domingo, 31 de dezembro de 2023

Palavras Antigas - IV

 Gravidade criativa

I – Etiologia angelical
II – Espécies aladas
III – Quedas fortuitas

***************

I – Etiologia angelical

Cai um anjo

Ninguém vê donde cai
Ninguém está à espera de um anjo
Ninguém gosta de anjos caídos
Ninguém sabe que é um anjo
O vulto basáltico que rasga o céu inaudível
Imaterial, fugidio, contrariado
Contrário à natureza das coisas.
É mais crível que seja um meteorito
Um néon na noite, uma ave rara.
 
As catedrais estão cheias de anjos e demónios de pedra
De medo, mitos, dogmas, vitrais iluminados e imagens sombrias
As ruas estão cheias de anjos e demónios
Invulgares ou banais, que caem, que se levantam
Que lá ficam, que lá vão, indo e vindo
Que não sabem como ir para onde vão
Multicolores, doridos, daltónicos, utópicos distópicos
Escorregam, caem, dão saltos mortais
Somem-se por entre as ondas de gente
Vão e vêm, aparecem e desaparecem
Sem que jamais alguém dê por eles
Naturais ou transcendentes.
Uma ou outra vez, todos se consideram anjos
Todos são anjos ou demónios para alguém.
 
No Natal, as crianças desenham anjos
Quase sempre alvos como a neve
Incolores, translúcidos ou ligeiramente
Rosados, dourados, travessos
Amistosos como velhos gatos
Alados subitamente fugazes
Imóveis em folhas de papel.
Quando as crianças se cansam de desenhar anjos sem cor
Sem dor, sem sobressaltos, sem voos falhados
Desatam a pintá-los de todas as cores
Vestem-nos, despem-nos
Fazem-nos parecidos a si mesmas
Aos heróis e vilões das histórias
Às pessoas que atravessam os seus dias
Aproximam-se assim do céu libertado
Ganham dons novos e naturais
Olhar, compreender, interpretar, poetizar
Fazer nascer histórias no céu de papel…
Depois vêm filósofos, teólogos e místicos
Com as suas naturezas particulares
Lutam entre si para se apoderarem
Daquele céu de papel, daquelas criaturas aladas
Agarram as folhas de papel
Como quem se agarra a uma tábua de salvação
Miram-nas com grande curiosidade
Mergulham nos rabiscos
Corrigem-lhes a cor
Abraçam-lhes as asas
Arrancam-lhes as penas, os mistérios
A imperfeita imponderabilidade
E o que fica então?
Apenas filósofos, teólogos e místicos…
 

II – Espécies aladas

Vai-se pela rua distraidamente

E eles lá estão, descarados, disfarçados
Desarrumados entre a multidão
Basta prestar atenção
Mesmo que não se vejam as asas
Vê-se a sombra, a aura, a luz, a máscara
Uma reminiscência transcendente…
 

«Ó meu senhor, ó meu rico senhor

Dê uma moedinha ao pobrezinho
Que é cego e aleijadinho
Uma moeda, uma moedinha pequenina
P’ró caminho, pr’a mim e p’ró menino
Não volte a cara, meu senhor, que é pecado
Olhe-me só este órfãozinho
Não lhe dói a alma, meu senhor?
O menino é d’oiro, o menino é um anjinho
Tenha dó meu senhor
Abra lá o seu bolsinho!»
E o menino trepa então até aos ombros do cego
Aponta para lá do fim da rua e repete:
«Mais longe, Cristóvão, mais longe!»
A moeda cai na lata e eles partem
Para mais longe, sempre mais longe…
 
