II
ONDE COMEÇA O OLHAR
    
Muitos olhos habituaram-se a reconhecer as coisas pela forma que vêem e
deram-lhes nomes coincidentes nos quatro cantos do Mundo. 
    
“Mas se a noite cair repentinamente antes de eu ter tempo para ver o que
está à minha frente ou em meu redor, como posso encontrar-lhes o nome? O que
vejo já não é a forma. É aquilo que pressinto.” ─ Inquiriu a pequena flor.
    
“Mas mesmo quando a noite cai repentinamente, tu ainda podes ver-te, não
podes? Ou pelo menos continuas a saber quem és e não perdes o teu nome…! ─
Comentou a flor mais antiga. 
    
A pequena flor ficou meditativa por alguns instantes e tentou nomear
todas as coisas que via. Rapidamente se deteve. Percebeu que havia muitas
coisas que não conseguia nomear, muitas mais do que aquelas a que conseguia dar
um nome. E, no entanto, elas estavam lá. Estavam vivas, eram reais e eram
belas, tão belas como as que conseguia nomear.
    
A noite caiu, não repentinamente, mas com uma extraordinária suavidade,
como se quisesse mostrar todos os seus recantos e todos os passos da sua
quotidiana viagem. 
    
A pequena flor olhou em volta, mas não conseguia ver com nitidez as
coisas que sabia que estavam lá. Nem mesmo as estrelas, nem mesmo a lua
conseguiam iluminar todas as coisas. Era como se não as quisessem iluminar
completamente, como se iluminá-las fosse uma enorme traição à noite que as
abrigava e tornava mais brilhantes e visíveis. Imbuídas por um imenso respeito,
permaneciam no céu a uma enorme distância das coisas que rodeavam a pequena
flor.
    
Voltou para junto da flor antiga e perguntou-lhe se as coisas que via
durante o dia ainda estavam lá. A flor antiga sorriu docemente e perguntou: “Tu
ainda estás aí, não estás? Então, todos os seres que agora não vês continuam
também aqui. Fecha os olhos até que te possas ver como se fosse o dia mais
claro da criação. Depois volta a abri-los e diz-me o que vês.”
    
A pequena flor fechou os olhos como fazia todas as noites. Mas agora não
adormeceu. Acordou para o centro de si e para as coisas que não via. Viu-se
imensamente pequena flutuando na luz do luar. Sentiu a erva fofa acariciar-lhe
o tenro caule e a brisa afagar-lhe as pétalas. E nunca pensou, nem por um
segundo, que tinha deixado de ser ela. Não via a sua forma, parecia ter muitas
formas, mas continuava a ser a mesma pequena flor. Sentia-se capaz de ver cada
recanto da alma e do universo mesmo sem conseguir ver um único contorno
definido. Só uma espécie de luz persistente continuava bem definida e brilhava
intensamente no centro da corola.
    
Tomada por um imenso entusiasmo não conseguiu manter os olhos fechados
por mais tempo. Abriu os olhos e olhou em volta. A noite continuava lá,
acompanhada pela lua e pelas estrelas. O Mundo continuava mergulhado na
penumbra, mas nada havia que não conseguisse ver. Sem saber como, o nome das
coisas que não via, mesmo das que nunca vira, começaram a brotar-lhe das
pétalas. 
    
A flor antiga sentiu-se feliz e recompensada, acompanhada por todas as
coisas visíveis e invisíveis, pelas que tinham forma e pelas que não tinham
matéria, pelas que tinham nomes, antigos ou novos, e pelas que ainda não tinham
nome. O nome viria num dia ou noite qualquer pois ninguém sabe ao certo onde
começa o olhar e sobretudo onde acaba. Intimamente estava convencida de que só
existe o princípio, mas não o fim. 
São Ludovino, 6/12/2018 (Este conto
faz parte da série “Lendas, Mitos & Fábulas…”)
Young disciples II, photography by São Ludovino.
 
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