domingo, 31 de dezembro de 2023

Contos Breves - V

III

O GATO QUE NÃO ERA… AINDA
 

     Lineu amava todos os seres vivos e não vivos. De um modo ou outro, todos estavam vivos, tinham estado ou haveriam de estar um dia. Amava sobretudo as plantas. Acreditava que se conseguisse conhecer todas as plantas, conheceria o Mundo inteiro e a longa história de um universo onde não se vislumbram plantas. Mas isso era apenas um obstáculo humano que se prendia com o enorme abismo entre a dimensão do universo e a simples visão sensorial. Por isso ele teimava em ver sempre mais além.

     Um dia olhou tão longe que, sem querer, deu um salto de um século e deu por si frente a frente com Darwin sob uma daquelas figueiras esplendorosas que gostam de ir vendo os milénios passar sem envelhecer. Limitam-se a estender e a engrossar mais as raízes e o tronco até parecerem casas ancestrais onde a totalidade da Humanidade poderia morar, se conseguisse morar na mesma casa.

     Darwin reconheceu de imediato Lineu. Mas Lineu ficou a pensar quem seria aquele sujeito que viria um século depois dele. Lineu lembrou-se de Newton, seu contemporâneo, que provavelmente também andaria por ali. Como por telepatia, Darwin também se lembrou de Newton. Darwin lembrou-se dos gigantes, mas também de anões. Lineu lembrou-se das maçãs e do acaso.

     Rapidamente, entabularam conversa e discutiam o melhor modo de fundir gigantes, acaso e maçãs. Segundo Lineu, dessa mistura extraordinária resultaria a matriz da própria vida, uma espécie de paradigma perdido reencontrado. Segundo Darwin, dessa fusão sobreviveria o mais forte, o mais apto, uma espécie de gigante que devoraria a História e acabaria por ser, um dia, o único a rodopiar à volta do sol, quando todos os planetas fossem já apenas poeira e o sol um ancião cansado de ser o centro da vida. E viria até o dia em que o gigante partiria por aí, caminhando por entre as galáxias com os seus passos incomensuráveis.

     Lineu achava que Darwin era um exagerado. Preferia caminhar rente ao chão ou voar com as aves que se contentam com tocar as nuvens de vez em quando. Procurava afinidades em vez de procurar diferenças, qualidades em vez de fraquezas, o elo da vida que tudo une em vez do sinal da morte inscrito em toda a matéria viva.

     Por um caminho que atravessava o campo junto à figueira iam passando caminhantes, provavelmente um século mais velhos do que Darwin e dois séculos mais velhos do que Lineu, pelo menos a avaliar pela indumentária e pelos relógios que traziam no pulso ou no bolso. Olhavam e comentavam com estranheza: “O que fazem aqueles felinos deitados sobre os ramos daquela figueira? Serão os animais de estimação daqueles estranhos interlocutores? Ambos parecem perfeitamente pacíficos. Falo dos felinos, evidentemente…”

     Lineu e Darwin estavam demasiado embrenhados na conversa para darem pela presença dos transeuntes ou dos felinos sobre as suas cabeças. Mas, entretanto, com uma espantosa sincronia, caíram dois figos da figueira; um sobre a cabeça de Lineu e outro sobre a cabeça de Darwin. Caíram é uma forma de dizer, porque na verdade foram lançados pelos felinos de modo a atingirem as cabeças dos dois sábios.

     Ambos olharam repentinamente para cima. Darwin deu um pequeno salto, Lineu abriu a boca de espanto para exclamar logo em seguida: “Ora, cá está, o mais fraco e o mais forte coexistindo em perfeita harmonia!”