«Olh’ó anjinho de cristal
Tão brilhante como o sol nascente
Traz auréola a condizer com a roupinha
E asinhas suplentes iluminadas
Quando acendem, ele fala, canta
E até dança nos biquinhos dos pés.
Não é mimoso, o anjinho?
Veio directamente do Japão
No Japão não há anjos
É tudo para exportação
Não quebra, não perde o brilho
É comprar freguês, é comprar
Melhor não arranja em lado nenhum
Nem no chinês, que lá é tudo falsificado
Dura menos que um ai.
Ai, ai, não caia nessa!
Olh’ó anjinho samurai!
Dá força de super-herói
E até faz hara-kiri se for preciso
Assim não dói nada
Lava a honra e fica vivo.
Olh’ó anjinho gueixa!
Doce, sempre jovem e bonitinha
Tem asas duplas, de anjo e borboleta
Canta ópera e baladas orientais.
Olh’ó anjinho monge Xinto!
Medita e ora em 9 línguas
Voa com e sem asas
Fica bem no jardim, no quintal
No escritório e na mala de viagem
Olh’ó anjinho lindo!
É pró menino e prá menina
É pró povo e pró chefe
Não há ministro que não tenha um anjinho
Bem-falante e milagreiro
Até o doutor tem um no consultório
Cura maleitas, azias, mau-olhado e estrabismo
Febres, azares e frialdades
O reumático e a pneumonia
Poupe na farmácia, freguês
Compre antes um anjinho… !»
 
E o pintor de rua que não pinta a rua
Arruma na banca as telas
Prende-as às tábuas com cordéis
Com medo que venha o vento
Que venha um saltimbanco
Que venha um aviador
E as telas voem pelos ares
Só pinta anjos o pintor
Diz que não tem outra inspiração
Vendem bem os anjos
Compram-nos para os pregarem nas paredes
Pobres anjos aprisionados!
Quando se cansam de os ver ali parados
Sem graça nem divindade
Mudam-nos de parede… voltam a pregá-los
Ora com pregos de ferro ora com pregos dourados.
Pobres anjos pintados!
Crucificados, vez após vez, sem dó nem piedade!
O pintor diz-lhes que os ponham antes na varanda ou à janela
Os seus anjos não são caseiros, são claustrofóbicos
Precisam de apanhar ar
De ver as vistas
Um quadro não pode ser uma gaiola
Muito menos de anjos…
Ele lá sabe do que fala…
Bem se lembra de uma tela de onde fugiu um anjo
Estava ele sossegado na parede da sala de estar
Parecia feliz ou conformado
Sem aviso nem rasto, em menos d’um ai
Foi-se, sabe-se lá para onde.
Quem não se conformou com a perda de tal obra-prima
Foi o pintor, esse teimoso criador de anjos.
Teve uma ideia, um pressentimento, uma dor no peito
Procurou por toda a parte o caminho da salvação
Na tela, nas tintas, no escuro da alma
Nos vultos que se dissolvem no nevoeiro das vielas. 
À noite deixou a tela recostada no peitoril da janela
A ver a lua, as estrelas e os parentes aventureiros.
De manhã, o anjo tinha voltado à tela
Arejado, renovado, sorridente
Cheio de planos e livre arbítrio.
Assim, o artista aprendeu a pintar apenas anjos livres
O que às veze significava apenas uma tela vazia…
 
Mais abaixo ou mais acima
Mas muito antes do fim da rua
O alfarrabista arruma em caixas livros e postais
Cada caixa tem uma etiqueta
Mesmo que não corresponda ao que contém:
Vintage, futurista, surrealista
Realismo puro, impuro e mágico…
Não apregoa muito o alfarrabista
Fica à espera como um caçador de borboletas
Se alguma se aproxima e pousa levemente no escaparate
Começa então a digressão:
«Esse aí tem soluços, as páginas, as linhas, as palavras
Tendem a saltar às dez e mais de cada vez
Gosta de peripécias e finais inesperados
Mas pode levá-lo à vontade
Às vezes sossega e o hábito não é contagioso…»
 
«Ah, esse é um interlocutor nato
Às vezes é um bocado respondão
Se achar que a intriga devia seguir este rumo
É muito provável que ele siga em sentido contrário
Se achar que a narrativa devia ser aberta
Ele fecha-a porque sim ou porque não
É difícil de convencer e não consegue ficar calado
Rege-se unicamente pelo espírito de contradição…»
 
«Essa é uma velha senhora
Matreira, perspicaz, incisiva
Não há mistério que lhe escape
Da intriga internacional ao drama familiar
Da luta de classes à disputa política
Da plebe à aristocracia
Do rapto ao homicídio
Das liaisons dangereuses às liaisons convenables
Ninguém está imune
Ninguém sai incólume
Não, não é démodé
Não há página que não tenha sido lida
Mil vezes sem fastio
Mesmo que cada um se engane outras tantas
Na tentativa de deslindar o enredo…
O único senão é a tinta invisível
Cada leitor terá de descobrir por si
Como torná-la legível…
Eu nem diria que é um senão
É apenas mais um desafio
 Não paga mais por isso
É uma provocação completamente gratuita…»
 
