TRATADO IMPUBLICÁVEL
Este "Texto Interminável" só é verdadeiramente interminável na segunda parte, que consiste em escrever a "Errata" ou "Corrigenda" de um livro em branco. Nesta errata cabem assuntos sérios, completos disparates, jogos de palavras e tudo aquilo que se quiser imaginar. É a errata e não o livro vazio que é virtualmente interminável, se bem que ambos podem ser intermináveis...
«Para quê encher mais o mundo de palavras inúteis?» *
Apinham-se nos corredores dos valores literários
Conversam em surdina com os agentes
Os brockers, os editores, os distribuidores
Cruzam meticulosamente a informação,
As estatísticas, as previsões, a tendência dos mercados
Os gráficos, os índices de vendas, a direcção dos ventos
Do gosto, dos aperitivos, da estética da recepção
O que está in, o que está out
Estilos, géneros e subgéneros
Tipologias típicas e atípicas
Estudos de opinião, a inclinação dos críticos
As potencialidades da publicidade
O lançamento, o reconhecimento, os dividendos.
Após aturada análise, desenham conclusões
Identificam pistas, pegadas, impressões digitais
Estabelecem metas, padrões, paradigmas
Possibilidades de happy ending, grand final
Graus de suspense, o ritmo ou arritmia das pausas
Peripécias, equívocos, trocadilhos, símbolos
Recursos e percursos do estilo, da culpa e da inocência
Da vanguarda, da retaguarda, da guarda imperial
Metáforas, anáforas, diáforas e epíforas
Paradoxos, preâmbulos, sequências, impertinências
Títulos, capítulos, episódios, doses de terapia
Dogmas, subversão, sabotagem
Revolução e contra-revolução
Catecismos, paroxismos, ataraxias
Heróis, vilões, Híbris, Catástrofe, Ethos e Pathos
Anagnórise, Ágon, Anankê e Katharsis
Quantas gotas de sangue, quantos anos de guerra
Quantos soluços de dor, quantos risos de escárnio
Quantos momentos de paz, justiça, amor…
Os publicáveis correm para casa
Para o estúdio, o escritório, o refúgio, o habitáculo
Pegam nas canetas, nas máquinas, no papel, no corrector
Chamam os dactilógrafos, os estenógrafos, as musas
Os consultores, os peritos, os provadores
Os estafetas, o catering, os artífices…
E a produção começa
Não há tempo a perder
As tipografias, as montras, os escaparates, os bancos aguardam
Só vale mesmo a pena se for um best-seller
Se abrir o apetite para mais e mais
Sequelas, feitos e efeitos secundários
Ressacas, síndromes de privação, possibilidades de encore
Edição, reedição, impressão e multiplicação
Só vale mesmo a pena se o influxo for duradouro
Se a recompensa for maior do que o esforço e o gasto.
Este publicável escolhe o romance conspirativo
Aquele, o gótico, a acção, a espionagem, a aventura
A reinvenção da história, a ficção científica, a ficção obsessiva
O realismo puro e duro, alquímico, inquietante, inócuo ou benigno…
O dactilógrafo protege os ouvidos do martelar da máquina
Enrola ligaduras nos pulsos, na artrite, no receio de falhar
De engolir palavras, vírgulas, reticências
Tilinta-lhe o cursor na pele de duplo ao mudar de linha
Mudar de folha é um malabarismo supersónico
Lapsos, hesitações, omissões, gralhas e corvos grasnadores…
As correcções ficam para depois
Se o publicável se lembrar da inspirada tirada
Da palavra certeira ou do sentido íntimo da obra.
O estenógrafo sua por todos os poros, todos os neurónios
O autor não repete, recusa-se a repetir
O estenógrafo tem de inventar, de preencher as lacunas
Adivinhar o rumo da intriga, da nuance hiperlexical
Hipocondríaca, hipersónica, hiperbólica
Reluzente, impertinente, premente, eminente
Quase demente, quase demoníaca, inútil, fútil
(Que um autor não pode criar tudo
Precisa de colaboração…
Interpretação, acabamentos, retoques, aditamentos…)
Nem uma pausa para o chá, o café, a interiorização
As palavras ferem, seguem à frente do pensamento
Cavalos selvagens que não pertencem a ninguém
Pisam os gatafunhos furiosamente
E desaparecem entre a poeira cansada…
As musas não têm horário
Trabalham sempre em part-time flexível
Entram e saem quando lhes apetece
Vêm coroadas, despidas, envoltas na pele
De animais extintos, míticos, híbridos
Recostam-se no sofá, no canapé, no peitoril da janela
E ali ficam em exposição temporária
Languidamente astutas, vetustas, estúpidas.
