domingo, 31 de dezembro de 2023

Textos Intermináveis - III

 TRATADO IMPUBLICÁVEL

     Este "Texto Interminável" só é verdadeiramente interminável na segunda parte, que consiste em escrever a "Errata" ou "Corrigenda" de um livro em branco. Nesta errata cabem assuntos sérios, completos disparates, jogos de palavras e tudo aquilo que se quiser imaginar. É a errata e não o livro vazio que é virtualmente interminável, se bem que ambos podem ser intermináveis... 

«Para quê encher mais o mundo de palavras inúteis?» *

Os publicáveis, altamente cotados na bolsa,
Apinham-se nos corredores dos valores literários
Conversam em surdina com os agentes
Os brockers, os editores, os distribuidores
Cruzam meticulosamente a informação,
As estatísticas, as previsões, a tendência dos mercados
Os gráficos, os índices de vendas, a direcção dos ventos
Do gosto, dos aperitivos, da estética da recepção
O que está in, o que está out
Estilos, géneros e subgéneros
Tipologias típicas e atípicas
Estudos de opinião, a inclinação dos críticos
As potencialidades da publicidade
O lançamento, o reconhecimento, os dividendos.

Após aturada análise, desenham conclusões
Identificam pistas, pegadas, impressões digitais
Estabelecem metas, padrões, paradigmas
Possibilidades de happy ending, grand final
Graus de suspense, o ritmo ou arritmia das pausas
Peripécias, equívocos, trocadilhos, símbolos
Recursos e percursos do estilo, da culpa e da inocência
Da vanguarda, da retaguarda, da guarda imperial
Metáforas, anáforas, diáforas e epíforas
Paradoxos, preâmbulos, sequências, impertinências
Títulos, capítulos, episódios, doses de terapia
Dogmas, subversão, sabotagem
Revolução e contra-revolução
Catecismos, paroxismos, ataraxias
Heróis, vilões, Híbris, Catástrofe, Ethos e Pathos
Anagnórise, Ágon, Anankê e Katharsis
Quantas gotas de sangue, quantos anos de guerra
Quantos soluços de dor, quantos risos de escárnio
Quantos momentos de paz, justiça, amor…

Os publicáveis correm para casa
Para o estúdio, o escritório, o refúgio, o habitáculo
Pegam nas canetas, nas máquinas, no papel, no corrector
Chamam os dactilógrafos, os estenógrafos, as musas
Os consultores, os peritos, os provadores
Os estafetas, o catering, os artífices…
E a produção começa
Não há tempo a perder
As tipografias, as montras, os escaparates, os bancos aguardam
Só vale mesmo a pena se for um best-seller
Se abrir o apetite para mais e mais
Sequelas, feitos e efeitos secundários
Ressacas, síndromes de privação, possibilidades de encore
Edição, reedição, impressão e multiplicação
Só vale mesmo a pena se o influxo for duradouro
Se a recompensa for maior do que o esforço e o gasto.

Este publicável escolhe o romance conspirativo
Aquele, o gótico, a acção, a espionagem, a aventura
A reinvenção da história, a ficção científica, a ficção obsessiva
O realismo puro e duro, alquímico, inquietante, inócuo ou benigno…
O dactilógrafo protege os ouvidos do martelar da máquina
Enrola ligaduras nos pulsos, na artrite, no receio de falhar
De engolir palavras, vírgulas, reticências
Tilinta-lhe o cursor na pele de duplo ao mudar de linha
Mudar de folha é um malabarismo supersónico
Lapsos, hesitações, omissões, gralhas e corvos grasnadores…
As correcções ficam para depois
Se o publicável se lembrar da inspirada tirada
Da palavra certeira ou do sentido íntimo da obra.

