domingo, 31 de dezembro de 2023

Contos Semi-Breves - I

 

DESPUBLICAR
 

     Contrarius Pertinax não era ninguém nem queria vir a ser alguém jamais. Pretensão difícil de realizar já que em todos os mundos por onde passara sempre fora alguém, se bem que nunca exactamente quem era. Faltava-lhe aquele quinhão de liberdade que parece estar sempre além de todos os cabos Finisterra.

    Por mero acaso, um dia, enquanto palmilhava a calçada escorregadia dos seus desencantos, viu colado na montra de uma agência de viagens um cartaz deveras tentador. «Entre num mundo onde tudo é possível», dizia o slogan sob a fotografia de uma cidade pacata de que ele nunca ouvira falar. Aproximou-se e começou a ler as letras miudinhas. 

     «Deixe-se surpreender pelos desconcertantes encantos de uma liberdade absoluta! Aqui tudo lhe é permitido! Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje! Entre no Reino do Desconcerto!...»

     Nem acabou de ler o resto. Entrou na agência e pediu uma reserva para o mais breve possível. Espantosamente, havia vagas, havia muitas… podia viajar já no dia seguinte.

     Tamanha excitação nem o deixou dormir. Passou a noite a fumar a neblina, na esperança de poder vislumbrar o seu destino algures para lá dos telhados escuros.

    Partiu cedo, de comboio, em segunda classe. Era preciso poupar para fruir os inesperados prazeres do desconcerto. Quanto custaria desconcertar a paciência (estava farto de ser paciente!) … ou simplesmente dormir num quarto com vista para o jardim?

     A viagem foi mais rápida do que pensara. Afinal o Reino do Desconcerto não ficava do outro lado do mundo. Chegou antes da hora de almoço. Na estação central, a multidão cruzava-se em todas as direcções embora só houvesse um cais e uma linha. Tanta liberdade reduzida a um só caminho!

     Durante toda a viagem não largou a maleta de mão. Colocou-a sobre os joelhos e pelo menos uma das mãos nunca deixou de lhe tocar. Nunca se sabe o que pode acontecer quando se transita de um mundo para outro. Quando olhava a paisagem pela janela, encostava a maleta ao vidro, como se quisesse partilhar com ela o que via. Alguns companheiros de viagem sorriram perante tal apego. Um até segredou ao parceiro: “Podia ser uma criança ou um animal de estimação!”

     Em menos de meia hora já tinha chegado. Uma estranha meia hora que parecia ter a duração de pelo menos doze horas. Pelo caminho vislumbrou centenas de cidades, vilas e aldeias, montanhas, rios, lagos e planícies, como se tivesse de facto dado a volta ao mundo. Quando desceu para o cais notou que o sol declinava sobre os telhados e as nuvens começavam a tornar-se rosadas. Seria o entardecer precoce das regiões do Norte, um Norte qualquer com o seu próprio ritmo temporal? 

     Na rua, relativamente calma, apanhou um táxi para o hotel Best Seller. Em menos de cinco minutos já estava à porta. Tratou das formalidades na recepção e subiu ao quarto. O bagageiro carregou a mala de viagem e ele subiu com a sua inseparável maleta.

     Abriu a janela, olhou a cidade em redor, pequena, aconchegante e pacata. Pensou para consigo mesmo “Este é mesmo o local ideal! Se tudo é permitido aqui, hei-de conseguir!”

     Sentou-se na cama fofa e contemplou carinhosamente o conteúdo da maleta. Foi retirando pequenas porções e colocou-as em pequenos montes.

     Durante anos a fio escrevera milhares de páginas sem nenhum propósito especial, excepto o prazer de pensar e criar escrevendo. Não sabia ao certo o que fazer com tudo aquilo. Sabia apenas que a ideia de que alguém pudesse ler as suas criações lhe desagradava profundamente, como se ler-lhe os pensamentos escritos fosse uma violenta devassa da alma.

     Desde que vira o cartaz anunciando um lugar de total liberdade onde tudo era possível, cresceu em si o desejo de preservar a sua obra, sem correr o risco de se vender a si mesmo nem permitir que alguma subjectividade alheia se infiltrasse nas suas idiossincrasias. Despublicar, sim despublicar era a solução para o seu problema. Num lugar onde tudo era possível haveria certamente alguma editora que em vez de publicar, despublicasse a sua obra.