Tiram de um bolso imaginário
Rolos de papel imaginário, carcomido, mudo
Não trazem tópicos, ideias luminosas ou inspiração
Vêm só cumprir a tradição e depois, sem pressa
Sem qualquer oposição, deixam-se recortar em origami
Trepam, rastejam pelas paredes, sucumbem no chão
Tapetes de nada em que adormecem…
As musas adormecidas são as mais profícuas
Pelo menos comparecem quando invocadas
As outras são apenas fonte de distração…
Os consultores são mutualistas: consultam e são consultados
Usam estetoscópio, canetas de tinta permanente e bengala à John Steed
Repetem a receita prévia e prescrevem a seguinte
Verificam se o plano está a ser cumprido…
Na verdade, são apenas fiscais protocolares
Só intervêm verdadeiramente
Se algum publicável se mostra
Demasiado indisciplinado ou criativo
Uma probabilidade rara mas real e inesperada…
Nunca se sabe com toda a certeza…
Em casos excepcionais, os desvarios são aceites e apoiados
Assim começa a mudança de paradigma
É necessário para agitar e dinamizar os mercados.
Para poupar nos gastos, os consultores tornam-se ecléticos:
São contabilistas, promotores publicitários
Médicos, nutricionistas, estatísticos, psicanalistas
Meteorologistas, geógrafos, arqueólogos, censores-conselheiros
Mestres de cerimónias, críticos, propagandistas, áugures…
Os consultores são assíduos e extremamente atentos
Não há necessidade que não consigam diagnosticar
Prever ainda antes de existir, mesmo que nunca venha a existir
Se não existe, inventa-se, misturam supérfluo e essencial
Até que tudo seja necessário, mas nunca suficiente…
Passam cartas astrológicas, terapias, raspanetes
Bebem chá, acomodam-se, cospem para o ar
Advertem, dão conselhos, tropeçam nas musas adormecidas
Mas nunca caem objectivamente
Apenas em sentido figurado, calculado, com etiqueta e requinte
Não se cansam de ser literariamente inúteis
Não há fadiga que possa consumir o profundo sentido de inutilidade
Pouco importa… no final, lá virão
No cólofon ou no anterrosto
Na ficha técnica, nos agradecimentos ou na dedicatória.
Os peritos, esses sim, sabem o que fazem
O que dizem ou insinuam, pregam ou desdizem
Trazem glossários, catálogos, preçários, genealogias
São tantos, que é difícil distingui-los
Por muito específicos, especializados, graduados que sejam
Formam um corpo monolítico e disciplinado
São oradores comedidos, mas extremamente incisivos
Podam as páginas, as linhas, as palavras
Até que a árvore fique geometricamente equilibrada
Acrescentam pitadas certeiras de estilo e ocultismo
Terminologias herméticas, teorias osmóticas
Enxertam neologismos nos arcaísmos
Até que o mistério da linguagem se sobreponha
Ao mistério das almas e ao fio do prumo da acção…
Mesmo sem querer, eles são uma das penas ocultas dos publicáveis…
Os provadores, essa espécie dionisíaca
Que vive inebriada com o próximo golo de absinto
A próxima dentada no pescoço da heroína,
Não têm manuais, rosas-dos-ventos, regras ou etiqueta
Aqui rasgam, ali acariciam, além invectivam
Têm um paladar caprichoso e exigente
Mas se pagarem bem, o gosto acomoda-se
Conforma-se com as tendências vigentes
Que prevaleça o gosto supremo do publicável e vendável…
É imperioso que o acepipe venda, convença
Abra caminho à enxurrada…
A haute-cuisine imita apenas a haute-literature
Como a vida imita a ficção ou vice-versa
Mas não consegue substituí-la…
Alguns são mais temerários
São os melhores…
São os que gostam da roleta russa, de venenos
De soufflé kamikaze, de pataniscas, de iscas, de tremoços
De areias movediças, de riscos extremos, de precipícios
Quanto mais intragável for o pitéu
Mais apetite lhes desperta.
São eles os verdadeiros responsáveis
Pelas guinadas no rumo da acção
Pelos acabamentos, condimentos e cerziduras
São eles que dão personalidade própria à obra nascente
Se apanham uma intoxicação
Ou acabam a estrebuchar no chão com a língua de fora
Isso é bom sinal
Significa que acertaram na mouche
Na borboleta e no moscardo…
Os estafetas são relativamente dispensáveis
Alguns são despenseiros de orfanatos
Ou vivem na despensa do arco-íris
Raramente passam do vestíbulo
Trazem cartas, bilhetinhos, cautelas de lotaria
Jornais, batatas fritas e pastilhas elásticas
O resto da ementa cabe ao catering
Vivem numa relativa paz de espírito
Proporcional à frugalidade dos hábitos
Não têm opiniões nem inclinações nem preconceitos
Apenas pressa e ordens a cumprir
Têm uma imaginação fértil
Mas guardam-na para si…
Não sabem o que perdem os figurões!