«Nunca durma com esse na mesa-de-cabeceira
Gosta de cérebros adormecidos.
Mal sente o torpor de Morfeu
Invadir-lhes os neurónios
Mergulha a fundo e despeja tudo o que contém
Como se as mentes fossem lixeiras
Ou a fossa abissal das Marianas…
Tem uma bela encadernação, não é?
É o chamariz perfeito
Quem não gosta de uma bonita capa?
É o contraponto do interior
Negro como breu
É o produto de um mundo aprisionado em si mesmo
Para fugir de si, devora tudo em redor
Dostoievski é só o porta-voz
Perseguido por fantasmagorias, pobre coitado
Só viu demónios, nunca anjos…
Tirando isso, pode ser um bom mestre
Desde que o leitor se mantenha distante
E bem acordado…»
 
«Este é uma preciosidade, exemplar único
Primeira edição esgotadíssima
Depois desta já houve mais umas cem
Todas igualmente esgotadas
Isso dá-lhe uns certos tiques de superioridade
Mas não leve a mal
Tenha paciência, ature-lhe as manias
Mais dia, menos dia há-de descobrir por que é uma preciosidade
Mas também não acredite em tudo o que lhe diz
Bazófias não lhe faltam
Aperalta-se, puxa do parlapié a torto e a direito
Veste peles, despe peles
Abrilhanta os olhos com colírio
Anedia o seu próprio pêlo com brilhantina e auto-elogios
Eu sou, eu fui, eu serei
Só eu, ninguém mais do que eu
Apenas eu, eu ao cubo, eu enésimo
Eu sei, eu fiz, eu descobri, eu inventei
Mas tudo com grande honestidade
As notas de rodapé explicam tudo…
Em suma, é um livro para apanhar mentirosos
Já viu coisa mais preciosa?»
 
«Mas não tem livros sobre anjos?»
Pergunta uma borboleta.
«Claro que tenho, são todos sobre anjos
Só precisa de os encontrar… aos anjos…
Os livros estão todos aqui…»
 
Sem se atrever a fazer tal busca
A borboleta voa para outras paragens
Mais previsíveis, mais amenas
Com menos mistérios e idiossincrasias…
 

III – Quedas fortuitas

No entanto eles caem

Não importa se são vistos ou não
Se querem ou não cair
Se tropeçam, se calculam o salto
Se voam nas asas do acaso
Se obedecem a algum desígnio
Se são meros experimentalistas
Se seguem uma vocação
O certo é que eles caem
Às vezes de pé, às vezes de cabeça
Às vezes de paraquedas
E até com rede de protecção
Há muitos modos de cair
Os anjos têm mais modos de cair do que qualquer outra espécie
O que poucos sabem é d’onde eles caem e onde caem
O problema está, é claro, nos olhos de quem olha.
 
Por muito fugidio, transparente ou negro que seja
Um anjo é sempre um anjo
Puro, alvíssimo multicolor
É inconfundível e confunde-se com tudo
É conveniente para a espécie dos anjos
Para todos os anjos
Os que existem e os que hão-de existir
Brancos, amarelos, azuis, verdes
Roxos, laranja, negros, rosa, dourados…
 
Aí vem um raio, uma flecha, um tridente
Aonde irá cair?
Algo me diz
Que, desta vez, só eu vi este anjo
Sem aviso, cai de uma montanha ou de uma nuvem
De uma página ricamente ilustrada
Por outro anjo qualquer
Cai de uma história escrita nas constelações.
 
Entre os milhões de páginas
Havia uma que dizia que um anjo havia de cair
Este anjo, precisamente este
Neste dia, a esta hora, neste ponto do espaço infinito
Coincidiram os meus passos com o passar das páginas
A página voltou-se
O anjo caiu…
 

Suy / São Ludovino, 5/10/1987 (2h 30m manhã)

Midsummer Night's Dream, photography by São Ludovino, 2015.

Midsummer Night's Dream, photography by São Ludovino, 2015.

Midsummer Night's Dream, photography by São Ludovino, 2015.

Valley Song, photography by São Ludovino, 2015.

Six Characters in Search of an Author, photography by São Ludovino, 2015.



Sem comentários:

Enviar um comentário