     Na manhã seguinte, depois de um almoço frugal, saiu para a rua em busca da editora certa. Havia cerca de uma centena naquela pequena cidade. Até à hora de almoço não teve sorte. Uns diziam-lhe que tal procedimento não era exequível, outros que não era lucrativo e houve até um editor que o aconselhou a consultar algum cientista que aplicasse à sua obra o método de Schrödinger. Almoçou pensativo numa esplanada da Baixa, sempre acompanhado pela sua maleta, que sentou delicadamente numa cadeira a seu lado.

     A tarde passou a correr, as editoras fecharam, e nenhum resultado. Não ia desistir. Afinal o que significava a liberdade? Se tudo era possível e permitido naquele lugar, também seria possível despublicar a sua obra.

     No dia seguinte, continuou a demanda. Incansavelmente bateu a muitas portas, tocou muitas campainhas, tropeçou em muitas escadas e limpou muitas gotas de suor. Nenhum “não” o demoveu do seu propósito. A busca foi de novo infrutífera.

     À noite, já deitado e com a luz apagada, acariciou a maleta e fez-lhe uma promessa: “Amanhã conseguiremos! Amanhã seremos ambos livres!”

     No terceiro dia, levantou-se ainda mais cedo e partiu sem sequer tomar o pequeno almoço. Faltavam só cinco editoras. Na primeira, um cão de guarda arreganhou-lhe os dentes e ele quase desistiu de entrar. O segurança chegou a tempo de impedir consequências mais graves. O cão só lhe rasgou a bainha das calças e em seguida ignorou-o completamente como se nem estivesse ali. O risco não valeu a pena. O editor disse-lhe que só publicava obras sobre canídeos e perguntou-lhe se tinha alguma obra sobre o assunto. Exclusivamente sobre o assunto não, mas havia vários tipos de canídeos na sua obra.

     Mostrou-lhe um conto sobre um cão que fora criado por lobos na floresta. Ao contrário de outras histórias, nesta o cão não se transformava em lobo; eram os lobos que se transformavam em cães. Estes novos cães encontraram um dia perdida na floresta uma criança humana. A criança não se transformou em lobo; foram os novos cães-lobos que se transformaram em crianças. Certo dia, as novas crianças-lobo encontraram a aldeia de onde viera o primeiro cão. Os cães não os receberam bem, mas os habitantes humanos receberam-nos muito pior. Pegaram em pedras e varapaus e expulsaram-nos da aldeia. De volta à floresta, as crianças-lobos fundaram a sua própria aldeia, recebiam os forasteiros de braços abertos, desde que viessem em paz e se adaptassem, mas nunca mais se transformaram neles.

     O editor gostou deveras da história e queria publicá-la, mas Contrarius Pertinax recusou. O que ele queria era despublicá-la, conjuntamente com todos os outros escritos. O editor abanou a cabeça, voltou-lhe as costas e desejou-lhe boa sorte.

     Na segunda editora, teve de esperar duas horas na fila. Como não tinha tomado o pequeno almoço nem tinha almoçado, estava a morrer de fome. Tirou do bolso uma magra sanduíche e devorou-a. Um rapaz simpático que estava na fila ofereceu-lhe uma laranja, que comeu prazenteiramente, e uma velha senhora, que podia muito bem ser Agatha Christie sob anonimato, ofereceu-lhe dois biscoitos caseiros feitos por ela própria. Agradeceu e guardou-os no bolso. Algo lhe fez lembrar uma história em que havia biscoitos envenenados. E como nunca se sabe onde termina a ficção e começa a realidade, mais valia prevenir do que remediar.

     Esta sensação incomodou-o e fez decrescer a sua fé na possibilidade de alcançar o seu fim, tão distinto do de todos os outros candidatos a autores. Ele só queria ser um não-autor na sua plenitude, capaz de escrever tudo e não publicar nada. No entanto, uma pequena chama de esperança bruxuleava ainda no seu espírito. Se, até agora, nenhum editor o tinha escorraçado ou chamado louco, isso significava que era possível, mesmo que faltassem apenas quatro editoras…