Um estafeta é veloz e invisível por definição.
Deve ser por isso que raramente recebem gorjeta…
Um publicável não passa fome
Excepto se a fome for boa conselheira
Um role play de personagem martirizada
Que urge tornar real…
Se queres saber o que é a fome, passa fome
E já agora, passa sede e frio, humilhações e insultos
O realismo que vem da mera observação
Ou da imaginação ingénua não é convincente
É preciso experimentar… sentir na pele, mas não demasiado
Que um publicável tem limites, caramba!
Para evitar tais excessos e agruras
Existe o catering, essa cortina alimentícia
Que separa a realidade da ficção e as combina de forma perfeita…
Passar fome para experimentar ou fazer dieta
Não é o mesmo que passar fome porque não há outra alternativa à fome…
Ao lado da mesa de trabalho há sempre um buffet completo
Transbordante de calorias e opções tentadoras
Uma espécie de rede de protecção da realidade…
O catering de um publicável tem tudo
Como uma loja de utilidades, quinquilharia
Um kit de sobrevivência ou um centro comercial
Nunca se sabe o que vai fazer falta:
Um caniche de companhia, uns berlindes, arco e flecha
Dilemas, espadas de Dâmocles, panaceias e lenitivos
Vulcões, luvas de pelica, diamantes, morangos
Girândolas, saltimbancos, caretos de Podence
Camelos, camélias, a Camorra, um prato de lentilhas
Pianos de cauda, whisky, água mineral…
Ou até uma musa ou um “muso” adicional.
Às vezes, as musas habituais cansam
Tornam-se enfadonhas e redundantes…
É preciso ir sempre mais além
Experimentar, experimentar, experimentar sempre
Desde que não doa muito
Nem exija grandes sacrifícios
Nada de torturas, masmorras, homicídios, miséria…
O principal papel do catering
É proporcionar um infindável leque de experiências
Benéficas, instrutivas, verosímeis, ilusórias, inúteis e inócuas
Da viagem ao espaço ao mergulho numa piscina de notas…
Umas experiências são reais ― as confortáveis, deliciosas, de chorar por mais
As outras são fictícias ― as dolorosas, inevitáveis, punitivas
Para essas chama-se um duplo e ele que exemplifique…
O publicável tem certas ideias sobre a natureza da literatura
Sobre a utilidade e a finalidade da ficção e da História
Sobre a forma como ambas se cruzam inevitavelmente
E se devem unir em síntese-espelho na obra-prima
Esdrúxula, definitiva, fantástica, pragmática, enfática, eficaz…
Ter ideias sobre a literatura, o funcionamento do mundo
As ideias fundadoras da civilização, as utopias e as distopias
É uma questão de respeito, de estatuto, de afirmação…
Não importa muito que ideias são ou parecem ser
Humanismo, coerência, convicção, cinismo
Uma ideia e o seu contrário têm o mesmo valor transacionável
Consumível, achas na fogueira das vaidades
Fole de ferreiro na forja do pensamento efémero…
O publicável não acredita que o narrador se possa confundir com o autor
Sem um enorme esforço e uma boa dose de fingimento
Mesmo a autobiografia, autorizada ou inventada
Exige uma enorme dose de experimentação e simulação
A priori e a posteriori
O autor tem de experimentar para que o narrador autodiegético
Seja absolutamente convincente e sincero…
E não é só o narrador, é preciso percorrer toda a galeria actancial
Vasculhar a alma de todas as personagens
Dissecá-las com empatia fleumática
Adivinhar-lhes os pensamentos, os propósitos, os segredos
Prever as intenções, antecipar os actos…
Oh, abençoada e divina omnisciência!
Determina, vigia, confere poderes sobre-humanos
Abre a auto-estrada dos mistérios do ser
Em que todos se querem perder
Escorregar no piso escorregadio da metafísica
Laboratórios, simetrias, confrarias de iniciados
Precitos percorrendo os nove círculos da aprendizagem póstuma…
Eles que caminhem, que se afundem sem cicerone, pobres Tântalos
Que o publicável não faz a mínima tenção de pisar terras tão perigosas…
Fazer de conta, experimentar, experimentar sabiamente
Sem riscos, sem erros de cálculo…
De uma forma ou outra é preciso experimentar tudo
Basta usar os pronomes pessoais e os verbos certos
Banir a pontuação ou usá-la de modo inesperado
Sintetizar, parafrasear, estilizar, metaforizar, codificar
Construir o labirinto e convidar o leitor para entrar…
Oh, experimentar, ou fazer de conta,
Que maravilhoso modo de ser sincero!
