A Rua de Heráclito *
Todos os dias o homem
sem sombra
Segue pela mesma rua
de mãos nos bolsos
Fita a nesga de céu
lá ao fundo
Guarda-a algures onde
já estão
Tantas outras nesgas
de céu.
Um lugar vasto onde
todas se fundem
E se dissolvem na
unidade das coisas.
O sol vai nascer em
breve
Vai subir no céu e
brilhar
Sobre todas as
coisas.
As coisas retribuem
Existindo
simplesmente.
À tarde regressa
Com o sol ainda bem
alto.
Nas mãos leva um saco
de papel
Donde assomam legumes
e jornais.
Fita os outros que
passam
Acompanhados pelas
suas sombras.
Vão tristes ou
contentes
Com a sua sombra de
sempre.
À noite olha a rua da
janela
Não lhe quer tocar as
sombras
Que andam à solta e
dançam
Com as casas, as
árvores, as aves da noite.
À noite, a rua
desaparece
Ou alonga-se na
escuridão.
O que não se vê não
tem princípio nem fim
Pode ser minúsculo ou
incomensurável.
É sempre desconhecida
a rua.
Ele nunca teve uma
sombra.
Já em criança era
assim
Os outros desenhavam
no chão
Gnomos ou gigantes
Que corriam e
saltavam com eles.
Ele corria e saltava
apenas consigo mesmo.
No dia seguinte, tudo
se repete
E ele nada lembra,
nada descobre de novo
Não porque tudo seja
igual
Nada se repete
inteiramente
Nem nada é imutável
nesta rua.
É imutável porque é
constante na mudança
Porque é sempre a
mesma rua que muda
Porque são os mesmos
passos que a percorrem.
De resto, nada é
idêntico
Tudo passa, muda e
assim permanece…
Talvez tudo seja
assim
Apenas porque vai só
Sem sombra que lhe dê
a mão.
Podem ir magotes de
gente ao lado
Pode ir o melhor
amigo
Mas a sombra não.
Num dia sem sol
Em que a falta de
sombra o incomodava menos
Sentou-se num banco a
meio da rua de sempre
O que fizera ontem?
Não se lembrava.
E antes de ontem?
Não se lembrava.
E antes de antes de
antes de ontem?
Não se lembrava.
Não se lembra de nada
Se não fugazmente do
momento presente.
― Estou aqui, a rua
está aqui e continua a ser esta rua.
O que acontecera pelo
caminho?
As memórias deviam
estar algures
As memórias não se
perdem assim
As pessoas é que se
perdem
As memórias tal como
os passos
A respiração da alma
Ou o cintilar da
imaginação
Não se perdem nunca.
Nesse dia, em vez de
seguir caminho
Palmilhou a rua para
cima e para baixo
Aquele pedaço de rua
por onde se estendiam
Os seus dias, os seus
passos, os seus olhos.
Percorreu as
travessas, as praças, os largos
Os jardins e as
avenidas centrais
Paralelas, oblíquas,
cruzadas
Em pontos de grande
fluxo de gente
Veículos, ruídos,
conversas, ecos.
Um mundo desconhecido
Um cenário aberto ao
público.
Nada, nem rasto de
sombra ou memória.
Não tinha passado,
não tinha história
E sem passado nem
história
Não podia ter futuro
Excepto aquela rua, a
mesma de sempre
Estava lá todos os
dias…
Viveria para sempre
no presente…
Mas seria a mesma?
Também não se
lembrava disso.
Onde nascera, em que
rua, em que casa?
A rua era a mesma, a
mesma de sempre
Mas quando começou
esse “sempre”?
Talvez não tenha sido
há muito tempo.
A rua ia e vinha ou
deixava-se percorrer
Sem responder, sem se
queixar, sem se revelar.
Se calhar, ele tinha
estado sempre ali.
