III
Lineu amava todos os seres vivos e não vivos. De um modo ou outro, todos
estavam vivos, tinham estado ou haveriam de estar um dia. Amava sobretudo as
plantas. Acreditava que se conseguisse conhecer todas as plantas, conheceria o
Mundo inteiro e a longa história de um universo onde não se vislumbram plantas.
Mas isso era apenas um obstáculo humano que se prendia com o enorme abismo
entre a dimensão do universo e a simples visão sensorial. Por isso ele teimava
em ver sempre mais além.
Um dia olhou tão longe que, sem querer, deu um salto de um século e deu
por si frente a frente com Darwin sob uma daquelas figueiras esplendorosas que
gostam de ir vendo os milénios passar sem envelhecer. Limitam-se a estender e a
engrossar mais as raízes e o tronco até parecerem casas ancestrais onde a
totalidade da Humanidade poderia morar, se conseguisse morar na mesma casa.
Darwin reconheceu de imediato Lineu. Mas Lineu ficou a pensar quem seria
aquele sujeito que viria um século depois dele. Lineu lembrou-se de Newton, seu
contemporâneo, que provavelmente também andaria por ali. Como por telepatia,
Darwin também se lembrou de Newton. Darwin lembrou-se dos gigantes, mas também
de anões. Lineu lembrou-se das maçãs e do acaso.
Rapidamente, entabularam conversa e discutiam o melhor modo de fundir
gigantes, acaso e maçãs. Segundo Lineu, dessa mistura extraordinária resultaria
a matriz da própria vida, uma espécie de paradigma perdido reencontrado.
Segundo Darwin, dessa fusão sobreviveria o mais forte, o mais apto, uma espécie
de gigante que devoraria a História e acabaria por ser, um dia, o único a
rodopiar à volta do sol, quando todos os planetas fossem já apenas poeira e o
sol um ancião cansado de ser o centro da vida. E viria até o dia em que o
gigante partiria por aí, caminhando por entre as galáxias com os seus passos
incomensuráveis.
Lineu achava que Darwin era um exagerado. Preferia caminhar rente ao
chão ou voar com as aves que se contentam com tocar as nuvens de vez em quando.
Procurava afinidades em vez de procurar diferenças, qualidades em vez de
fraquezas, o elo da vida que tudo une em vez do sinal da morte inscrito em toda
a matéria viva.
Por um caminho que atravessava o campo junto à figueira iam passando
caminhantes, provavelmente um século mais velhos do que Darwin e dois séculos
mais velhos do que Lineu, pelo menos a avaliar pela indumentária e pelos
relógios que traziam no pulso ou no bolso. Olhavam e comentavam com estranheza:
“O que fazem aqueles felinos deitados sobre os ramos daquela figueira? Serão os
animais de estimação daqueles estranhos interlocutores? Ambos parecem
perfeitamente pacíficos. Falo dos felinos, evidentemente…”
Lineu e Darwin estavam demasiado embrenhados na conversa para darem pela
presença dos transeuntes ou dos felinos sobre as suas cabeças. Mas, entretanto,
com uma espantosa sincronia, caíram dois figos da figueira; um sobre a cabeça
de Lineu e outro sobre a cabeça de Darwin. Caíram é uma forma de dizer, porque
na verdade foram lançados pelos felinos de modo a atingirem as cabeças dos dois
sábios.
Ambos olharam repentinamente para cima. Darwin deu um pequeno salto,
Lineu abriu a boca de espanto para exclamar logo em seguida: “Ora, cá está, o
mais fraco e o mais forte coexistindo em perfeita harmonia!”
Darwin contestou de imediato, falou de domesticação, de viciação dos
dados, do factor humano que distorce o sábio curso da Natureza, uma fraude
contra a selecção das espécies. Lineu observou o sorriso no rosto de ambos os
felinos e sugeriu que provavelmente a natureza era mais sábia do que todos os
sábios. E qual era afinal o mais forte e o mais fraco de entre aqueles dois?!
Pareciam igualmente confiantes e até sábios. Se sabiam colher figos de uma
figueira e atirá-los às suas cabeças, provavelmente sabiam muito mais. Eles,
Lineu e Darwin, é que estavam em nítida desvantagem, não por serem mais fracos
ou mais fortes, mas por presumirem que sabem mais do que a mais ínfima ervinha
ou o mais colossal carnívoro. O que descobriram sobre a mais pequena erva ou o
maior carnívoro já a ervinha e o carnívoro o sabiam desde sempre, eles é que
não.
Darwin sentiu um enorme desalento. Sugeriu que era tudo uma ilusão e que
mais tarde ou mais cedo o grande felino devoraria o pequeno felino ou qualquer
outro animal de outra espécie. Era assim, tinha de ser assim, era a sua
natureza e ninguém podia mudar a natureza.
Lineu admitiu que a Natureza era a coisa mais difícil de modificar e que
modificá-la nunca traria nada de bom. Disse que até compreendia toda a
argumentação de Darwin, mas que, mesmo assim, as plantas lhe tinham ensinado
muito sobre todos os seres e sobre a Natureza. Ensinaram-lhe que a Natureza
muda de facto e vence sempre, mas não é necessariamente o mais apto e forte que
vence, é o mais determinado e o que ama mais a vida, sem dar nas vistas, mesmo
que tenha o tamanho colossal daquela figueira.
O gato e o tigre, que estavam confortavelmente instalados sobre os
ramos, lado a lado, como dois bons companheiros, anuíram com acenos de cabeça.
Por alguma razão que não era completamente clara, simpatizavam mais com os
pontos de vista de Lineu.
Como Darwin e Lineu nunca mais chegavam a um consenso, o gato decidiu
intervir: “Meus caros, há milhares de anos eu não era muito diferente do meu
companheiro nos meus hábitos. Era mais pequeno em tamanho, mas tinha os mesmos
instintos e hábitos. Hoje sou bem diferente e não posso dizer que tenha sido um
sacrifício mudar. Não sei se evoluí, mas sou, de facto, diferente dos meus
ancestrais. Aquilo que vedes sobre estes ramos são dois pontos no tempo que
confluíram aqui mesmo sobre as vossas cabeças. O meu companheiro é também um
gato igual a mim, vós é que ainda não conseguis vê-lo por entre a neblina dos
tempos…”
E o tigre, que também estava desejoso de se manifestar, acrescentou:
“Nem mais! O vosso encontro aqui sob esta figueira é como o nosso encontro
sobre esta figueira… só que vós ainda estais um pouco abaixo na linha da
evolução. Vedes menos porque não acompanhais a Natureza. ‘Tu não és um gato’
direis de mim. Pois vós ainda não sois sábios. Eu estou muito mais próximo de
ser um gato do que vós estais de conhecer a Natureza.”
Lineu não se sentiu ofendido. Sabia bem demais que as ervinhas que agora
pisava ainda guardavam milhões de segredos que ele só podia imaginar, mas não
discernir com toda a clareza. Talvez nem fosse necessário discernir tudo com
toda a clareza. Talvez houvesse um ponto onde o homo sapiens devesse parar e limitar-se a acompanhar os mistérios
da Natureza.
Estendeu a mão a Darwin e propôs-lhe um pacto: “De ora em diante seremos
como eles… mesmo que ainda sejamos tigres e mesmo que nunca deixemos de ser
tigres, deixemos que a Natureza, e não os homens e a ciência, nos transformem
em gatos.”
E saudaram-se com um rugido e uma arranhadela simbólica, antes de
treparem pela figueira e se instalarem junto dos felinos.

Sem comentários:
Enviar um comentário