Mas só se for o herói, o Don Juan, o ricaço, o mágico
O explorador de mundos, o messias, o salvador da Humanidade…
Tragam o dossel, o pudim Molotov, a ninfa, o ornitorrinco
Um cheque chorudo com cobertura, o passeio da fama, a imortalidade
As concubinas, as gueixas, as odaliscas, os eunucos, um harém inteiro…
Que comece o festim, a orgia, a fecundação da obra!
O publicável é um homem honesto
Tem um código de honra como os piratas do Mar Vermelho
Um Padrinho siciliano ou um traficante de papoila dormideira
Também tem uma constituição e um código deontológico
A constituição é artística, flexível, evolutiva
É revista, reformulada e retocada em cada estação
Às vezes é revogada em nome do saudosismo
Ou da necessidade de implementar uma revolução
É um documento fundador que refunda permanentemente…
O publicável tem o dever deontológico de acreditar convictamente
Na utilidade e na sinceridade da literatura
Das lágrimas, da compaixão, do ódio, do conluio, do absurdo, das utopias
Cumpre estilisticamente o dever de acreditar
Sobretudo o dever de fazer de conta que acredita
Na verdade intrínseca das palavras, das acções
Das emoções, da fantasia, da ideia libertadora…
Para o demonstrar usa uma receita infalível:
Mimese, cinismo e uma pitada de ingenuidade
Preocupações sociais, altruísmo e um cálice de egoísmo
Empatia, o idiolecto dos simples e metáforas enclausuradas
A crueza do sofrimento, conformismo, activismo e glamour…
Às vezes muda de receita, depende das audiências
Das revoluções e contra-revoluções
Dos relativismos, dos truísmos e outros -ismos
Dos acessos de humor dos editores, dos lobbies, das marés…
O verdadeiro publicável é um grande navegador
Qualquer que seja a tempestade nunca se afunda
Segue na crista da onda, descobre estâncias turísticas
Leitmotivs, inclinações, ideias vencedoras…
E assim viaja, sem cansaço
Da galáxia de Gutenberg à feira das vaidades
Oh, abençoados leitores de bom gosto
Que consomem incansavelmente tais iguarias!
Os publicáveis trabalham incansavelmente
Para os prelos, as luzes da ribalta, o cheque
A nutrição dos espíritos convergentes…
Que é feito dos artífices? Ainda não chegaram?
Falta aqui um cenário, uma natureza morta
Uma torre de vigia, um quartel-general, um moinho de vento
A Grande Muralha da China, um torpedo, um módulo lunar
Uma avalanche, o Yeti, o Insondável Tao
Centauros, Quimeras, Gambuzinos, Ciclopes…
É preciso realismo! Tem de estar tudo aqui
Perante os olhos do re-criador
A realidade é necessária para criar realidade
Tão necessária como os mitos, que também nasceram da realidade
Num dia ou numa noite em que a realidade estava meio adormecida
Embriagada, ociosa, confusa ou treslia a voz clara dos oráculos…
Não basta a imaginação, a intuição, documentários, palestras
Fotografias, fichas de notas, simulacros e imitações…
Adivinhar o desconhecido é sempre arriscado…
Às vezes é a única coisa interessante
É quando um dos artífices falta ou chega atrasado
Que a inventiva começa a trabalhar…
Às vezes o escritor é publicável
Outras vezes é simplesmente escritor
Um amante da escrita ou um criador compulsivo
O publicável raramente é um criador espontâneo
Mesmo quando se confunde com o escritor
O publicável é um agregado de criaturas exógenes
Desconhece que o seu cérebro pode ter alma própria
Conceber todos os mundos que procura fora de si
Cede ao apelo da matéria e vende-se com todo o prazer
O primeiro e último engano do publicável
É não procurar em si todos os seus adjuvantes
Eles até podem lá estar, ansiosos por ver a luz do dia
Esforço vão, vencidos, exilados, calam-se e observam em silêncio
A poeira dourada que desce lentamente sobre a terra de ninguém
A obra frankensteiniana, postiça colagem de membros alheios
A perda de autonomia, da autenticidade, da força motriz da criação…
Nada que preocupe ou entristeça o publicável
O publicável não falha, não tem lacunas, crises criativas ou existenciais
Tem o plano bem traçado, premeditado para ser o que tinha de ser…
Queiram ou não queiram os deuses, a obra nasce, gemente, colossal
De parto forçado, indolor e artificial…
Mais de 500 páginas de colaboração e altos desígnios
Uma empresa bem-sucedida, sem dúvida…
As rotativas já rolam ensurdecedoras
Metralham quilómetros de palavras
Lá vão elas em direcção à foz
Abrem valas, arrasam diques
Carregam detritos preciosos
Na enxurrada final rumo ao grande oceano dos mercados…
Os tipógrafos não têm mãos a medir
Enquanto limpam o suor para não borrar a tinta
Dobram meticulosamente os cadernos
Empilham-nos, passam-nos aos encadernadores.