O estenógrafo sua por todos os poros, todos os neurónios
O autor não repete, recusa-se a repetir
O estenógrafo tem de inventar, de preencher as lacunas
Adivinhar o rumo da intriga, da nuance hiperlexical
Hipocondríaca, hipersónica, hiperbólica
Reluzente, impertinente, premente, eminente
Quase demente, quase demoníaca, inútil, fútil
(Que um autor não pode criar tudo
Precisa de colaboração…
Interpretação, acabamentos, retoques, aditamentos…)
Nem uma pausa para o chá, o café, a interiorização
As palavras ferem, seguem à frente do pensamento
Cavalos selvagens que não pertencem a ninguém
Pisam os gatafunhos furiosamente
E desaparecem entre a poeira cansada…

As musas não têm horário
Trabalham sempre em part-time flexível
Entram e saem quando lhes apetece
Vêm coroadas, despidas, envoltas na pele
De animais extintos, míticos, híbridos
Recostam-se no sofá, no canapé, no peitoril da janela
E ali ficam em exposição temporária
Languidamente astutas, vetustas, estúpidas.
Tiram de um bolso imaginário
Rolos de papel imaginário, carcomido, mudo
Não trazem tópicos, ideias luminosas ou inspiração
Vêm só cumprir a tradição e depois, sem pressa
Sem qualquer oposição, deixam-se recortar em origami
Trepam, rastejam pelas paredes, sucumbem no chão
Tapetes de nada em que adormecem…
As musas adormecidas são as mais profícuas
Pelo menos comparecem quando invocadas
As outras são apenas fonte de distração…

Os consultores são mutualistas: consultam e são consultados
Usam estetoscópio, canetas de tinta permanente e bengala à John Steed
Repetem a receita prévia e prescrevem a seguinte
Verificam se o plano está a ser cumprido…
Na verdade, são apenas fiscais protocolares
Só intervêm verdadeiramente
Se algum publicável se mostra
Demasiado indisciplinado ou criativo
Uma probabilidade rara mas real e inesperada…
Nunca se sabe com toda a certeza…
Em casos excepcionais, os desvarios são aceites e apoiados
Assim começa a mudança de paradigma
É necessário para agitar e dinamizar os mercados.
Para poupar nos gastos, os consultores tornam-se ecléticos:
São contabilistas, promotores publicitários
Médicos, nutricionistas, estatísticos, psicanalistas
Meteorologistas, geógrafos, arqueólogos, censores-conselheiros
Mestres de cerimónias, críticos, propagandistas, áugures…
Os consultores são assíduos e extremamente atentos
Não há necessidade que não consigam diagnosticar
Prever ainda antes de existir, mesmo que nunca venha a existir
Se não existe, inventa-se, misturam supérfluo e essencial
Até que tudo seja necessário, mas nunca suficiente…
Passam cartas astrológicas, terapias, raspanetes
Bebem chá, acomodam-se, cospem para o ar
Advertem, dão conselhos, tropeçam nas musas adormecidas
Mas nunca caem objectivamente
Apenas em sentido figurado, calculado, com etiqueta e requinte
Não se cansam de ser literariamente inúteis
Não há fadiga que possa consumir o profundo sentido de inutilidade
Pouco importa… no final, lá virão
No cólofon ou no anterrosto
Na ficha técnica, nos agradecimentos ou na dedicatória.

Os peritos, esses sim, sabem o que fazem
O que dizem ou insinuam, pregam ou desdizem
Trazem glossários, catálogos, preçários, genealogias
São tantos, que é difícil distingui-los
Por muito específicos, especializados, graduados que sejam
Formam um corpo monolítico e disciplinado
São oradores comedidos, mas extremamente incisivos
Podam as páginas, as linhas, as palavras
Até que a árvore fique geometricamente equilibrada
Acrescentam pitadas certeiras de estilo e ocultismo
Terminologias herméticas, teorias osmóticas
Enxertam neologismos nos arcaísmos
Até que o mistério da linguagem se sobreponha
Ao mistério das almas e ao fio do prumo da acção…
Mesmo sem querer, eles são uma das penas ocultas dos publicáveis…

