domingo, 31 de dezembro de 2023

Palavras Antigas - VI

 Volta ao Mundo Gota a Gota

O mundo reflecte-se nas águas da baía
De todas as baías do mundo
Completo, dos Himalaias ao meu quintal.
Parece pequeno o mundo
Tem o tamanho de um reflexo nas águas
É um ponto minúsculo no Universo.
Fica distante o mundo
Fica sempre muito distante do lugar
De onde se observa, de onde se concebe o mundo.
Só de longe pode ser abarcado na sua extensão variável.
Estica-se o braço, toca-se a água, toca-se o mundo
Para lá da copa das árvores
Para lá do oceano e das montanhas
Para lá do voo das aves
Para lá dos séculos e dos dias.
Fica tão perto nas águas da baía.
Por onde andaram, as águas
Aprenderam os recantos do mundo
Trouxeram consigo o que viram
Tocaram, adivinharam, foram o mundo.
No mesmo olhar abarco o mundo e as águas viajantes.

Atira-se uma pedra e o mundo parte-se líquido
Salta-se lá para dentro e o mundo afasta-se calmamente
Espreguiça-se em círculos concêntricos
Mergulha-se sem medo e ficam só gotas de mundo
A borbulhar bailando, respirando profundamente.

O mundo é um teimoso narciso, um alfobre inteiro
Gosta de ser visto, abraçado, levado para casa
Bebido como um sumo de laranja, gota a gota
Regado, adubado, deixado em paz
Às vezes cansa-se pelo caminho
Esquece o espelho de água
E fica repousado num recanto aconchegado
De quem o olha, de quem o pensa
De quem o faz poema.

Não há distâncias de um só sentido
Ruas que apenas sobem ou descem
Rios que desaguam sem nascer
Sem lembrar a primeira gota que foram
Música sem silêncio, polifonias, harmonia
Acorde que vai da cacofonia à eufonia
Canção que é canto de ave antes de ser canto da paz
Viagem sonora da voz da mãe à voz natural das coisas
Não há pão que não tenha sido espiga, grão, semente
Para ser torrada, lanche, espírito saciado
Amanhã sem ontem, sem hoje.

A distância é como o tempo
Flui materialmente ao longo dos dias
Deixa marcas imateriais na tela interior
As impressões digitais das árvores do caminho
As cores do entardecer, o cume suave dos montes
O eco das vozes que ontem cantaram
O calor dos braços que um dia abraçaram
Vem, vai, segue em todas as direcções
Transporta tudo o que já existiu.
Se chego é porque parti e regressei
Se estão cansados os músculos e viva a alma
É porque caminhei, tropecei, caí, prossegui
Até chegar aqui com a bagagem interna intacta
Se lembro, estou aqui, estou em todos os lugares
Se imagino também, tudo está aqui
Mas feito de uma matéria diferente
O desenho que adormece antes de ser desenhado
O reino que se liberta antes de ser governado
O fruto na flor na árvore na terra no tempo…
O espaço-tempo habita em todos os seres…
O antigo caminho revela-se na ida e no regresso
Vai-se revelando, sem pressa, subitamente
Enquanto tudo acontece…

O que regressa já existiu
O que fui sou
O que vem de novo encontra o que já trago em mim
Toda a espera é recompensada
Existe o que é esperado
Se a cascata me maravilha
A cascata já existia em mim
Se estranho a beleza de uma flor desconhecida
É porque fazia falta em mim
Se este raio de sol me aquece
É porque já brilhava em mim
Se o que vejo é novo
É porque é novo o meu olhar
Se encontram as palavras o que penso
É porque as palavras esperavam por mim.
Tudo se completa, encontra no todo o seu lugar…
Encontraste a mesma cascata, a mesma flor
O mesmo raio de sol, o mesmo olhar, as mesmas palavras?
O que significa esta coincidência?
Será coincidência, será experiência?
Estaremos realmente sós quanto estamos em nós mesmos?
Esperámos, vivemos a mesma realidade
O mundo não é de ninguém.

O voo de outros pássaros passa por mim
Rente às águas, rente às árvores
Através da imagem de outros pássaros
Que já voaram por mim, em mim
Não há saudade na saudade
Não há repetição na ilusão de repetição
A saudade é o mais livre dos pássaros
Não nasceu para viver aprisionado nas almas
Nos limites do tempo domesticado
Leva nas asas enormes nomes de lugares
Nos olhos leva milhões de olhares
Em cada lugar deixa aquilo que transporta
Recolhe o que ainda não contém
As memórias do mundo e de cada um.
O espírito do mundo não esquece nada nem ninguém
Tudo está aqui, neste reflexo do mundo.

Suy / São Ludovino, 30/6/1987 – 2 h manhã

My winged tribe I, photography by São Ludovino.

My winged tribe II, photography by São Ludovino.

In flight, photography by São Ludovino.


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