enquanto a dança colorida do poente não terminar. Desde esse dia, aquela porta foi a sua fiel companheira em todos os lugares. Chegava a um lugar, pousava a porta, abria-a, entrava e aí era a sua casa. Quando escrevia alguma carta, apenas escrevia no remetente “Da minha casa”. Nunca recebeu cartas. Provavelmente foram todas parar à morada errada, um lugar onde já não estava ou onde ainda não estivera.

     Quando a vida o obrigava a permanecer durante muito tempo em lugares fechados, abria a porta-quadro e deliciava-se com as paisagens viajantes que desfilavam perante os seus olhos. Se estava frio de mais, abria a porta para uma lareira acolhedora e ali ficava a conversar com as chamas dançantes. Ou então, passava a soleira e sentava-se sob um sol radioso, mesmo que à volta o vento gélido tolhesse os transeuntes e a chuva lhes encharcasse os pesados sobretudos. Se os músculos pediam movimento, abria a porta para uma praia tranquila, uma floresta ou um jardim. Se lhe apetecia conversar, abria a porta em qualquer aldeia, vila, cidade ou estrada deserta e logo uns olhos amigáveis se aproximavam dos seus e dispensavam-no até de proferir qualquer palavra. Mas em todo o lado há vida e histórias e, sem dar por isso, o tempo enchia-se com rios e cascatas de palavras, uma espécie de música espontânea, com correntes e cadências próprias. Foi assim que começou a amar o mundo como um todo… e a detestá-lo também, quando o rio secava ou a cascata se tornava uma enxurrada de ruídos indecifráveis. Nesses momentos, fechava a porta àquele lugar e regressava à praia tranquila, logo ali ao lado. As gaivotas lá estavam, glissando sem pressa sobre as ondas. E a mulher luminosa, feita de céu, água e luz, cuidava dedicadamente do jardim. Tudo estava do outro lado da porta, bastava abri-la.

       Chegava a uma planície verdejante, pousava a porta no chão, abria-a de par em par e dizia “Aqui é a minha casa!” E a planície ficava ainda mais bela e viçosa, só por sentir que alguém a amava e queria ficar ali.

     Olhava para uma montanha, perscrutava-lhe as encostas, o cume, os vales e dizia “Quando chegar ao topo, ali será a minha casa!” E para que a escalada fosse menos dura, o vale dava-lhe alimentos frescos e água pura; e as encostas, comovidas com a determinação do caminhante, desenhavam socalcos suaves numa imensa escadaria do sopé ao topo. E lá do alto, o homem, feliz, sentado no seu alpendre de madeira, pensava para consigo “Do alpendre da minha casa posso ver todo o horizonte, e todos os lugares que vejo ou adivinho, aquém e além do horizonte, são a minha casa!”

     Morou em muitas planícies, vales e montanhas, em muitas aldeias, vilas, cidades, caminhos e estradas e continuava a caminhar, sempre com a sua fiel companheira debaixo do braço.

     Um dia, quando morava junto ao mar, foi passear pela praia, respirar com a alma os últimos raios de sol de um dia tranquilo. Por ali ficou até o luar iluminar a superfície das águas e beijar a areia húmida e macia. Pegou na porta e colocou-a sobre uma mancha luminosa de luar, um lago de luz onde lhe apeteceu mergulhar. Abriu a porta e caminhou lentamente, primeiro sentindo a textura da areia, depois o veludo da noite, a brisa das estrelas, o éter da distância, a respiração serena do tempo, algures muito para além do horizonte.

Ia já muito longe, mas parecia possível tocar-lhe esticando apenas o braço através da porta; e os passos continuavam a soar ali mesmo ao lado, desenhando pegadas luminosas na areia húmida.

     A mulher luminosa aproximou-se da porta aberta. Nunca a tinha visto ali antes. Espreitou para o outro lado, ouviu os passos sobre a areia e viu uma Lua enorme sorrir sobre o zénite. Sobre a Lua caminhava um homem com uma porta debaixo do braço. Parecia exactamente a mesma que via à sua frente. Viu-o pousar a porta e logo uma floresta cresceu em redor. A maior das árvores floriu quase de imediato. Logo outras se seguiram, cobrindo-se de flores e frutos. Pensou para consigo “Agora, também há um jardim na Lua! A Lua deve estar muito feliz!” Sentiu o aroma dos frutos lunares e reconheceu-o. Era o mesmo aroma que emanava do seu jardim à beira-mar. Esticou o braço através da porta e colheu um fruto lunar. Também os frutos tinham o mesmo sabor que os frutos das suas árvores.

      Tocou na porta. Era tão leve como o ar e agora quase completamente transparente. Pô-la debaixo do braço e caminhou pela estrada de luar até deixar de se avistar. A luz dissolveu-se na luz.

     Na Lua, o homem sorri, banhado pela luz e cores do seu pomar que cresce, cresce sem parar. Em silêncio, de olhos cerrados, beija a rosa lunar que lhe floresce nas mãos abertas. A flor cresce mais e mais e esvoaça suavemente pelo ar até ir pousar sobre as águas calmas de um mar azul e cristalino. Sereno, o homem abre os olhos muito devagar. Lentamente a mulher luminosa emerge das águas e caminha na sua direcção. Em silêncio, traz de volta a rosa lunar, deposita-a nas mãos do homem, senta-se a seu lado e adormece, ouvindo-o cantar.  

São Ludovino, 17/7/2016 (este é o primeiro conto da série “Coisas Que Funcionam”)

Moving reflection II, photography by São Ludovino.

Under many moons II, photography by São Ludovino.

Untitled Song II, photography by São Ludovino.


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