Gravidade criativa
I –
Etiologia angelical
II –
Espécies aladas
III –
Quedas fortuitas
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I – Etiologia angelical
Cai um anjo
Ninguém vê donde cai
Ninguém está à
espera de um anjo
Ninguém gosta de
anjos caídos
Ninguém sabe que é
um anjo
O vulto basáltico
que rasga o céu inaudível
Imaterial, fugidio,
contrariado
Contrário à natureza
das coisas.
É mais crível que
seja um meteorito
Um néon na noite,
uma ave rara.
As catedrais estão
cheias de anjos e demónios de pedra
De medo, mitos,
dogmas, vitrais iluminados e imagens sombrias
As ruas estão cheias
de anjos e demónios
Invulgares ou
banais, que caem, que se levantam
Que lá ficam, que lá
vão, indo e vindo
Que não sabem como
ir para onde vão
Multicolores,
doridos, daltónicos, utópicos distópicos
Escorregam, caem,
dão saltos mortais
Somem-se por entre
as ondas de gente
Vão e vêm, aparecem
e desaparecem
Sem que jamais
alguém dê por eles
Naturais ou
transcendentes.
Uma ou outra vez,
todos se consideram anjos
Todos são anjos ou
demónios para alguém.
No Natal, as
crianças desenham anjos
Quase sempre alvos
como a neve
Incolores,
translúcidos ou ligeiramente
Rosados, dourados,
travessos
Amistosos como
velhos gatos
Alados subitamente
fugazes
Imóveis em folhas de
papel.
Quando as crianças
se cansam de desenhar anjos sem cor
Sem dor, sem
sobressaltos, sem voos falhados
Desatam a pintá-los
de todas as cores
Vestem-nos,
despem-nos
Fazem-nos parecidos
a si mesmas
Aos heróis e vilões
das histórias
Às pessoas que
atravessam os seus dias
Aproximam-se assim
do céu libertado
Ganham dons novos e
naturais
Olhar, compreender,
interpretar, poetizar
Fazer nascer
histórias no céu de papel…
Depois vêm
filósofos, teólogos e místicos
Com as suas
naturezas particulares
Lutam entre si para
se apoderarem
Daquele céu de
papel, daquelas criaturas aladas
Agarram as folhas de
papel
Como quem se agarra
a uma tábua de salvação
Miram-nas com grande
curiosidade
Mergulham nos
rabiscos
Corrigem-lhes a cor
Abraçam-lhes as asas
Arrancam-lhes as
penas, os mistérios
A imperfeita
imponderabilidade
E o que fica então?
Apenas filósofos,
teólogos e místicos…
II – Espécies aladas
Vai-se pela rua
distraidamente
E eles lá estão,
descarados, disfarçados
Desarrumados entre a
multidão
Basta prestar
atenção
Mesmo que não se
vejam as asas
Vê-se a sombra, a
aura, a luz, a máscara
Uma reminiscência
transcendente…
«Ó meu senhor, ó meu
rico senhor
Dê uma moedinha ao
pobrezinho
Que é cego e
aleijadinho
Uma moeda, uma
moedinha pequenina
P’ró caminho, pr’a
mim e p’ró menino
Não volte a cara,
meu senhor, que é pecado
Olhe-me só este
órfãozinho
Não lhe dói a alma,
meu senhor?
O menino é d’oiro, o
menino é um anjinho
Tenha dó meu senhor
Abra lá o seu
bolsinho!»
E o menino trepa então
até aos ombros do cego
Aponta para lá do
fim da rua e repete:
«Mais longe,
Cristóvão, mais longe!»
A moeda cai na lata
e eles partem
Para mais longe,
sempre mais longe…
«Olh’ó anjinho de
cristal
Tão brilhante como o
sol nascente
Traz auréola a
condizer com a roupinha
E asinhas suplentes
iluminadas
Quando acendem, ele
fala, canta
E até dança nos
biquinhos dos pés.
Não é mimoso, o
anjinho?
Veio directamente do
Japão
No Japão não há
anjos
É tudo para
exportação
Não quebra, não
perde o brilho
É comprar freguês, é
comprar
Melhor não arranja
em lado nenhum
Nem no chinês, que
lá é tudo falsificado
Dura menos que um
ai.
Ai, ai, não caia
nessa!
Olh’ó anjinho
samurai!