Os provadores, essa espécie dionisíaca
Que vive inebriada com o próximo golo de absinto
A próxima dentada no pescoço da heroína,
Não têm manuais, rosas-dos-ventos, regras ou etiqueta
Aqui rasgam, ali acariciam, além invectivam
Têm um paladar caprichoso e exigente
Mas se pagarem bem, o gosto acomoda-se
Conforma-se com as tendências vigentes
Que prevaleça o gosto supremo do publicável e vendável…
É imperioso que o acepipe venda, convença
Abra caminho à enxurrada…
A haute-cuisine imita apenas a haute-literature
Como a vida imita a ficção ou vice-versa
Mas não consegue substituí-la…
Alguns são mais temerários
São os melhores…
São os que gostam da roleta russa, de venenos
De soufflé kamikaze, de pataniscas, de iscas, de tremoços
De areias movediças, de riscos extremos, de precipícios
Quanto mais intragável for o pitéu
Mais apetite lhes desperta.
São eles os verdadeiros responsáveis
Pelas guinadas no rumo da acção
Pelos acabamentos, condimentos e cerziduras
São eles que dão personalidade própria à obra nascente
Se apanham uma intoxicação
Ou acabam a estrebuchar no chão com a língua de fora
Isso é bom sinal
Significa que acertaram na mouche
Na borboleta e no moscardo…

Os estafetas são relativamente dispensáveis
Alguns são despenseiros de orfanatos
Ou vivem na despensa do arco-íris
Raramente passam do vestíbulo
Trazem cartas, bilhetinhos, cautelas de lotaria
Jornais, batatas fritas e pastilhas elásticas
O resto da ementa cabe ao catering
Vivem numa relativa paz de espírito
Proporcional à frugalidade dos hábitos
Não têm opiniões nem inclinações nem preconceitos
Apenas pressa e ordens a cumprir
Têm uma imaginação fértil
Mas guardam-na para si…
Não sabem o que perdem os figurões!
Um estafeta é veloz e invisível por definição.
Deve ser por isso que raramente recebem gorjeta…

Um publicável não passa fome
Excepto se a fome for boa conselheira
Um role play de personagem martirizada
Que urge tornar real…
Se queres saber o que é a fome, passa fome
E já agora, passa sede e frio, humilhações e insultos
O realismo que vem da mera observação
Ou da imaginação ingénua não é convincente
É preciso experimentar… sentir na pele, mas não demasiado
Que um publicável tem limites, caramba!
Para evitar tais excessos e agruras
Existe o catering, essa cortina alimentícia
Que separa a realidade da ficção e as combina de forma perfeita…
Passar fome para experimentar ou fazer dieta
Não é o mesmo que passar fome porque não há outra alternativa à fome…
Ao lado da mesa de trabalho há sempre um buffet completo
Transbordante de calorias e opções tentadoras
Uma espécie de rede de protecção da realidade…

O catering de um publicável tem tudo
Como uma loja de utilidades, quinquilharia
Um kit de sobrevivência ou um centro comercial
Nunca se sabe o que vai fazer falta:
Um caniche de companhia, uns berlindes, arco e flecha
Dilemas, espadas de Dâmocles, panaceias e lenitivos
Vulcões, luvas de pelica, diamantes, morangos
Girândolas, saltimbancos, caretos de Podence
Camelos, camélias, a Camorra, um prato de lentilhas
Pianos de cauda, whisky, água mineral…
Ou até uma musa ou um “muso” adicional.
Às vezes, as musas habituais cansam
Tornam-se enfadonhas e redundantes…
É preciso ir sempre mais além
Experimentar, experimentar, experimentar sempre
Desde que não doa muito
Nem exija grandes sacrifícios
Nada de torturas, masmorras, homicídios, miséria…
O principal papel do catering
É proporcionar um infindável leque de experiências
Benéficas, instrutivas, verosímeis, ilusórias, inúteis e inócuas
Da viagem ao espaço ao mergulho numa piscina de notas…
Umas experiências são reais ― as confortáveis, deliciosas, de chorar por mais
As outras são fictícias ― as dolorosas, inevitáveis, punitivas
Para essas chama-se um duplo e ele que exemplifique…