Estes cosem afanosamente as folhas, aparam as extremidades
Colam a capa à lombada, pressionam com precisão
Dão lustro às maiúsculas do título, rectificam os cantos
Arredondam as esquinas da obra física
Fixam de relance a imagem esotérica da capa…
De entre um denso nevoeiro vermelho
Uns olhos ameaçadores vigiam-nos, ordenam:
«Trabalhai, obreiros, trabalhai incessantemente
Servi a obra e o publicável com devoção».
Folheiam para verificar se ficou alguma folha por cortar
Ah, também tem ilustrações!
Os artífices da imagem trabalharam bem…
É preciso verificar se cada uma está na página que lhe compete
O revisor trata disso e dos percalços de última hora
Errata? Não há, tudo está no seu devido lugar…
Tantas mãos anónimas montando a obra que nunca lerão
Não podem lê-la, não têm tempo
Já lá vem outro calhamaço ou magro volume
No cólofon virão como um colectivo
Sempre no singular empresarial
Tipografia Mil Léguas
Encadernador Tomé Araújo Valentim Lda.
O dactilógrafo já está noutro gabinete
Martelando na máquina AZERT ou HCESAR
Outro best-seller anunciado ameaça desabrochar
Roubar-lhe o sono, o silêncio, o oxigénio
Não há descanso, cada toque de telefone
Esconde uma cilada, “sim, sim, às 8 estarei aí”
“Sim, sim até à meia-noite… sim, sim, claro…”
O estenógrafo põe os dedos de molho em bicarbonato
Faz fisioterapia aos pulsos e engole dolorosamente em seco
Maldita tendinite! Maldita celebrite! Maldita literatura!
Por que não escrevem livros com dez páginas apenas?
Ou então livros de poesia visual, experimental, concreta
Niilista, afásica, extinta, hipoléxica, anoréctica, condensada
Com muitas páginas quase vazias, alguns rabiscos
Imagens, símbolos e meia dúzia de palavras…
Ainda se pagassem horas extraordinárias!
Os consultores e os peritos bebericam cocktails à beira da piscina
Impermeáveis, impassíveis, insolentes, empertigados rejubilam
Foi um lançamento de arromba, os cofres gordos que o digam
O sucesso do publicável é o seu sucesso
É uma cadeia de produção perfeita!
O pessoal do catering foi substituído por outro mais fresco
Mais macrobiótico ou mais carnívoro
Mais atento às alergias e às preferências do publicável.
Os artífices despediram-se em bloco
Só ficou o dos efeitos especiais
(Que tem a capacidade inusitada de substituir todos os outros)
Os outros decidiram dedicar-se a arte mais libertadora e genuína
Pintam paredes, restauram antiguidades, esculpem o futuro…
Mas parecem ser sempre as mesmas
Só mudaram a roupa, a maquilhagem, os trejeitos
Adormecem infalivelmente após dez páginas
Dois parênteses e meia dúzia de reticências…
Os estafetas continuam velozes e invisíveis
Incomunicáveis na sua insignificância
Comunicam forçosamente com tudo e todos
Conhecem todos os adjuvantes, todas as peças do jogo
Continuam sem receber gorjeta
Almoçam uma sopa e um rissol
Regressam a casa a uma hora qualquer
Quando já ninguém os chama
Só então, o estafeta pode ser gente e respirar…
Ninguém lhe ofereceu um exemplar
Nem esperava que alguém se lembrasse dele.
O dactilógrafo lembrou-se que precisava de arranjar espaço
Na estante, na secretária, na rotina
E emprestou-lhe a primeira cópia
Desta, daquela e de outras obras…
Todas lhe pareciam novas demais, imberbes, lustrosas
Semelhantes demais, supérfluas demais
«Será que todas as obras são supérfluas e inúteis?» ― interrogou-se
Os livros velhos e meio esfarrapados
Dignamente envelhecidos
Estranhamente esquecidos
Que encontrava nos alfarrabistas
Pareciam-lhe mais vivos do que qualquer um destes…
Se eram mesmo supérfluas e inúteis
Então qualquer um as poderia criar
Mas ao contrário, como um antídoto
Livros vazios, pequenos, enormes
Alvos como a neve, bolorentos, carcomidos
Sem pressa de encher páginas
Sem pressa de ser lidos
Ou escritos…
«Um desses até eu consigo escrever…» ― pensou
E começou…
Folhas soltas em branco esvoaçavam
Pousavam-lhe aos pés, trepavam para a mesa
Juntou umas tantas e coseu-as para não escaparem
Começou na última página e escreveu no topo
“Tratado Impublicável”… uma experiência com palavras
E por baixo escreveu com determinação
“Errata”… corrigir, transformar, recriar um livro em branco
Isto sim era um desafio que valia pena…!
