I
O HOMEM NA LUA
Havia há muito, muito tempo, um homem quase transparente, quase
invisível, quase vulgar. Andava há muito tempo a construir a sua casa infinita
em todos os lugares. Não usava tijolos nem cimento, martelos ou pregos, gruas
ou retroescavadoras, pedras, madeira ou tintas. A sua única matéria-prima e
ferramenta era uma porta desdobrável que ia colocando aqui e ali. Trazia-a
sempre debaixo do braço, como outros trazem um livro, um jornal ou uma pasta
leve. Às vezes, parecia um quadro, às vezes, semi-aberta, servia de banco
repousante nas longas caminhadas, às vezes era janela andante nas noites de
luar. E era mala de viagem donde saía o alimento e o cobertor quente nos dias
de Inverno.
Era uma velha porta, construída em criança num daqueles dias infindáveis
em que os pássaros não querem dormir enquanto a dança colorida do poente não
terminar. Desde esse dia, aquela porta foi a sua fiel companheira em todos os
lugares. Chegava a um lugar, pousava a porta, abria-a, entrava e aí era a sua
casa. Quando escrevia alguma carta, apenas escrevia no remetente “Da minha
casa”. Nunca recebeu cartas. Provavelmente foram todas parar à morada errada,
um lugar onde já não estava ou onde ainda não estivera.
Quando a vida o obrigava a permanecer durante muito tempo em lugares
fechados, abria a porta-quadro e deliciava-se com as paisagens viajantes que
desfilavam perante os seus olhos. Se estava frio de mais, abria a porta para
uma lareira acolhedora e ali ficava a conversar com as chamas dançantes. Ou
então, passava a soleira e sentava-se sob um sol radioso, mesmo que à volta o
vento gélido tolhesse os transeuntes e a chuva lhes encharcasse os pesados
sobretudos. Se os músculos pediam movimento, abria a porta para uma praia
tranquila, uma floresta ou um jardim. Se lhe apetecia conversar, abria a porta
em qualquer aldeia, vila, cidade ou estrada deserta e logo uns olhos amigáveis
se aproximavam dos seus e dispensavam-no até de proferir qualquer palavra. Mas
em todo o lado há vida e histórias e, sem dar por isso, o tempo enchia-se com
rios e cascatas de palavras, uma espécie de música espontânea, com correntes e
cadências próprias. Foi assim que começou a amar o mundo como um todo… e a
detestá-lo também, quando o rio secava ou a cascata se tornava uma enxurrada de
ruídos indecifráveis. Nesses momentos, fechava a porta àquele lugar e
regressava à praia tranquila, logo ali ao lado. As gaivotas lá estavam,
glissando sem pressa sobre as ondas. E a mulher luminosa, feita de céu, água e
luz, cuidava dedicadamente do jardim. Tudo estava do outro lado da porta,
bastava abri-la.
Chegava a uma planície verdejante, pousava a porta no chão, abria-a de
par em par e dizia “Aqui é a minha casa!” E a planície ficava ainda mais bela e
viçosa, só por sentir que alguém a amava e queria ficar ali.
Olhava para uma montanha, perscrutava-lhe as encostas, o cume, os vales
e dizia “Quando chegar ao topo, ali será a minha casa!” E para que a escalada
fosse menos dura, o vale dava-lhe alimentos frescos e água pura; e as encostas,
comovidas com a determinação do caminhante, desenhavam socalcos suaves numa
imensa escadaria do sopé ao topo. E lá do alto, o homem, feliz, sentado no seu
alpendre de madeira, pensava para consigo “Do alpendre da minha casa posso ver
todo o horizonte, e todos os lugares que vejo ou adivinho, aquém e além do
horizonte, são a minha casa!”
Morou em muitas planícies, vales e montanhas, em muitas aldeias, vilas,
cidades, caminhos e estradas e continuava a caminhar, sempre com a sua fiel
companheira debaixo do braço.
Um dia, quando morava junto ao mar, foi passear pela praia, respirar com
a alma os últimos raios de sol de um dia tranquilo. Por ali ficou até o luar
iluminar a superfície das águas e beijar a areia húmida e macia. Pegou na porta
e colocou-a sobre uma mancha luminosa de luar, um lago de luz onde lhe apeteceu
mergulhar. Abriu a porta e caminhou lentamente, primeiro sentindo a textura da
areia, depois o veludo da noite, a brisa das estrelas, o éter da distância, a
respiração serena do tempo, algures muito para além do horizonte.
Ia já muito longe, mas parecia
possível tocar-lhe esticando apenas o braço através da porta; e os passos
continuavam a soar ali mesmo ao lado, desenhando pegadas luminosas na areia
húmida.
A mulher luminosa aproximou-se da porta aberta. Nunca a tinha visto ali
antes. Espreitou para o outro lado, ouviu os passos sobre a areia e viu uma Lua
enorme sorrir sobre o zénite. Sobre a Lua caminhava um homem com uma porta
debaixo do braço. Parecia exactamente a mesma que via à sua frente. Viu-o
pousar a porta e logo uma floresta cresceu em redor. A maior das árvores floriu
quase de imediato. Logo outras se seguiram, cobrindo-se de flores e frutos.
Pensou para consigo “Agora, também há um jardim na Lua! A Lua deve estar muito
feliz!” Sentiu o aroma dos frutos lunares e reconheceu-o. Era o mesmo aroma que
emanava do seu jardim à beira-mar. Esticou o braço através da porta e colheu um
fruto lunar. Também os frutos tinham o mesmo sabor que os frutos das suas
árvores.
Tocou na porta. Era tão leve como o ar e agora quase completamente
transparente. Pô-la debaixo do braço e caminhou pela estrada de luar até deixar
de se avistar. A luz dissolveu-se na luz.
Na Lua, o homem sorri, banhado pela luz e cores do seu pomar que cresce,
cresce sem parar. Em silêncio, de olhos cerrados, beija a rosa lunar que lhe
floresce nas mãos abertas. A flor cresce mais e mais e esvoaça suavemente pelo
ar até ir pousar sobre as águas calmas de um mar azul e cristalino. Sereno, o
homem abre os olhos muito devagar. Lentamente a mulher luminosa emerge das
águas e caminha na sua direcção. Em silêncio, traz de volta a rosa lunar,
deposita-a nas mãos do homem, senta-se a seu lado e adormece, ouvindo-o
cantar.
São Ludovino, 17/7/2016 (este é o primeiro conto da série “Coisas Que Funcionam”)
Under many moons II, photography by São Ludovino.
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