domingo, 31 de dezembro de 2023

Contos Breves - IV

 II

ONDE COMEÇA O OLHAR

(lenda dos olhos que são flores)
 

     Muitos olhos habituaram-se a reconhecer as coisas pela forma que vêem e deram-lhes nomes coincidentes nos quatro cantos do Mundo.

     “Mas se a noite cair repentinamente antes de eu ter tempo para ver o que está à minha frente ou em meu redor, como posso encontrar-lhes o nome? O que vejo já não é a forma. É aquilo que pressinto.” ─ Inquiriu a pequena flor.

     “Mas mesmo quando a noite cai repentinamente, tu ainda podes ver-te, não podes? Ou pelo menos continuas a saber quem és e não perdes o teu nome…! ─ Comentou a flor mais antiga.

     A pequena flor ficou meditativa por alguns instantes e tentou nomear todas as coisas que via. Rapidamente se deteve. Percebeu que havia muitas coisas que não conseguia nomear, muitas mais do que aquelas a que conseguia dar um nome. E, no entanto, elas estavam lá. Estavam vivas, eram reais e eram belas, tão belas como as que conseguia nomear.

     A noite caiu, não repentinamente, mas com uma extraordinária suavidade, como se quisesse mostrar todos os seus recantos e todos os passos da sua quotidiana viagem.

     A pequena flor olhou em volta, mas não conseguia ver com nitidez as coisas que sabia que estavam lá. Nem mesmo as estrelas, nem mesmo a lua conseguiam iluminar todas as coisas. Era como se não as quisessem iluminar completamente, como se iluminá-las fosse uma enorme traição à noite que as abrigava e tornava mais brilhantes e visíveis. Imbuídas por um imenso respeito, permaneciam no céu a uma enorme distância das coisas que rodeavam a pequena flor.

     Voltou para junto da flor antiga e perguntou-lhe se as coisas que via durante o dia ainda estavam lá. A flor antiga sorriu docemente e perguntou: “Tu ainda estás aí, não estás? Então, todos os seres que agora não vês continuam também aqui. Fecha os olhos até que te possas ver como se fosse o dia mais claro da criação. Depois volta a abri-los e diz-me o que vês.”

     A pequena flor fechou os olhos como fazia todas as noites. Mas agora não adormeceu. Acordou para o centro de si e para as coisas que não via. Viu-se imensamente pequena flutuando na luz do luar. Sentiu a erva fofa acariciar-lhe o tenro caule e a brisa afagar-lhe as pétalas. E nunca pensou, nem por um segundo, que tinha deixado de ser ela. Não via a sua forma, parecia ter muitas formas, mas continuava a ser a mesma pequena flor. Sentia-se capaz de ver cada recanto da alma e do universo mesmo sem conseguir ver um único contorno definido. Só uma espécie de luz persistente continuava bem definida e brilhava intensamente no centro da corola.

     Tomada por um imenso entusiasmo não conseguiu manter os olhos fechados por mais tempo. Abriu os olhos e olhou em volta. A noite continuava lá, acompanhada pela lua e pelas estrelas. O Mundo continuava mergulhado na penumbra, mas nada havia que não conseguisse ver. Sem saber como, o nome das coisas que não via, mesmo das que nunca vira, começaram a brotar-lhe das pétalas.

     A flor antiga sentiu-se feliz e recompensada, acompanhada por todas as coisas visíveis e invisíveis, pelas que tinham forma e pelas que não tinham matéria, pelas que tinham nomes, antigos ou novos, e pelas que ainda não tinham nome. O nome viria num dia ou noite qualquer pois ninguém sabe ao certo onde começa o olhar e sobretudo onde acaba. Intimamente estava convencida de que só existe o princípio, mas não o fim.

 

São Ludovino, 6/12/2018 (Este conto faz parte da série “Lendas, Mitos & Fábulas…”)

Young disciples II, photography by São Ludovino.


A link in the chain of life II, photography by São Ludovino.


Lucky for being here I, photography by São Ludovino.

Creating Happiness I, photography by São Ludovino.

Natural Splendor II, photography by São Ludovino.


Sem comentários:

Enviar um comentário