Sob o título “Tratado Impublicável” não escreveu nada
Sob o título “Errata” foi escrevendo, muito
Pouco a pouco ou de rajada…
ERRATA
1 – Onde se lê:
«Tratado»
1 – Deve ler-se:
«Expressão livre»
2 –
Onde se lê:
«Impublicável»
2 –
Deve ler-se:
«IMPUBLICÁVEL» com
maiúsculas, sem dúvidas, mesmo IMPUBLICÁVEL.
3 – Onde NÃO se lê:
«sem
fastio»
3 – Pode tresler-se sem medo de errar:
«dispéptico
apopléctico, patético antitético, opíparo disléxico, apático frenético»
«raquítico acrítico» ou «polígrafo fatídico» ou «Felismundo furibundo» ou
«cretino satisfeito» ou «completamente nu» ou «pão e água» ou «migalhas de
nada» ou outra coisa qualquer, desde que não seja «sem fastio» …
4 – Onde NÃO se lê:
«ominoso
e imprudente”
4 – É preferível ler-se antecipadamente:
«mimoso e contente»
«míope evidente»
«vidente impertinente»
«sanguessuga espadachim»
«Valentim fiasco»
«vigário proponente»
«viscoso e aderente»
«vaselina e benzina»
«vaidoso asséptico» ou «cínico
assarapantado» ou «casto e vasto» ou outra coisa qualquer, incluindo «ominoso e
imprudente» mas sem as vogais… «mns mprdnt»… ou então, sem as consoantes… «oioo
e iuee»…
5 – Onde NÃO se lê:
«pulular»
5 – É possível ler-se, saltando e rindo:
«espirrar pelos cotovelos»
«atracar, atacar, afagar e elucidar o
pastel escanifobético, o magarefe, o galifão e o homem das calças pardas»
«pôr o império de molho até dar às de
vila-diogo em águas de bacalhau lá onde o diabo perdeu os calções»
«anediar e moldar o pote, o podengo, o
pêlo, o puzzle, a charada e a latada de uvas brancas, francas, pendentes,
indiferentes»
«tomar um chazinho com rapé e sem
espinhas na esplanada da Suíça, no museu, no apogeu, no perigeu e no zénite, na
cozinha com carapinha, na espelunca adunca, no Conselho Superior de
Magistratura doente com o pendura, nas manchetes, nas paletes, na Manchúria, na
Sibéria, no Éden, no Hades aqui e mais além…»
«adoçar o azedo, o Alfredo, o Macedo,
o Figueiredo, o Semedo, o enredo, o arremedo, o penedo e, se for encontrado, o
João Sem Medo… sem esquecer todos os descendentes do Azevedo que vivem em
Toledo…»
«aparar a queda, os arbustos, a barba
e Braga por um canudo enquanto se vêem navios, fragatas, alpergatas e as
marmotas da Carlota»
«cambiar com acinte o contra-peso de
algodão que não engana por um contra-regra que não atina na Celestina»
«contar patranhas às aranhas estranhas
e tirar as manhas ao cacho de bananas»
«aliviar a carga, os bolsos, o
contribuinte pedinte sem levantar o sobrolho, sem pretextos, desculpas
esfarrapadas, lapsos de memória, esquecimentos convenientes ou desvios
inesperados»
«albardar o sabichão asinino jubilado
com jaez apropriado no seu feudo fedorento, pocilga, palheiro, palacete ou
mausoléu dourado»
«não polarizar as massas, explanar as
tretas, financiar as sestas, expurgar as seitas, libertar as metáforas,
armazenar a areia na peneira, abespinhar os trastes e os compadres, estrepitar
a pituitária, emalar e zarpar…»
«subsidiar o Pompeu, delapidar o Romeu
e surripiar o camafeu no jubileu»
«fazer pirraça sem embaraço, sem
baraço e sem pião»
«tresloucar o paladar, contagiar a
panela de pressão, contaminar a sopa de peixe, saltear os piparotes, espremer
os picles, marinar a Marina e a Mariana, pôr as barbas de molho, cozer a
pilhéria em banho Maria, vacinar a confraria e, se houver tempo, ir ali à