O publicável tem certas ideias sobre a natureza da literatura
Sobre a utilidade e a finalidade da ficção e da História
Sobre a forma como ambas se cruzam inevitavelmente
E se devem unir em síntese-espelho na obra-prima
Esdrúxula, definitiva, fantástica, pragmática, enfática, eficaz…
Ter ideias sobre a literatura, o funcionamento do mundo
As ideias fundadoras da civilização, as utopias e as distopias
É uma questão de respeito, de estatuto, de afirmação…
Não importa muito que ideias são ou parecem ser
Humanismo, coerência, convicção, cinismo
Uma ideia e o seu contrário têm o mesmo valor transacionável
Consumível, achas na fogueira das vaidades
Fole de ferreiro na forja do pensamento efémero…

O publicável não acredita que o narrador se possa confundir com o autor
Sem um enorme esforço e uma boa dose de fingimento
Mesmo a autobiografia, autorizada ou inventada
Exige uma enorme dose de experimentação e simulação
A priori e a posteriori
O autor tem de experimentar para que o narrador autodiegético
Seja absolutamente convincente e sincero…
E não é só o narrador, é preciso percorrer toda a galeria actancial
Vasculhar a alma de todas as personagens
Dissecá-las com empatia fleumática
Adivinhar-lhes os pensamentos, os propósitos, os segredos
Prever as intenções, antecipar os actos…
Oh, abençoada e divina omnisciência!
Determina, vigia, confere poderes sobre-humanos
Abre a auto-estrada dos mistérios do ser
Em que todos se querem perder
Escorregar no piso escorregadio da metafísica
Laboratórios, simetrias, confrarias de iniciados
Precitos percorrendo os nove círculos da aprendizagem póstuma…
Eles que caminhem, que se afundem sem cicerone, pobres Tântalos
Que o publicável não faz a mínima tenção de pisar terras tão perigosas…
Fazer de conta, experimentar, experimentar sabiamente
Sem riscos, sem erros de cálculo…
De uma forma ou outra é preciso experimentar tudo
Basta usar os pronomes pessoais e os verbos certos
Banir a pontuação ou usá-la de modo inesperado
Sintetizar, parafrasear, estilizar, metaforizar, codificar
Construir o labirinto e convidar o leitor para entrar…

Oh, experimentar, ou fazer de conta,
Que maravilhoso modo de ser sincero!
Mas só se for o herói, o Don Juan, o ricaço, o mágico
O explorador de mundos, o messias, o salvador da Humanidade…
Tragam o dossel, o pudim Molotov, a ninfa, o ornitorrinco
Um cheque chorudo com cobertura, o passeio da fama, a imortalidade
As concubinas, as gueixas, as odaliscas, os eunucos, um harém inteiro…
Que comece o festim, a orgia, a fecundação da obra!

O publicável é um homem honesto
Tem um código de honra como os piratas do Mar Vermelho
Um Padrinho siciliano ou um traficante de papoila dormideira
Também tem uma constituição e um código deontológico
A constituição é artística, flexível, evolutiva
É revista, reformulada e retocada em cada estação
Às vezes é revogada em nome do saudosismo
Ou da necessidade de implementar uma revolução
É um documento fundador que refunda permanentemente…
O publicável tem o dever deontológico de acreditar convictamente
Na utilidade e na sinceridade da literatura
Das lágrimas, da compaixão, do ódio, do conluio, do absurdo, das utopias
Cumpre estilisticamente o dever de acreditar
Sobretudo o dever de fazer de conta que acredita
Na verdade intrínseca das palavras, das acções
Das emoções, da fantasia, da ideia libertadora…
Para o demonstrar usa uma receita infalível:
Mimese, cinismo e uma pitada de ingenuidade
Preocupações sociais, altruísmo e um cálice de egoísmo
Empatia, o idiolecto dos simples e metáforas enclausuradas
A crueza do sofrimento, conformismo, activismo e glamour…
Às vezes muda de receita, depende das audiências
Das revoluções e contra-revoluções
Dos relativismos, dos truísmos e outros -ismos
Dos acessos de humor dos editores, dos lobbies, das marés…
O verdadeiro publicável é um grande navegador
Qualquer que seja a tempestade nunca se afunda
Segue na crista da onda, descobre estâncias turísticas
Leitmotivs, inclinações, ideias vencedoras…
E assim viaja, sem cansaço
Da galáxia de Gutenberg à feira das vaidades
Oh, abençoados leitores de bom gosto
Que consomem incansavelmente tais iguarias!
Os publicáveis trabalham incansavelmente
Para os prelos, as luzes da ribalta, o cheque
A nutrição dos espíritos convergentes…