      As duas horas foram passando penosa e surpreendentemente. Viu sair do gabinete do editor o rapaz da laranja, ainda mais sorridente do que antes. Viu uns gémeos saírem acabrunhados e góticos com umas olheiras que não lhes vira antes. Uma senhora com um maço de receitas culinárias amarrotadas debaixo do braço, exalando um acentuado odor a alho frito; um filósofo que levava pela coleira 20 quilos de papel amarelado do novo Leviatã; um miúdo, que não teria mais de oito anos, carregando um planeta de cartão; um visionário bastante míope pintalgado de tinta colorida carregando uma moldura agora vazia; um limpa-chaminés muito limpinho esvoaçando sobre as cabeças agarrado a um guarda-chuva; rostos déjà vu muito satisfeitos consigo mesmos; um cientista com um cérebro dentro de uma campânula de vidro; um tubo de ensaio alto que expelia um fumo esverdeado, encoberto por uma capa de fórmulas químicas; e até a face escura da Lua estava suspensa num recanto junto ao tecto… seres que não se lembrava de ter visto na fila de espera. Mas se uma galeria tão inusitada tinha o seu lugar ali, isso devia augurar algo de bom…

     Chegada a sua vez, entrou determinado e confiante, sentimentos que se desvaneceram bastante quando viu sentado atrás da secretária um indivíduo com cabeça de livro. Apresentou-se como Obnoxius Rebelus, o editor-chefe, e saudou Contrarius com um virar de páginas suave. Apresentado o caso e a obra, Obnoxius gargalhou com um saltar de páginas e, por fim, sorriu mostrando uma capa branca de rosto humano que mudava de expressão a cada cinco segundos. E a boca da capa ia dizendo: “É com grande pesar que sorrio perante a desgraça alheia. É com imenso prazer que lhe comunico que o seu projecto não pode ser aprovado nem desaprovado. Deste momento guardarei a excelente ideia de despublicar, que tentarei implementar gradualmente num futuro próximo. No presente, a despublicação total não é possível.” “Só faltava esta”, pensou Contrarius, “um editor plagiário!”

     Saiu irritado batendo a porta com toda a força, fúria que não produziu qualquer ruído. Voltou-se e pontapeou a porta, mas também não ouviu qualquer ruído. O corredor de espera estava agora vazio. No ar esvoaçavam traças fluorescentes que soltavam uns risinhos agudos.

     De volta à rua, reconfortou-se com uns raios de sol amigáveis e prosseguiu em direcção à antepenúltima editora. Ficava nos subúrbios junto a um velho parque. A ramagem das árvores cobria por completo a tabuleta que encimava a porta: Última Oportunidade Editores, SA. Contrarius não viu a tabuleta quando entrou, apenas quando saiu. 

     Em menos de cinco minutos estava a ser atendido. Do porteiro ao editor, passando pela recepcionista, a primeira frase que ouviu, mesmo antes de pronunciar qualquer palavra, foi “Com certeza, com certeza, totalmente ao seu dispor!”  

      O editor reparou de imediato na maleta e pediu a Contrarius que a abrisse para examinar o conteúdo. Percorreu as folhas com os dedos e os olhos, cheirou o papel, leu algumas palavras em voz alta, arrumou as folhas em pequenos maços sobre a secretária construindo um pirâmide e, finalmente, perguntou:

     ― O que pretende fazer com tudo isto?

     ― Eu quero apenas despublicar a minha obra.

     ― Ah, só isso! Então, o trabalho é simples! Amanhã à tarde a despublicação estará pronta.

     Quando saiu, a recepcionista e o porteiro despediram-se dizendo: “Com certeza! Tem a certeza?” Não percebeu nem quis reflectir sobre o assunto. A boa disposição não deixava espaço para preocupações. Tinha conseguido, finalmente tinha conseguido. A estadia terminava no dia seguinte ao fim do dia. Ainda tinha tempo de ir à editora buscar a sua despublicação antes de apanhar o comboio de volta a casa.

     Nessa noite, quando se deitou sentiu um sobressalto. Onde estava a maleta? Acendeu a luz. Ah, estava ali, no lugar do costume, a seu lado, serenamente adormecida. Apagou a luz. Na penumbra do quarto viu esvoaçar folhas semi-iluminadas, que iam aparecendo e desaparecendo, até ficar apenas a escuridão rasgada por um fio de luz que vinha dos candeeiros de rua no exterior.

     Uma pergunta que nunca fizera antes assaltou-lhe a mente: que forma tem uma obra despublicada, que tamanho, que peso e cores? Será que ainda cabia na maleta? Não conseguiu responder. Devia ter perguntado ao editor: como se faz, qual é o método, qual é o resultado final? A euforia estava contaminada pela dúvida. Ainda assim, o cansaço e a sua racionalidade idiossincrática deixaram-no adormecer.