esquina ver se lá está a epifania»
«proliferar o uso de pimenta nas
línguas do mundo, das serpentes insolentes e dos benzedores de relíquias»
«apanhar o fanfarrão no cabanal
durante a sesta da tarde antes que vá dar uma volta ao bilhar grande ou se
junte novamente aos três da vida airada ou ao bando das patuscadas»
«infectar e eliminar o ditador, o
espremedor, o executor, o estripador e toda a espécie de exterminadores»
«levar a cigarra a cirandar enquanto
não vem o Inverno, se não houver pendência no expediente nem guitarradas na
tasca nem grilos na gasosa»
«espremer a coalhada no cincho,
subornar ou abonar o faminto, entrevistar o Jacinto, convidar o Filinto,
esmifrar o perdulário distinto»
«pedir ao Mário que traga o dicionário
multilingue, traduzir a Divina Comédia, a Divina Tragédia, a Comédia Maligna e
A Suprema Pantomina…»
«fazer colheres de pau e paus para
toda a obra, pesar figos e ameixas, saborear a compota à porta fechada,
atravessar o vinhedo até ao arvoredo onde mora um aedo, voltar à direita ou à
esquerda, seguir em frente, voltar para trás ou ficar lá no segredo dos deuses…
credo, que já é tarde, é tarde, é tarde, muito tarde…»
«Urgente: decretar o fim do degredo,
dos torpedos, do império dos Medos, dos gulosos insaciáveis, dos perniciosos
comedores de povos, terras e futuros, dos robots de carne e osso que dizem
sempre “sim, sim, sim Grande Irmão, Papão, Pavão canibal, mestre e guia dos
rebanhos cegos” …
«desmontar o asnocrata e a asnocracia
com um pé de cabra, eleições livres e um pouco de diplomacia»
«deixar o Camilo ser casmurro à sua
vontade e zumbar no caneco sempre que lhe aprouver na alegre companhia do
Crisóstomo, do Celestino, da Clotilde, da Clementina, do camaleão, do camelo,
da camélia e da camomila… se a Lisete aparecer, atirem-na às urtigas para lhe
tirar a ronha e aprender a não se meter onde não é chamada… e nada de
anti-histamínicos… ela que se pique e que se coce à sua vontade…»
«Vamos lá caçar o meteorito que quer
ser dono do Rossio, pregar-lhe uma rasteira, passar-lhe uma multa e metê-lo na
rua da Betesga… não se esqueçam de pôr um rottweiler à porta … e depressa,
antes que caia o Carmo e a Trindade e acabem, se acabarem, as obras de Santa
Engrácia…»
«Não entrar em nenhuma casa na rua da
Betesga… numa está o meteorito em prisão domiciliária, noutra vive um bandido
disfarçado de Aninhas, as restantes não têm traves nem soalho… quem entra cai
no tapete, na retrete ou no desconhecido…»
«Digam ao Felismino que tem de ir
engomar e mimar a fronha e a fava antes que venha a ervilha e a gaita de
foles…»
«Se a concertina aparecer para jantar,
pode trazer o rancho todo, a Carminda, a Ermelinda, a Olinda, a Genoveva, a
Cremilde e os seus pares… no fim lavam os pratos, as panelas e as pautas …»
«Que é isto? Uma corvina ou uma
corveta? Uma cortina ou uma corneta? Um concurso ou um urso? Um tambor ou um
tamboril? Uma pilha de livros ou uma salamandra filosófica? Um shop-choy
de tofu ou uma choupana-igloo? Um centro
comercial ou o cachimbo de Golias? Uma cachopa ou uma cachupa? Uma
moçoila ou uma papoila? Um mosteiro ou mostarda? Uma abetarda ou uma bombarda?
Uma bateria ou uma batedeira? Um trombone ou um telefone? Um tubarão ou um
tecelão? Um pisca-pisca ou uma isca-isca? Um trambolhão? Um safanão? Uma parva
interrogação…?»