A rua é que se move,
ele não
Talvez seja apenas
uma estátua granítica
Saída do seio da
terra há milhões de anos
Talvez seja ele a
sombra que não vê
A sombra de outro
ser, a sombra de si mesmo.
Onde está o corpo e a
alma?
O homem que perdeu a
memória
Segue sempre por
aquela rua
É inércia em
movimento
Pensamento sem
hipocampo
Sombra levada por um
corpo
Não procura nada
preciso, prossegue, vago
Cansa-se, descansa,
prossegue, inerte
Mesmo ali sentado,
prossegue, adiado
É levado
indistintamente na corrente…
Ao seu lado sentou-se
alguém
Um ser intimamente
desconhecido
Sem idade, sem dias
perdidos
De corpo leve e
etéreo:
― Ainda bem que
paraste
Apetecia-me repousar
Acompanhar sempre os
teus passos
É mais duro do que
pensas.
Pensas que eu não
estou aqui
Não me ouves ou não
me queres ouvir
Talvez não saibas
ouvir-me
É natural, somos
muito próximos
Muito idênticos, indiferenciáveis
Como duas gotas de
chuva.
Mas eu sou mais leve
Vou a todo o lado
E levo-te comigo sem
qualquer esforço
Tu mal te consegues
levar a ti próprio
Não sei que fazer
Não sei quem te pode
valer.
Nem imaginas como
esta rua é longa
E estranha e
desconhecida
Andas de cá para lá
Mas nunca chegaste lá
ao fundo
Eu já lá fui muitas
vezes
E voltei para não te
deixar só.
Outro dia fui para lá
do fim da rua
Fui bater à porta de
deus
Que mora bem para lá
do fim
Na periferia, onde há
aldeias e campos
Não respondeu
Ou não ouviu ou não
estava em casa
Anda sempre muito
ocupado com a sua criação.
Tu pensas que estás a
meio da rua
Mas quem sabe onde
fica o meio
Eu penso que já fui
ao fim da rua
Mas não sei se era o
fim
Os olhos enganam-te
Até o sol te engana
Quando pensas que
nasce ou se põe
Isso é o que vês
desse ponto onde estás
É o meio de qualquer
coisa
Talvez o meio de ti
Este ponto só é o
meio da rua porque tu estás aqui
É daqui que olhas e
medes a rua
Se um dia fores até
ao fim da rua
Verás que não tem
fim…
O homem sem memória
nem sombra
Ergueu-se e começou a
caminhar
No sentido oposto ao
fim da rua
A figura etérea
seguiu-o em silêncio
Ora atrás, ora ao
lado, ora à frente
Passaram por
infindáveis travessas
Largos, praças e
cruzamentos
O sol nasceu e pôs-se
tantas vezes
A noite veio recolher
as sombras
Embalar a lua e
revelar estrelas
Vez após vez
E a caminhada para o
princípio da rua
Continuou…
As últimas esquinas
dos prédios altos abriram-se
E deixaram ver
campos, árvores, céu e aves
Ele viu a presença
etérea deter-se em espanto:
― É exactamente igual
ao fim da rua!
Lembro-me daquelas
árvores, daquele regato
Até o cheiro do ar é
o mesmo!
O homem sem sombra
nem memória
Olhou em redor,
respirou o ar
Reconheceu vagamente
a sombra das árvores
O som da terra e da
erva sob os pés
― Aquele rochedo,
lembro-me daquele rochedo
Eu era tão pequeno,
sabia-me pequeno, minúsculo
E ele era tão grande,
tão belo, tão inalcançável
Eu tinha de trepar
até lá acima
Tinha de descobrir o
que se vê
O que se sente lá em
cima…
― Também me lembro
daquele rochedo
Também eu trepei até
lá acima
E vi e senti o mesmo
que tu
Caí primeiro
Para te poder salvar…
São Ludovino, 13/1/2020
* «Nada é permanente excepto a mudança» Heráclito
Warmth Maker III, photography by São Ludovino, 2019.
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