domingo, 31 de dezembro de 2023

Palavras Novas - I

 A Rua de Heráclito *

Todos os dias o homem sem sombra
Segue pela mesma rua de mãos nos bolsos
Fita a nesga de céu lá ao fundo
Guarda-a algures onde já estão
Tantas outras nesgas de céu.
Um lugar vasto onde todas se fundem
E se dissolvem na unidade das coisas.
 
O sol vai nascer em breve
Vai subir no céu e brilhar
Sobre todas as coisas.
As coisas retribuem
Existindo simplesmente.
 
À tarde regressa
Com o sol ainda bem alto.
Nas mãos leva um saco de papel
Donde assomam legumes e jornais.
Fita os outros que passam
Acompanhados pelas suas sombras.
Vão tristes ou contentes
Com a sua sombra de sempre.
 
À noite olha a rua da janela
Não lhe quer tocar as sombras
Que andam à solta e dançam
Com as casas, as árvores, as aves da noite.
À noite, a rua desaparece
Ou alonga-se na escuridão.
O que não se vê não tem princípio nem fim
Pode ser minúsculo ou incomensurável.
É sempre desconhecida a rua.
 
Ele nunca teve uma sombra.
Já em criança era assim
Os outros desenhavam no chão
Gnomos ou gigantes
Que corriam e saltavam com eles.
Ele corria e saltava apenas consigo mesmo.
 
No dia seguinte, tudo se repete
E ele nada lembra, nada descobre de novo
Não porque tudo seja igual
Nada se repete inteiramente
Nem nada é imutável nesta rua.
É imutável porque é constante na mudança
Porque é sempre a mesma rua que muda
Porque são os mesmos passos que a percorrem.
De resto, nada é idêntico
Tudo passa, muda e assim permanece…
 
Talvez tudo seja assim
Apenas porque vai só
Sem sombra que lhe dê a mão.
Podem ir magotes de gente ao lado
Pode ir o melhor amigo
Mas a sombra não.
 
Num dia sem sol
Em que a falta de sombra o incomodava menos
Sentou-se num banco a meio da rua de sempre
O que fizera ontem?
Não se lembrava.
E antes de ontem?
Não se lembrava.
E antes de antes de antes de ontem?
Não se lembrava.
Não se lembra de nada
Se não fugazmente do momento presente.
Estou aqui, a rua está aqui e continua a ser esta rua.
 
O que acontecera pelo caminho?
As memórias deviam estar algures
As memórias não se perdem assim
As pessoas é que se perdem
As memórias tal como os passos
A respiração da alma
Ou o cintilar da imaginação
Não se perdem nunca.
 
Nesse dia, em vez de seguir caminho
Palmilhou a rua para cima e para baixo
Aquele pedaço de rua por onde se estendiam
Os seus dias, os seus passos, os seus olhos.
Percorreu as travessas, as praças, os largos
Os jardins e as avenidas centrais
Paralelas, oblíquas, cruzadas
Em pontos de grande fluxo de gente
Veículos, ruídos, conversas, ecos.
Um mundo desconhecido
Um cenário aberto ao público.
Nada, nem rasto de sombra ou memória.
Não tinha passado, não tinha história
E sem passado nem história
Não podia ter futuro
Excepto aquela rua, a mesma de sempre
Estava lá todos os dias…
Viveria para sempre no presente…
 
Mas seria a mesma?
Também não se lembrava disso.
Onde nascera, em que rua, em que casa?
A rua era a mesma, a mesma de sempre
Mas quando começou esse “sempre”?
Talvez não tenha sido há muito tempo.
A rua ia e vinha ou deixava-se percorrer
Sem responder, sem se queixar, sem se revelar.
Se calhar, ele tinha estado sempre ali.
A rua é que se move, ele não
Talvez seja apenas uma estátua granítica
Saída do seio da terra há milhões de anos
Talvez seja ele a sombra que não vê
A sombra de outro ser, a sombra de si mesmo.
Onde está o corpo e a alma?
 
O homem que perdeu a memória
Segue sempre por aquela rua
É inércia em movimento
Pensamento sem hipocampo
Sombra levada por um corpo
Não procura nada preciso, prossegue, vago
Cansa-se, descansa, prossegue, inerte
Mesmo ali sentado, prossegue, adiado
É levado indistintamente na corrente…
 
Ao seu lado sentou-se alguém
Um ser intimamente desconhecido
Sem idade, sem dias perdidos
De corpo leve e etéreo:
Ainda bem que paraste
Apetecia-me repousar
Acompanhar sempre os teus passos
É mais duro do que pensas.
Pensas que eu não estou aqui
Não me ouves ou não me queres ouvir
Talvez não saibas ouvir-me
É natural, somos muito próximos
Muito idênticos, indiferenciáveis
Como duas gotas de chuva.
Mas eu sou mais leve
Vou a todo o lado
E levo-te comigo sem qualquer esforço
Tu mal te consegues levar a ti próprio
Não sei que fazer
Não sei quem te pode valer.
 
Nem imaginas como esta rua é longa
E estranha e desconhecida
Andas de cá para lá
Mas nunca chegaste lá ao fundo
Eu já lá fui muitas vezes
E voltei para não te deixar só.
 
Outro dia fui para lá do fim da rua
Fui bater à porta de deus
Que mora bem para lá do fim
Na periferia, onde há aldeias e campos
Não respondeu
Ou não ouviu ou não estava em casa
Anda sempre muito ocupado com a sua criação.
 
Tu pensas que estás a meio da rua
Mas quem sabe onde fica o meio
Eu penso que já fui ao fim da rua
Mas não sei se era o fim
Os olhos enganam-te
Até o sol te engana
Quando pensas que nasce ou se põe
Isso é o que vês desse ponto onde estás
É o meio de qualquer coisa
Talvez o meio de ti
Este ponto só é o meio da rua porque tu estás aqui
É daqui que olhas e medes a rua
Se um dia fores até ao fim da rua
Verás que não tem fim…
 
O homem sem memória nem sombra
Ergueu-se e começou a caminhar
No sentido oposto ao fim da rua
A figura etérea seguiu-o em silêncio
Ora atrás, ora ao lado, ora à frente
Passaram por infindáveis travessas
Largos, praças e cruzamentos
O sol nasceu e pôs-se tantas vezes
A noite veio recolher as sombras
Embalar a lua e revelar estrelas
Vez após vez
E a caminhada para o princípio da rua
Continuou…
 
As últimas esquinas dos prédios altos abriram-se
E deixaram ver campos, árvores, céu e aves
Ele viu a presença etérea deter-se em espanto:
É exactamente igual ao fim da rua!
Lembro-me daquelas árvores, daquele regato
Até o cheiro do ar é o mesmo!
 
O homem sem sombra nem memória
Olhou em redor, respirou o ar
Reconheceu vagamente a sombra das árvores
O som da terra e da erva sob os pés
Aquele rochedo, lembro-me daquele rochedo
Eu era tão pequeno, sabia-me pequeno, minúsculo
E ele era tão grande, tão belo, tão inalcançável
Eu tinha de trepar até lá acima
Tinha de descobrir o que se vê
O que se sente lá em cima…
 
Também me lembro daquele rochedo
Também eu trepei até lá acima
E vi e senti o mesmo que tu
Caí primeiro
Para te poder salvar…
 

São Ludovino, 13/1/2020 

* «Nada é permanente excepto a mudança» Heráclito

Warmth Maker III, photography by São Ludovino, 2019.


Sem comentários:

Enviar um comentário