Que é feito dos artífices? Ainda não chegaram?
Falta aqui um cenário, uma natureza morta
Uma torre de vigia, um quartel-general, um moinho de vento
A Grande Muralha da China, um torpedo, um módulo lunar
Uma avalanche, o Yeti, o Insondável Tao
Centauros, Quimeras, Gambuzinos, Ciclopes…
É preciso realismo! Tem de estar tudo aqui
Perante os olhos do re-criador
A realidade é necessária para criar realidade
Tão necessária como os mitos, que também nasceram da realidade
Num dia ou numa noite em que a realidade estava meio adormecida
Embriagada, ociosa, confusa ou treslia a voz clara dos oráculos…
Não basta a imaginação, a intuição, documentários, palestras
Fotografias, fichas de notas, simulacros e imitações…
Adivinhar o desconhecido é sempre arriscado…
Às vezes é a única coisa interessante
É quando um dos artífices falta ou chega atrasado
Que a inventiva começa a trabalhar…

Às vezes o escritor é publicável
Outras vezes é simplesmente escritor
Um amante da escrita ou um criador compulsivo
O publicável raramente é um criador espontâneo
Mesmo quando se confunde com o escritor
O publicável é um agregado de criaturas exógenes
Desconhece que o seu cérebro pode ter alma própria
Conceber todos os mundos que procura fora de si
Cede ao apelo da matéria e vende-se com todo o prazer
O primeiro e último engano do publicável
É não procurar em si todos os seus adjuvantes
Eles até podem lá estar, ansiosos por ver a luz do dia
Esforço vão, vencidos, exilados, calam-se e observam em silêncio
A poeira dourada que desce lentamente sobre a terra de ninguém
A obra frankensteiniana, postiça colagem de membros alheios
A perda de autonomia, da autenticidade, da força motriz da criação…
Nada que preocupe ou entristeça o publicável
O publicável não falha, não tem lacunas, crises criativas ou existenciais
Tem o plano bem traçado, premeditado para ser o que tinha de ser…
Queiram ou não queiram os deuses, a obra nasce, gemente, colossal
De parto forçado, indolor e artificial…
Mais de 500 páginas de colaboração e altos desígnios
Uma empresa bem-sucedida, sem dúvida…

As rotativas já rolam ensurdecedoras
Metralham quilómetros de palavras
Lá vão elas em direcção à foz
Abrem valas, arrasam diques
Carregam detritos preciosos
Na enxurrada final rumo ao grande oceano dos mercados…

