AZEVICHE
O que morre de sede
Não sabe os limites do deserto Que o habita e inunda de nada
O deserto que é apenas seu
O seu reino, o seu arbítrio, o seu labirinto
Alma paisagem curvilínea de novelo sem ponta
Sem tela, sem horizonte, sem imago, sem margens
Lasso crivo de areia onde nada fica.
Cada duna próxima se dilui
Na continuidade volúvel da distância.
Não há multidão que possa
Preencher um deserto por dentro
Ou ser que possa habitá-lo por longo tempo.
Se ao menos soubesse os limites
Os caminhos que se escondem
Na imensidão da areia.
Onde nasceu o que morre de sede?
Não sabe, esqueceu o nomeO lugar, a cronologia dos dias
Até chegar ali irremediavelmente perdido.
Quantas ampulhetas poderia encher este deserto?
Quanto tempo contaram as areias das dunas?
Que velho é cada grão de areia
Acabou de nascer já milenar
As crianças amam do mesmo modo
Cada rochedo e cada grão de areia
Vêem neles crianças antigas
Viajantes no tempo.
O que morre de sede
Não vê nada
Só o deserto e sombras de areia
Só o fim sem princípio
Sem infância
Sem biografia
Sem descoberta
Sem consolo
O mal de um homem
É não saber os limites do seu deserto
Os imprecisos limites da sua sede
Afoga-se em desejos e miragens
E a sede permanece, dilata-se, adoece
Fecha-se em recantos impenetráveis
Reduz todo o homem à geometria da sede
Sem pontos de fuga, sem coordenadas
Sem volume, sem profundidade
Ilimitada apenas pelo finito
Cálculos circulares irresolúveis
Compassos e esquadros inúteis
Equação após equação.
Cruza-se por toda a parte
Com estátuas de areia
A todas convida para o seu leito:
«Acompanha-me ao meu leito cor de azeviche
Tão amplo que cabe nele toda a matéria negra do universo.»
O homem que morre de sede
Nem sabe onde fica o seu leito cor de azeviche
Mas é lá que se quer deitar.
Uma estátua de areia diz-lhe:
«Onde fica o teu leito cor de azeviche?
Aqui vejo só este leito de rio perdido
Onde a água deixou de correr.
O homem que morre de sede insiste
Que a areia é água ou poeira de ouro
Que o seu leito é vasto e profundo
Que nele habitam jóias de florestas milenares
Que nele cabem todas as estrelas do céu
«Se no teu leito habitam estrelas
Morreram todas e deixaram apenas o negrume»
A estátua segue o seu caminho
Deixando atrás o rasto de mil estrelas
Acabadas de nascer
Mas o homem que morre de sede não viu as estrelas
Apenas miríades de estátuas de areia.
Com a mesma sede de sempre a inundar-lhe a alma
Segue sonâmbulo por entre as dunas
Carregando consigo o seu leito de azeviche.
Não há notícia de que tenha saciado a sede
Ou descoberto os limites do seu deserto.
Também não há notícia de que a matéria negra
Tenha desaparecido do universo.
As estátuas continuam a povoar o deserto
As estrelas continuam a ser estrelas
Umas pulsam no céu, viajam no seio das galáxias
Olhos que olham com uma luz que nunca adormece
Outras andam por aí junto aos riachos
Adormecem iluminadas…
São Ludovino, 8/6/1987, 3h 15m manhã
Waving sands II, photography by São Ludovino, 2018.
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