Dá força de
super-herói
E até faz hara-kiri
se for preciso
Assim não dói nada
Lava a honra e fica
vivo.
Olh’ó anjinho
gueixa!
Doce, sempre jovem e
bonitinha
Tem asas duplas, de
anjo e borboleta
Canta ópera e
baladas orientais.
Olh’ó anjinho monge
Xinto!
Medita e ora em 9
línguas
Voa com e sem asas
Fica bem no jardim,
no quintal
No escritório e na
mala de viagem
Olh’ó anjinho lindo!
É pró menino e prá
menina
É pró povo e pró
chefe
Não há ministro que
não tenha um anjinho
Bem-falante e
milagreiro
Até o doutor tem um
no consultório
Cura maleitas,
azias, mau-olhado e estrabismo
Febres, azares e
frialdades
O reumático e a
pneumonia
Poupe na farmácia,
freguês
Compre antes um
anjinho… !»
E o pintor de rua
que não pinta a rua
Arruma na banca as
telas
Prende-as às tábuas
com cordéis
Com medo que venha o
vento
Que venha um
saltimbanco
Que venha um aviador
E as telas voem
pelos ares
Só pinta anjos o
pintor
Diz que não tem
outra inspiração
Vendem bem os anjos
Compram-nos para os
pregarem nas paredes
Pobres anjos
aprisionados!
Quando se cansam de
os ver ali parados
Sem graça nem
divindade
Mudam-nos de parede…
voltam a pregá-los
Ora com pregos de
ferro ora com pregos dourados.
Pobres anjos
pintados!
Crucificados, vez
após vez, sem dó nem piedade!
O pintor diz-lhes
que os ponham antes na varanda ou à janela
Os seus anjos não
são caseiros, são claustrofóbicos
Precisam de apanhar
ar
De ver as vistas
Um quadro não pode
ser uma gaiola
Muito menos de
anjos…
Ele lá sabe do que
fala…
Bem se lembra de uma
tela de onde fugiu um anjo
Estava ele sossegado
na parede da sala de estar
Parecia feliz ou
conformado
Sem aviso nem rasto,
em menos d’um ai
Foi-se, sabe-se lá
para onde.
Quem não se
conformou com a perda de tal obra-prima
Foi o pintor, esse
teimoso criador de anjos.
Teve uma ideia, um
pressentimento, uma dor no peito
Procurou por toda a
parte o caminho da salvação
Na tela, nas tintas,
no escuro da alma
Nos vultos que se
dissolvem no nevoeiro das vielas.
À noite deixou a
tela recostada no peitoril da janela
A ver a lua, as
estrelas e os parentes aventureiros.
De manhã, o anjo
tinha voltado à tela
Arejado, renovado,
sorridente
Cheio de planos e
livre arbítrio.
Assim, o artista
aprendeu a pintar apenas anjos livres
O que às veze
significava apenas uma tela vazia…
Mais abaixo ou mais
acima
Mas muito antes do
fim da rua
O alfarrabista
arruma em caixas livros e postais
Cada caixa tem uma
etiqueta
Mesmo que não
corresponda ao que contém:
Vintage, futurista,
surrealista
Realismo puro,
impuro e mágico…
Não apregoa muito o
alfarrabista
Fica à espera como
um caçador de borboletas
Se alguma se
aproxima e pousa levemente no escaparate
Começa então a
digressão:
«Esse aí tem
soluços, as páginas, as linhas, as palavras
Tendem a saltar às
dez e mais de cada vez
Gosta de peripécias
e finais inesperados
Mas pode levá-lo à
vontade
Às vezes sossega e o
hábito não é contagioso…»
«Ah, esse é um
interlocutor nato
Às vezes é um bocado
respondão
Se achar que a
intriga devia seguir este rumo
É muito provável que
ele siga em sentido contrário
Se achar que a
narrativa devia ser aberta
Ele fecha-a porque
sim ou porque não
É difícil de
convencer e não consegue ficar calado
Rege-se unicamente
pelo espírito de contradição…»
«Essa é uma velha
senhora
Matreira, perspicaz,
incisiva
Não há mistério que
lhe escape
Da intriga
internacional ao drama familiar
Da luta de classes à
disputa política
Da plebe à
aristocracia
Do rapto ao
homicídio
Das liaisons dangereuses às liaisons convenables
Ninguém está imune
Ninguém sai incólume
Não, não é démodé
Não há página que
não tenha sido lida
Mil vezes sem fastio
Mesmo que cada um se
engane outras tantas
Na tentativa de
deslindar o enredo…
O único senão é a
tinta invisível
Cada leitor terá de
descobrir por si
Como torná-la
legível…
Eu nem diria que é
um senão
É apenas mais um
desafio
Não paga mais por isso
É uma provocação
completamente gratuita…»
«Nunca durma com
esse na mesa-de-cabeceira
Gosta de cérebros
adormecidos.