«Ide por montes e vales, semeai os
campos, os rochedos, os areais, os espíritos imaculados, as nuvens que vestem o
cume das montanhas, os ventos que suavizam a viagem das aves, a chuva que faz
renascer a terra, as canções dos que produzem os alimentos, os caminhos que
atravessam o mundo, as mãos e os corações dos que conquistam e defendem a
liberdade… e também os lençóis de escuridão, os enxames de mentiras, o rosnar
das feras e os gritos dos aflitos, os medos dos fracos, dos insignificantes,
dos adormecidos, a indiferença do gelo, a fome dos famintos, a esperança dos
vindouros, a matriz da Humanidade… Em cada lugar, lançai a semente que lhe
cabe, que transforma, que cura, que faz germinar e multiplicar o ideal e o acto
criador… Semeai, sendo a semente, a ideia, a vontade e a obra…»
«se o estafeta se cansar de semear, de
lavrar e colher, basta uma pausa e logo vem um novo alento…»
«trazer sempre no bolso mil toneladas
de sementes de todas as espécies existentes e imagináveis, a nascente de um
rio, a persistência das marés, uma Arca de Noé, a companhia de todos os seres
bons, a verdade cristalina, uma incomensurável paciência, as montanhas que
ainda não nasceram, as vozes e os caminhos do tempo, a coragem, a fragilidade,
dúvidas e certezas, a simplicidade nas suas incontáveis formas… e infinitas
páginas em branco…»
«Está na hora de lamber o dedo e
voltar a página a toda a brida rumo ao vendaval… cuidado, não caias na lama, na
trama ou no lajedo…»
«É sempre divertido lembrar
perifrasticamente um quid pro quo»
«pontuar»
«contornar» ou «contaminar» ou
«bajular» ou «trincar» ou qualquer antónimo de «pulular» com dez sílabas, que
não existe, não persiste nem tem chiste…
6 – Onde NÃO se lê:
«ululante»
6 – É aconselhável ler-se e trautear:
«pé de vento petulante»
«brisa
cantante» ou «alcateia retumbante» ou «alegro e saltitante» ou a pauta de
música de qualquer sinfonia insignificante para tuba, oboé, clarinete e um
elefante…
7 – Onde NÃO se lê:
«é
hora de dormir»
7 – Pode ler-se, com a devida cautela e café
bem forte:
«é
hora de sumir»
«é
urgente estrugir os rabanetes» ou «é relevante acordar» ou «Morfeu perdeu-se na
Terra dos Sonhos ou dos repolhos ou dos bárbaros» ou qualquer acção que não
implique adormecer, esquecer, derreter ou pastorear carneiros…
… Pausa para o chá de romã e olhar as nuvens no céu…
8 –
Onde NÃO se lê:
«Era
de elevada estirpe. Podia ver-se claramente pela maneira como enfrentava o
olhar curioso da multidão anónima, pela maneira como olhava os livros nas montras,
a maneira como se sentava num canto de sombra de uma penthouse-esplanada, pelo silêncio eficaz com que deambulava pela
bolsa, pelos jardins privados, pelas portas giratórias dos hotéis de luxo.»
8 – É
mais exacto e mais económico ler-se:
«Era
uma máscara carnavalesca. Era um vigarista bem-sucedido, um nababo bem nutrido,
uma nódoa sanguínea vampiresca. Podia ver-se pelas garras enluvadas, pelo
discurso aveludado, pelo currículo oculto e pela enormidade dos rendimentos,
isentos, todos isentos.»
9 – Onde NÃO se lê:
«quase
caiu na cilada»
9 – Provavelmente deve ler-se, sem
escorregadelas nem apalpadelas:
«de
vez em quando, o queijo é saboroso»
«de
vez em quando, as ciladas caem em si mesmas, autodissolvem-se ou adquirem uma
percepção extra-sensorial»
10 – Onde NÃO se lê:
«Todos
os dias, o mundo continua a girar. É uma evidência empírica e apodítica. Todos
os dias, o mundo ignora o que contém, por puro desdém. Em bom rigor, o mundo
nem existe, apenas existe o que contém. Contém gente, animais, plantas, rochas,
água… e uma infinidade de paradoxos. Se fosse escritor, escreveria um tratado
sobre a consciência e a impertinência do animal humano. Que mania esta de
culpar o mundo por todas as coisas! O mundo é apenas o que contém!...»
10 – Dada a evidência do que não se lê acima,
não é necessário fazer alterações…
11 – Onde NÃO se lê:
11 – O vento acabou de passar por aqui e
garantiu-me que tudo o que não se lê acima é absolutamente autêntico. É mesmo
muito provável que tenha razão. Como simples estafeta, veloz e invisível,
sinto-me sempre inclinado a acreditar no vento.
12 – Onde NÃO se lê:
«Ninguém entra silenciosamente
Sem dar conta, é interrompido por
Ninguém
No mesmo território, habita uma
infinidade de outras espécies
Estão todos de passagem
12 – É duvidoso que se deva acreditar
em Ninguém ou no seu porta-voz. Mesmo assim, o que não se lê acima pode ficar
tal como está, desde que Ninguém revele a sua verdadeira identidade. Se até
amanhã ao meio-dia não o fizer, sob o texto deve figurar a assinatura “O
Impostor”. Incomoda-me este déjà-vu,
este sósia anónimo que copia o meu trabalho. Na verdade, somos tão diferentes.
Só temos em comum as páginas em branco. Vou fazer uma pausa até esquecer o
incidente…
Esqueceu mais rapidamente do que pensava e continuou o labor, sempre com novas variações … Pode prosseguir porque é livre e (in)significante…
LIBERDADE
Tira o chapéu, pendura o dia findo no bengaleiro
Não quero reis e sábios, ricos e soberbos
(O
verdadeiro estafeta)
Suy / São Ludovino, 25/6/1987 – 3h 15 m manhã, etc., etc., etc.
* Palavras
/ interrogação de Fidelino de Figueiredo que partilho.
** ―
«Ó da barca, ó da barca! Pera onde is?» - interrogação de algumas das almas que
chegam ao cais de embarque no Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente.