Contrarius Pertinax não era
ninguém nem queria vir a ser alguém jamais. Pretensão difícil de realizar já
que em todos os mundos por onde passara sempre fora alguém, se bem que nunca
exactamente quem era. Faltava-lhe aquele quinhão de liberdade que parece estar
sempre além de todos os cabos Finisterra.
Por mero acaso, um dia, enquanto palmilhava a calçada escorregadia dos
seus desencantos, viu colado na montra de uma agência de viagens um cartaz
deveras tentador. «Entre num mundo onde tudo é possível», dizia o slogan sob a fotografia de uma cidade
pacata de que ele nunca ouvira falar. Aproximou-se e começou a ler as letras
miudinhas.
«Deixe-se surpreender pelos desconcertantes encantos de uma liberdade
absoluta! Aqui tudo lhe é permitido! Não deixe para amanhã o que
pode fazer hoje! Entre no Reino do Desconcerto!...»
Nem acabou de ler o resto. Entrou na agência e pediu uma reserva para o
mais breve possível. Espantosamente, havia vagas, havia muitas… podia viajar já
no dia seguinte.
Tamanha excitação nem o deixou dormir. Passou a noite a fumar a neblina,
na esperança de poder vislumbrar o seu destino algures para lá dos telhados
escuros.
Partiu cedo, de comboio, em segunda classe. Era preciso poupar para
fruir os inesperados prazeres do desconcerto. Quanto custaria desconcertar a
paciência (estava farto de ser paciente!) … ou simplesmente dormir num quarto
com vista para o jardim?
A viagem foi mais rápida do que pensara. Afinal o Reino do Desconcerto não ficava do outro lado do mundo. Chegou
antes da hora de almoço. Na estação central, a multidão cruzava-se em todas as
direcções embora só houvesse um cais e uma linha. Tanta liberdade reduzida a um
só caminho!
Durante toda a viagem não largou a maleta de mão. Colocou-a sobre os
joelhos e pelo menos uma das mãos nunca deixou de lhe tocar. Nunca se sabe o
que pode acontecer quando se transita de um mundo para outro. Quando olhava a
paisagem pela janela, encostava a maleta ao vidro, como se quisesse partilhar
com ela o que via. Alguns companheiros de viagem sorriram perante tal apego. Um
até segredou ao parceiro: “Podia ser uma criança ou um animal de estimação!”
Em menos de meia hora já tinha chegado. Uma estranha meia hora que
parecia ter a duração de pelo menos doze horas. Pelo caminho vislumbrou
centenas de cidades, vilas e aldeias, montanhas, rios, lagos e planícies, como
se tivesse de facto dado a volta ao mundo. Quando desceu para o cais notou que
o sol declinava sobre os telhados e as nuvens começavam a tornar-se rosadas.
Seria o entardecer precoce das regiões do Norte, um Norte qualquer com o seu
próprio ritmo temporal?
Na rua, relativamente calma, apanhou um táxi para o hotel Best Seller.
Em menos de cinco minutos já estava à porta. Tratou das formalidades na
recepção e subiu ao quarto. O bagageiro carregou a mala de viagem e ele subiu
com a sua inseparável maleta.
Abriu a janela, olhou a cidade em redor, pequena, aconchegante e pacata.
Pensou para consigo mesmo “Este é mesmo o local ideal! Se tudo é permitido
aqui, hei-de conseguir!”
Sentou-se na cama fofa e contemplou carinhosamente o conteúdo da maleta.
Foi retirando pequenas porções e colocou-as em pequenos montes.
Durante anos a fio escrevera milhares de páginas sem nenhum propósito
especial, excepto o prazer de pensar e criar escrevendo. Não sabia ao certo o
que fazer com tudo aquilo. Sabia apenas que a ideia de que alguém pudesse ler
as suas criações lhe desagradava profundamente, como se ler-lhe os pensamentos
escritos fosse uma violenta devassa da alma.
Desde que vira o cartaz anunciando um lugar de total liberdade onde tudo
era possível, cresceu em si o desejo de preservar a sua obra, sem correr o
risco de se vender a si mesmo nem permitir que alguma subjectividade alheia se
infiltrasse nas suas idiossincrasias. Despublicar, sim despublicar
era a solução para o seu problema. Num lugar onde tudo era possível haveria
certamente alguma editora que em vez de publicar, despublicasse a sua
obra.