Os tipógrafos não têm mãos a medir
Enquanto limpam o suor para não borrar a tinta
Dobram meticulosamente os cadernos
Empilham-nos, passam-nos aos encadernadores.
Estes cosem afanosamente as folhas, aparam as extremidades
Colam a capa à lombada, pressionam com precisão
Dão lustro às maiúsculas do título, rectificam os cantos
Arredondam as esquinas da obra física
Fixam de relance a imagem esotérica da capa…
De entre um denso nevoeiro vermelho
Uns olhos ameaçadores vigiam-nos, ordenam:
«Trabalhai, obreiros, trabalhai incessantemente
Servi a obra e o publicável com devoção».
Folheiam para verificar se ficou alguma folha por cortar
Ah, também tem ilustrações!
Os artífices da imagem trabalharam bem…
É preciso verificar se cada uma está na página que lhe compete
O revisor trata disso e dos percalços de última hora
Errata? Não há, tudo está no seu devido lugar…
Tantas mãos anónimas montando a obra que nunca lerão
Não podem lê-la, não têm tempo
Já lá vem outro calhamaço ou magro volume
No cólofon virão como um colectivo
Sempre no singular empresarial
Tipografia Mil Léguas
Encadernador Tomé Araújo Valentim Lda.

O dactilógrafo já está noutro gabinete
Martelando na máquina AZERT ou HCESAR
Outro best-seller anunciado ameaça desabrochar
Roubar-lhe o sono, o silêncio, o oxigénio
Não há descanso, cada toque de telefone
Esconde uma cilada, “sim, sim, às 8 estarei aí”
“Sim, sim até à meia-noite… sim, sim, claro…”
O estenógrafo põe os dedos de molho em bicarbonato
Faz fisioterapia aos pulsos e engole dolorosamente em seco
Maldita tendinite! Maldita celebrite! Maldita literatura!
Por que não escrevem livros com dez páginas apenas?
Ou então livros de poesia visual, experimental, concreta
Niilista, afásica, extinta, hipoléxica, anoréctica, condensada
Com muitas páginas quase vazias, alguns rabiscos
Imagens, símbolos e meia dúzia de palavras…
Ainda se pagassem horas extraordinárias!

Os consultores e os peritos bebericam cocktails à beira da piscina
Impermeáveis, impassíveis, insolentes, empertigados rejubilam
Foi um lançamento de arromba, os cofres gordos que o digam
O sucesso do publicável é o seu sucesso
É uma cadeia de produção perfeita!

O pessoal do catering foi substituído por outro mais fresco
Mais macrobiótico ou mais carnívoro
Mais atento às alergias e às preferências do publicável.

Os provadores ficaram um bocado enjoados
Tiveram diarreia durante semana e meia
E só comeram canja, maçãs e pão
Mas bastou um chequezinho extra para se recomporem…
Lá estão de novo com a mão e a língua na massa.  

Os artífices despediram-se em bloco
Só ficou o dos efeitos especiais
(Que tem a capacidade inusitada de substituir todos os outros)
Os outros decidiram dedicar-se a arte mais libertadora e genuína
Pintam paredes, restauram antiguidades, esculpem o futuro…

As musas, essas podem ser outras
Mas parecem ser sempre as mesmas
Só mudaram a roupa, a maquilhagem, os trejeitos
Adormecem infalivelmente após dez páginas
Dois parênteses e meia dúzia de reticências…

Os estafetas continuam velozes e invisíveis
Incomunicáveis na sua insignificância
Comunicam forçosamente com tudo e todos
Conhecem todos os adjuvantes, todas as peças do jogo
Continuam sem receber gorjeta
Almoçam uma sopa e um rissol
Regressam a casa a uma hora qualquer
Quando já ninguém os chama
Só então, o estafeta pode ser gente e respirar…

Ninguém lhe ofereceu um exemplar
Nem esperava que alguém se lembrasse dele.
O dactilógrafo lembrou-se que precisava de arranjar espaço
Na estante, na secretária, na rotina
E emprestou-lhe a primeira cópia
Desta, daquela e de outras obras…
Todas lhe pareciam novas demais, imberbes, lustrosas
Semelhantes demais, supérfluas demais
«Será que todas as obras são supérfluas e inúteis?» ― interrogou-se
Os livros velhos e meio esfarrapados
Dignamente envelhecidos
Estranhamente esquecidos
Que encontrava nos alfarrabistas
Pareciam-lhe mais vivos do que qualquer um destes…