Mal sente o torpor
de Morfeu
Invadir-lhes os
neurónios
Mergulha a fundo e
despeja tudo o que contém
Como se as mentes
fossem lixeiras
Ou a fossa abissal
das Marianas…
Tem uma bela
encadernação, não é?
É o chamariz
perfeito
Quem não gosta de
uma bonita capa?
É o contraponto do
interior
Negro como breu
É o produto de um
mundo aprisionado em si mesmo
Para fugir de si,
devora tudo em redor
Dostoievski é só o
porta-voz
Perseguido por
fantasmagorias, pobre coitado
Só viu demónios,
nunca anjos…
Tirando isso, pode
ser um bom mestre
Desde que o leitor
se mantenha distante
E bem acordado…»
«Este é uma preciosidade,
exemplar único
Primeira edição
esgotadíssima
Depois desta já
houve mais umas cem
Todas igualmente
esgotadas
Isso dá-lhe uns
certos tiques de superioridade
Mas não leve a mal
Tenha paciência,
ature-lhe as manias
Mais dia, menos dia
há-de descobrir por que é uma preciosidade
Mas também não
acredite em tudo o que lhe diz
Bazófias não lhe
faltam
Aperalta-se, puxa do
parlapié a torto e a direito
Veste peles, despe
peles
Abrilhanta os olhos
com colírio
Anedia o seu próprio
pêlo com brilhantina e auto-elogios
Eu sou, eu fui, eu
serei
Só eu, ninguém mais
do que eu
Apenas eu, eu ao
cubo, eu enésimo
Eu sei, eu fiz, eu
descobri, eu inventei
Mas tudo com grande
honestidade
As notas de rodapé
explicam tudo…
Em suma, é um livro
para apanhar mentirosos
Já viu coisa mais
preciosa?»
«Mas não tem livros
sobre anjos?»
Pergunta uma
borboleta.
«Claro que tenho,
são todos sobre anjos
Só precisa de os
encontrar… aos anjos…
Os livros estão
todos aqui…»
Sem se atrever a
fazer tal busca
A borboleta voa para
outras paragens
Mais previsíveis,
mais amenas
Com menos mistérios
e idiossincrasias…
III – Quedas
fortuitas
No entanto eles caem
Não importa se são
vistos ou não
Se querem ou não
cair
Se tropeçam, se
calculam o salto
Se voam nas asas do
acaso
Se obedecem a algum
desígnio
Se são meros
experimentalistas
Se seguem uma
vocação
O certo é que eles
caem
Às vezes de pé, às
vezes de cabeça
Às vezes de
paraquedas
E até com rede de
protecção
Há muitos modos de
cair
Os anjos têm mais
modos de cair do que qualquer outra espécie
O que poucos sabem é
d’onde eles caem e onde caem
O problema está, é
claro, nos olhos de quem olha.
Por muito fugidio,
transparente ou negro que seja
Um anjo é sempre um
anjo
Puro, alvíssimo
multicolor
É inconfundível e confunde-se
com tudo
É conveniente para a
espécie dos anjos
Para todos os anjos
Os que existem e os
que hão-de existir
Brancos, amarelos,
azuis, verdes
Roxos, laranja,
negros, rosa, dourados…
Aí vem um raio, uma
flecha, um tridente
Aonde irá cair?
Algo me diz
Que, desta vez, só
eu vi este anjo
Sem aviso, cai de
uma montanha ou de uma nuvem
De uma página
ricamente ilustrada
Por outro anjo
qualquer
Cai de uma história
escrita nas constelações.
Entre os milhões de
páginas
Havia uma que dizia
que um anjo havia de cair
Este anjo,
precisamente este
Neste dia, a esta
hora, neste ponto do espaço infinito
Coincidiram os meus
passos com o passar das páginas
A página voltou-se
O anjo caiu…
Suy / São Ludovino, 5/10/1987 (2h 30m
manhã)
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