Na manhã seguinte, depois de um almoço frugal, saiu para a rua em busca
da editora certa. Havia cerca de uma centena naquela pequena cidade. Até à hora
de almoço não teve sorte. Uns diziam-lhe que tal procedimento não era
exequível, outros que não era lucrativo e houve até um editor que o aconselhou
a consultar algum cientista que aplicasse à sua obra o método de Schrödinger.
Almoçou pensativo numa esplanada da Baixa, sempre acompanhado pela sua maleta,
que sentou delicadamente numa cadeira a seu lado.
A tarde passou a correr, as editoras fecharam, e nenhum resultado. Não
ia desistir. Afinal o que significava a liberdade? Se tudo era possível e
permitido naquele lugar, também seria possível despublicar a sua obra.
No dia seguinte, continuou a demanda. Incansavelmente bateu a muitas
portas, tocou muitas campainhas, tropeçou em muitas escadas e limpou muitas
gotas de suor. Nenhum “não” o demoveu do seu propósito. A busca foi de novo
infrutífera.
À noite, já deitado e com a luz apagada, acariciou a maleta e fez-lhe
uma promessa: “Amanhã conseguiremos! Amanhã seremos ambos livres!”
No terceiro dia, levantou-se ainda mais cedo e partiu sem sequer tomar o
pequeno almoço. Faltavam só cinco editoras. Na primeira, um cão de guarda
arreganhou-lhe os dentes e ele quase desistiu de entrar. O segurança chegou a
tempo de impedir consequências mais graves. O cão só lhe rasgou a bainha das
calças e em seguida ignorou-o completamente como se nem estivesse ali. O risco
não valeu a pena. O editor disse-lhe que só publicava obras sobre canídeos e
perguntou-lhe se tinha alguma obra sobre o assunto. Exclusivamente sobre o
assunto não, mas havia vários tipos de canídeos na sua obra.
Mostrou-lhe um conto sobre um cão que fora criado por lobos na floresta.
Ao contrário de outras histórias, nesta o cão não se transformava em lobo; eram
os lobos que se transformavam em cães. Estes novos cães encontraram um dia
perdida na floresta uma criança humana. A criança não se transformou em lobo;
foram os novos cães-lobos que se transformaram em crianças. Certo dia, as novas
crianças-lobo encontraram a aldeia de onde viera o primeiro cão. Os cães não os
receberam bem, mas os habitantes humanos receberam-nos muito pior. Pegaram em
pedras e varapaus e expulsaram-nos da aldeia. De volta à floresta, as
crianças-lobos fundaram a sua própria aldeia, recebiam os forasteiros de braços
abertos, desde que viessem em paz e se adaptassem, mas nunca mais se
transformaram neles.
O editor gostou deveras da história e queria publicá-la, mas Contrarius
Pertinax recusou. O que ele queria era despublicá-la, conjuntamente
com todos os outros escritos. O editor abanou a cabeça, voltou-lhe as costas e
desejou-lhe boa sorte.
Na segunda editora, teve de esperar duas horas na fila. Como não tinha
tomado o pequeno almoço nem tinha almoçado, estava a morrer de fome. Tirou do
bolso uma magra sanduíche e devorou-a. Um rapaz simpático que estava na fila
ofereceu-lhe uma laranja, que comeu prazenteiramente, e uma velha senhora, que
podia muito bem ser Agatha Christie sob anonimato, ofereceu-lhe dois biscoitos
caseiros feitos por ela própria. Agradeceu e guardou-os no bolso. Algo lhe fez
lembrar uma história em que havia biscoitos envenenados. E como nunca se sabe
onde termina a ficção e começa a realidade, mais valia prevenir do que
remediar.
Esta sensação incomodou-o e fez decrescer a sua fé na possibilidade de
alcançar o seu fim, tão distinto do de todos os outros candidatos a autores.
Ele só queria ser um não-autor na sua plenitude, capaz de escrever tudo e não
publicar nada. No entanto, uma pequena chama de esperança bruxuleava ainda no
seu espírito. Se, até agora, nenhum editor o tinha escorraçado ou chamado
louco, isso significava que era possível, mesmo que faltassem apenas quatro
editoras…
As duas horas foram passando penosa e surpreendentemente. Viu sair do
gabinete do editor o rapaz da laranja, ainda mais sorridente do que antes. Viu
uns gémeos saírem acabrunhados e góticos com umas olheiras que não lhes vira
antes. Uma senhora com um maço de receitas culinárias amarrotadas debaixo do
braço, exalando um acentuado odor a alho frito; um filósofo que levava pela
coleira 20 quilos de papel amarelado do novo Leviatã; um miúdo, que não teria
mais de oito anos, carregando um planeta de cartão; um visionário bastante
míope pintalgado de tinta colorida carregando uma moldura agora vazia; um
limpa-chaminés muito limpinho esvoaçando sobre as cabeças agarrado a um
guarda-chuva; rostos déjà vu muito satisfeitos consigo mesmos; um
cientista com um cérebro dentro de uma campânula de vidro; um tubo de ensaio
alto que expelia um fumo esverdeado, encoberto por uma capa de fórmulas
químicas; e até a face escura da Lua estava suspensa num recanto junto ao
tecto… seres que não se lembrava de ter visto na fila de espera. Mas se uma
galeria tão inusitada tinha o seu lugar ali, isso devia augurar algo de bom…
Chegada a sua vez, entrou determinado e confiante, sentimentos que se
desvaneceram bastante quando viu sentado atrás da secretária um indivíduo com
cabeça de livro. Apresentou-se como Obnoxius Rebelus, o editor-chefe, e
saudou Contrarius com um virar de páginas suave. Apresentado o caso e a
obra, Obnoxius gargalhou com um saltar de páginas e, por fim, sorriu
mostrando uma capa branca de rosto humano que mudava de expressão a cada cinco
segundos. E a boca da capa ia dizendo: “É com grande pesar que sorrio perante a
desgraça alheia. É com imenso prazer que lhe comunico que o seu projecto não
pode ser aprovado nem desaprovado. Deste momento guardarei a excelente ideia de
despublicar, que tentarei implementar gradualmente num futuro próximo.
No presente, a despublicação total não é possível.” “Só faltava esta”,
pensou Contrarius, “um editor plagiário!”
Saiu irritado batendo a porta com toda a força, fúria que não produziu
qualquer ruído. Voltou-se e pontapeou a porta, mas também não ouviu qualquer
ruído. O corredor de espera estava agora vazio. No ar esvoaçavam traças
fluorescentes que soltavam uns risinhos agudos.
De volta à rua, reconfortou-se com uns raios de sol amigáveis e
prosseguiu em direcção à antepenúltima editora. Ficava nos subúrbios junto a um
velho parque. A ramagem das árvores cobria por completo a tabuleta que encimava
a porta: Última Oportunidade Editores, SA. Contrarius não viu a tabuleta
quando entrou, apenas quando saiu.
Em menos de cinco minutos estava a ser atendido. Do porteiro ao editor,
passando pela recepcionista, a primeira frase que ouviu, mesmo antes de
pronunciar qualquer palavra, foi “Com certeza, com certeza, totalmente ao
seu dispor!”
O editor reparou de imediato na maleta e pediu a Contrarius que a
abrisse para examinar o conteúdo. Percorreu as folhas com os dedos e os olhos,
cheirou o papel, leu algumas palavras em voz alta, arrumou as folhas em
pequenos maços sobre a secretária construindo um pirâmide e, finalmente,
perguntou:
― O que pretende fazer com tudo isto?
― Eu quero apenas despublicar a minha obra.
― Ah, só isso! Então, o trabalho é simples! Amanhã à tarde a despublicação
estará pronta.
Quando saiu, a recepcionista e o porteiro despediram-se dizendo: “Com
certeza! Tem a certeza?” Não percebeu nem quis reflectir sobre o assunto. A boa
disposição não deixava espaço para preocupações. Tinha conseguido, finalmente
tinha conseguido. A estadia terminava no dia seguinte ao fim do dia. Ainda
tinha tempo de ir à editora buscar a sua despublicação antes de apanhar
o comboio de volta a casa.
Nessa noite, quando se deitou sentiu um sobressalto. Onde estava a
maleta? Acendeu a luz. Ah, estava ali, no lugar do costume, a seu lado,
serenamente adormecida. Apagou a luz. Na penumbra do quarto viu esvoaçar folhas
semi-iluminadas, que iam aparecendo e desaparecendo, até ficar apenas a
escuridão rasgada por um fio de luz que vinha dos candeeiros de rua no
exterior.
Uma pergunta que nunca fizera antes assaltou-lhe a mente: que forma tem
uma obra despublicada, que tamanho, que peso e cores? Será que ainda
cabia na maleta? Não conseguiu responder. Devia ter perguntado ao editor: como
se faz, qual é o método, qual é o resultado final? A euforia estava contaminada
pela dúvida. Ainda assim, o cansaço e a sua racionalidade idiossincrática
deixaram-no adormecer.
Durante a manhã andou pela Baixa a ver as livrarias e os alfarrabistas.
Nas montras havia uma imensa variedade de livros e caixinhas de madeira que
tinham inscritos os nomes de autores e títulos de livros. Depois do almoço,
dirigiu-se para o parque junto à editora. Vagueou pelas alamedas desenhadas por
árvores frondosas e admirou a geometria original dos canteiros. Entre as flores
havia caixinhas de madeira semelhantes às que vira nas montras das livrarias e
alfarrabistas. Seria uma tradição daquele lugar! Folhas entre folhas, obras
humanas entre as obras da Natureza? Parecia uma bela ideia.
Por volta das cinco da tarde dirigiu-se à editora. O porteiro e a
recepcionista saudaram-no com ecos das palavras iniciais: “Tem a certeza? Com
certeza!” A recepcionista disse-lhe que o editor-chefe não estava presente, mas
a sua despublicação estava ali, prontíssima! Retirou de uma prateleira
atrás do balcão uma bela caixinha de madeira. Na tampa tinha inscrito o nome Contrarius
Pertinax e por baixo “Obra Completa, edição única, despublicada no
presente ano e para todo o sempre”. Sentiu um calafrio. Parecia um epitáfio.
Posso abrir, claro que pode e pode levar consigo para onde quiser, ah, sim, e
não tem de pagar mais nada, consideramos que aquela bela pirâmide de folhas que
aqui deixou saldou completamente a conta! Tenha uma óptima tarde e seja muito
feliz com a sua despublicação! Até sempre!
Abriu a caixinha de madeira que tinha um cheiro parecido ao da lareira.
Lá dentro jaziam duas pazadas de cinza. Não eram as cinzas de uma árvore
outrora viva e frondosa, eram as cinzas de uma obra anónima, finalmente despublicada,
de forma absolutamente bibliocida!
Deve ter perdido a consciência durante uns segundos em que gritou e
chorou copiosamente nalgum recanto da mente. Apeteceu-lhe esmurrar a
recepcionista e fazer o editor em pedaços, mas recuperou os sentidos e conteve-se.
Percebeu finalmente o sentido da frase malévola que ouvira repetida. Olhou a
recepcionista nos olhos e disse-lhe com um sorriso doridamente frio: “Com
certeza, não tenho certeza alguma… por isso mesmo é que é preferível despublicar
em vez de publicar… tenho, no entanto, a certeza de que a dívida ainda não foi
totalmente saldada…”
Saiu, dirigiu-se a uma estação de serviço e comprou 3 litros de
gasolina. Voltou à editora, regou a entrada com o combustível e pegou-lhe fogo.
Pouco depois, todos os funcionários saíam a correr pela saída de emergência. O
editor esbracejava no telhado. Contrarius Pertinax ainda viu os
bombeiros chegarem, erguerem a escada e salvarem o editor. Depois regressou ao
hotel, pegou na mala e na maleta, apanhou o comboio e regressou a casa. Por
razões desconhecidas, não recebeu nenhuma notificação da polícia nem nenhum pedido de indemnização do editor.
Enquanto rodava a chave na fechadura, interrogou-se sobre o que teriam
feito as duas editoras onde nunca chegou a entrar. Talvez alguma se dedicasse
verdadeiramente a despublicar, sem destruir a obra original. No dia
seguinte despediu-se do seu trabalho de tantas décadas e abriu a sua própria
editora, destinada exclusivamente a despublicar todo o tipo de obras.
Nas pausas continuava a escrever a sua própria obra, que ia despublicando
gradualmente dos mais diversos modos. A arte da despublicação implica
toda uma filosofia e múltiplas metodologias.
Por cima da porta mandou colocar uma tabuleta: CONTRARIUS EDITOR.
Não se espantou quando viu entrar no
seu gabinete muitos daqueles com quem se tinha cruzado nos corredores das
editoras do Reino do Desconcerto. Para cada um arranjou uma solução, uma forma
personalizada de despublicar. Quando um certo dia a velha senhora que
parecia a Agatha Christie lhe entrou pela porta, colocou-lhe à frente um pires
com dois biscoitos. Ela comeu-os. Nada aconteceu. A prova de carácter foi
vencida. A infindável tarefa de despublicar prossegue.
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