     Durante a manhã andou pela Baixa a ver as livrarias e os alfarrabistas. Nas montras havia uma imensa variedade de livros e caixinhas de madeira que tinham inscritos os nomes de autores e títulos de livros. Depois do almoço, dirigiu-se para o parque junto à editora. Vagueou pelas alamedas desenhadas por árvores frondosas e admirou a geometria original dos canteiros. Entre as flores havia caixinhas de madeira semelhantes às que vira nas montras das livrarias e alfarrabistas. Seria uma tradição daquele lugar! Folhas entre folhas, obras humanas entre as obras da Natureza? Parecia uma bela ideia.

     Por volta das cinco da tarde dirigiu-se à editora. O porteiro e a recepcionista saudaram-no com ecos das palavras iniciais: “Tem a certeza? Com certeza!” A recepcionista disse-lhe que o editor-chefe não estava presente, mas a sua despublicação estava ali, prontíssima! Retirou de uma prateleira atrás do balcão uma bela caixinha de madeira. Na tampa tinha inscrito o nome Contrarius Pertinax e por baixo “Obra Completa, edição única, despublicada no presente ano e para todo o sempre”. Sentiu um calafrio. Parecia um epitáfio. Posso abrir, claro que pode e pode levar consigo para onde quiser, ah, sim, e não tem de pagar mais nada, consideramos que aquela bela pirâmide de folhas que aqui deixou saldou completamente a conta! Tenha uma óptima tarde e seja muito feliz com a sua despublicação! Até sempre! 

     Abriu a caixinha de madeira que tinha um cheiro parecido ao da lareira. Lá dentro jaziam duas pazadas de cinza. Não eram as cinzas de uma árvore outrora viva e frondosa, eram as cinzas de uma obra anónima, finalmente despublicada, de forma absolutamente bibliocida!

     Deve ter perdido a consciência durante uns segundos em que gritou e chorou copiosamente nalgum recanto da mente. Apeteceu-lhe esmurrar a recepcionista e fazer o editor em pedaços, mas recuperou os sentidos e conteve-se. Percebeu finalmente o sentido da frase malévola que ouvira repetida. Olhou a recepcionista nos olhos e disse-lhe com um sorriso doridamente frio: “Com certeza, não tenho certeza alguma… por isso mesmo é que é preferível despublicar em vez de publicar… tenho, no entanto, a certeza de que a dívida ainda não foi totalmente saldada…”

     Saiu, dirigiu-se a uma estação de serviço e comprou 3 litros de gasolina. Voltou à editora, regou a entrada com o combustível e pegou-lhe fogo. Pouco depois, todos os funcionários saíam a correr pela saída de emergência. O editor esbracejava no telhado. Contrarius Pertinax ainda viu os bombeiros chegarem, erguerem a escada e salvarem o editor. Depois regressou ao hotel, pegou na mala e na maleta, apanhou o comboio e regressou a casa. Por razões desconhecidas, não recebeu nenhuma notificação da polícia  nem nenhum pedido de indemnização do editor.

     Enquanto rodava a chave na fechadura, interrogou-se sobre o que teriam feito as duas editoras onde nunca chegou a entrar. Talvez alguma se dedicasse verdadeiramente a despublicar, sem destruir a obra original. No dia seguinte despediu-se do seu trabalho de tantas décadas e abriu a sua própria editora, destinada exclusivamente a despublicar todo o tipo de obras. Nas pausas continuava a escrever a sua própria obra, que ia despublicando gradualmente dos mais diversos modos. A arte da despublicação implica toda uma filosofia e múltiplas metodologias.

     Por cima da porta mandou colocar uma tabuleta: CONTRARIUS EDITOR.

Não se espantou quando viu entrar no seu gabinete muitos daqueles com quem se tinha cruzado nos corredores das editoras do Reino do Desconcerto. Para cada um arranjou uma solução, uma forma personalizada de despublicar. Quando um certo dia a velha senhora que parecia a Agatha Christie lhe entrou pela porta, colocou-lhe à frente um pires com dois biscoitos. Ela comeu-os. Nada aconteceu. A prova de carácter foi vencida. A infindável tarefa de despublicar prossegue.

 
São Ludovino, 3/10/2013
(Tive a ideia original para este conto pelo menos 10 anos antes da data em que foi escrito. Era apenas uma das muitas ideias que ficam adormecidas em folhas soltas e blocos de notas… até que haja ou não tempo e disponibilidade para transformar a ideia numa narrativa ou num poema.)

Carta – Teatro da Matraca, photography by São Ludovino, 2018.

Stage - Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino, 2016.

Stage - Blackbird by David Harrower, photography by São Ludovino, 2016.


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