Se eram mesmo supérfluas e inúteis
Então qualquer um as poderia criar
Mas ao contrário, como um antídoto
Livros vazios, pequenos, enormes
Alvos como a neve, bolorentos, carcomidos
Sem pressa de encher páginas
Sem pressa de ser lidos
Ou escritos…
«Um desses até eu consigo escrever…» ― pensou
E começou…

Folhas soltas em branco esvoaçavam
Pousavam-lhe aos pés, trepavam para a mesa
Juntou umas tantas e coseu-as para não escaparem
Começou na última página e escreveu no topo
“Tratado Impublicável”… uma experiência com palavras
E por baixo escreveu com determinação
“Errata”… corrigir, transformar, recriar um livro em branco
Isto sim era um desafio que valia pena…!
Sob o título “Tratado Impublicável” não escreveu nada
Sob o título “Errata” foi escrevendo, muito
Pouco a pouco ou de rajada…

ERRATA


1 – Onde se lê:
«Tratado»

1 – Deve ler-se:
«Expressão livre»

 

2 – Onde se lê:

«Impublicável»

2 – Deve ler-se:

«IMPUBLICÁVEL» com maiúsculas, sem dúvidas, mesmo IMPUBLICÁVEL.

 

3 – Onde NÃO se lê:

«sem fastio»

3 – Pode tresler-se sem medo de errar:

«sem Pavio Rastilho da Silva»
«sem salvação, petição ou perdição»
«sem Fausto Faustoso Faustino»
«sem Mefistófeles Mefistolino Mefistólico»
«sem Margarida Tangerina»
«sem felinos, pepinos, merinos ou caraculos»
«sem pistácios, sopapos, dicionários ou Anastácios»
«sem farpela, fato ou fatiota»
«sem pimenta nem pimentão nem congestão»

«dispéptico apopléctico, patético antitético, opíparo disléxico, apático frenético» «raquítico acrítico» ou «polígrafo fatídico» ou «Felismundo furibundo» ou «cretino satisfeito» ou «completamente nu» ou «pão e água» ou «migalhas de nada» ou outra coisa qualquer, desde que não seja «sem fastio» …

 

4 – Onde NÃO se lê:

«ominoso e imprudente”

4 – É preferível ler-se antecipadamente:


«mimoso e contente»
«míope evidente»
«vidente impertinente»
«sanguessuga espadachim»
«Valentim fiasco»
«vigário proponente»
«viscoso e aderente»
«vaselina e benzina»
«céptico camarário»

«vaidoso asséptico» ou «cínico assarapantado» ou «casto e vasto» ou outra coisa qualquer, incluindo «ominoso e imprudente» mas sem as vogais… «mns mprdnt»… ou então, sem as consoantes… «oioo e iuee»…


5 – Onde NÃO se lê:

«pulular»

5 – É possível ler-se, saltando e rindo:

«espirrar pelos cotovelos»

«parlapiar sem travões»
«fritar a bagatela»
«vomitar o parlapié astuto, emético, opíparo, sonoro e salgado»
«introduzir o falatório parlamentar no parlatório»
«matrimoniar a lufa-lufa com o pagode chinês, o entremez, o chico-esperto, o Anacleto, o Aniceto e o Felisberto»
«levar a Cornélia a pastar na biblioteca de Babel com o Abel»
«matraquear a paródia, a ninfa e a trincha»
«semear o capim, a tundra e as estepes»

«sacudir e escovar o tapete, o coreto, o medo, o neto, o tecto, os subúrbios, as redondezas e a periferia» 

«fazer o Inglês ver o pelintra, o primo, a prima, a lambisgóia, a Anabela, a Armanda, a Arminda, a Armada Invencível, a estola, a cartola e a esmola à grande e à francesa»

«atracar, atacar, afagar e elucidar o pastel escanifobético, o magarefe, o galifão e o homem das calças pardas»

«pôr o império de molho até dar às de vila-diogo em águas de bacalhau lá onde o diabo perdeu os calções»

«anediar e moldar o pote, o podengo, o pêlo, o puzzle, a charada e a latada de uvas brancas, francas, pendentes, indiferentes»