     Darwin contestou de imediato, falou de domesticação, de viciação dos dados, do factor humano que distorce o sábio curso da Natureza, uma fraude contra a selecção das espécies. Lineu observou o sorriso no rosto de ambos os felinos e sugeriu que provavelmente a natureza era mais sábia do que todos os sábios. E qual era afinal o mais forte e o mais fraco de entre aqueles dois?! Pareciam igualmente confiantes e até sábios. Se sabiam colher figos de uma figueira e atirá-los às suas cabeças, provavelmente sabiam muito mais. Eles, Lineu e Darwin, é que estavam em nítida desvantagem, não por serem mais fracos ou mais fortes, mas por presumirem que sabem mais do que a mais ínfima ervinha ou o mais colossal carnívoro. O que descobriram sobre a mais pequena erva ou o maior carnívoro já a ervinha e o carnívoro o sabiam desde sempre, eles é que não.

     Darwin sentiu um enorme desalento. Sugeriu que era tudo uma ilusão e que mais tarde ou mais cedo o grande felino devoraria o pequeno felino ou qualquer outro animal de outra espécie. Era assim, tinha de ser assim, era a sua natureza e ninguém podia mudar a natureza.

     Lineu admitiu que a Natureza era a coisa mais difícil de modificar e que modificá-la nunca traria nada de bom. Disse que até compreendia toda a argumentação de Darwin, mas que, mesmo assim, as plantas lhe tinham ensinado muito sobre todos os seres e sobre a Natureza. Ensinaram-lhe que a Natureza muda de facto e vence sempre, mas não é necessariamente o mais apto e forte que vence, é o mais determinado e o que ama mais a vida, sem dar nas vistas, mesmo que tenha o tamanho colossal daquela figueira.

     O gato e o tigre, que estavam confortavelmente instalados sobre os ramos, lado a lado, como dois bons companheiros, anuíram com acenos de cabeça. Por alguma razão que não era completamente clara, simpatizavam mais com os pontos de vista de Lineu.

     Como Darwin e Lineu nunca mais chegavam a um consenso, o gato decidiu intervir: “Meus caros, há milhares de anos eu não era muito diferente do meu companheiro nos meus hábitos. Era mais pequeno em tamanho, mas tinha os mesmos instintos e hábitos. Hoje sou bem diferente e não posso dizer que tenha sido um sacrifício mudar. Não sei se evoluí, mas sou, de facto, diferente dos meus ancestrais. Aquilo que vedes sobre estes ramos são dois pontos no tempo que confluíram aqui mesmo sobre as vossas cabeças. O meu companheiro é também um gato igual a mim, vós é que ainda não conseguis vê-lo por entre a neblina dos tempos…”

     E o tigre, que também estava desejoso de se manifestar, acrescentou: “Nem mais! O vosso encontro aqui sob esta figueira é como o nosso encontro sobre esta figueira… só que vós ainda estais um pouco abaixo na linha da evolução. Vedes menos porque não acompanhais a Natureza. ‘Tu não és um gato’ direis de mim. Pois vós ainda não sois sábios. Eu estou muito mais próximo de ser um gato do que vós estais de conhecer a Natureza.”

     Lineu não se sentiu ofendido. Sabia bem demais que as ervinhas que agora pisava ainda guardavam milhões de segredos que ele só podia imaginar, mas não discernir com toda a clareza. Talvez nem fosse necessário discernir tudo com toda a clareza. Talvez houvesse um ponto onde o homo sapiens devesse parar e limitar-se a acompanhar os mistérios da Natureza.

     Estendeu a mão a Darwin e propôs-lhe um pacto: “De ora em diante seremos como eles… mesmo que ainda sejamos tigres e mesmo que nunca deixemos de ser tigres, deixemos que a Natureza, e não os homens e a ciência, nos transformem em gatos.”

     E saudaram-se com um rugido e uma arranhadela simbólica, antes de treparem pela figueira e se instalarem junto dos felinos.

    
São Ludovino, 7/12/2018 (Este conto faz parte da série “Lendas, Mitos & Fábulas…”) 

Pausing the paws I, photography by São Ludovino.

Strolling with a friend I, photography by São Ludovino.

Free and Fragile by Suyarts aka Suy/São Ludovino, 2012.

Living in the garden I, photography by São Ludovino.

Cat in the nest III, photography by São Ludovino, 2023

Growing up I, photography by São Ludovino.

Growing up II, photography by São Ludovino.

At the centre of Earth VIII, photography by São Ludovino.


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