«tomar um chazinho com rapé e sem espinhas na esplanada da Suíça, no museu, no apogeu, no perigeu e no zénite, na cozinha com carapinha, na espelunca adunca, no Conselho Superior de Magistratura doente com o pendura, nas manchetes, nas paletes, na Manchúria, na Sibéria, no Éden, no Hades aqui e mais além…»

«adoçar o azedo, o Alfredo, o Macedo, o Figueiredo, o Semedo, o enredo, o arremedo, o penedo e, se for encontrado, o João Sem Medo… sem esquecer todos os descendentes do Azevedo que vivem em Toledo…»

«aparar a queda, os arbustos, a barba e Braga por um canudo enquanto se vêem navios, fragatas, alpergatas e as marmotas da Carlota»

«cambiar com acinte o contra-peso de algodão que não engana por um contra-regra que não atina na Celestina»

«contar patranhas às aranhas estranhas e tirar as manhas ao cacho de bananas»

«aliviar a carga, os bolsos, o contribuinte pedinte sem levantar o sobrolho, sem pretextos, desculpas esfarrapadas, lapsos de memória, esquecimentos convenientes ou desvios inesperados»

«albardar o sabichão asinino jubilado com jaez apropriado no seu feudo fedorento, pocilga, palheiro, palacete ou mausoléu dourado»

«não polarizar as massas, explanar as tretas, financiar as sestas, expurgar as seitas, libertar as metáforas, armazenar a areia na peneira, abespinhar os trastes e os compadres, estrepitar a pituitária, emalar e zarpar…»

«subsidiar o Pompeu, delapidar o Romeu e surripiar o camafeu no jubileu»

«fazer pirraça sem embaraço, sem baraço e sem pião»

«tresloucar o paladar, contagiar a panela de pressão, contaminar a sopa de peixe, saltear os piparotes, espremer os picles, marinar a Marina e a Mariana, pôr as barbas de molho, cozer a pilhéria em banho Maria, vacinar a confraria e, se houver tempo, ir ali à esquina ver se lá está a epifania»

«proliferar o uso de pimenta nas línguas do mundo, das serpentes insolentes e dos benzedores de relíquias» 

«apanhar o fanfarrão no cabanal durante a sesta da tarde antes que vá dar uma volta ao bilhar grande ou se junte novamente aos três da vida airada ou ao bando das patuscadas»

«infectar e eliminar o ditador, o espremedor, o executor, o estripador e toda a espécie de exterminadores»

«levar a cigarra a cirandar enquanto não vem o Inverno, se não houver pendência no expediente nem guitarradas na tasca nem grilos na gasosa»

«espremer a coalhada no cincho, subornar ou abonar o faminto, entrevistar o Jacinto, convidar o Filinto, esmifrar o perdulário distinto»

«pedir ao Mário que traga o dicionário multilingue, traduzir a Divina Comédia, a Divina Tragédia, a Comédia Maligna e A Suprema Pantomina…»

«fazer colheres de pau e paus para toda a obra, pesar figos e ameixas, saborear a compota à porta fechada, atravessar o vinhedo até ao arvoredo onde mora um aedo, voltar à direita ou à esquerda, seguir em frente, voltar para trás ou ficar lá no segredo dos deuses… credo, que já é tarde, é tarde, é tarde, muito tarde…» 

«Urgente: decretar o fim do degredo, dos torpedos, do império dos Medos, dos gulosos insaciáveis, dos perniciosos comedores de povos, terras e futuros, dos robots de carne e osso que dizem sempre “sim, sim, sim Grande Irmão, Papão, Pavão canibal, mestre e guia dos rebanhos cegos” …

«desmontar o asnocrata e a asnocracia com um pé de cabra, eleições livres e um pouco de diplomacia»

«deixar o Camilo ser casmurro à sua vontade e zumbar no caneco sempre que lhe aprouver na alegre companhia do Crisóstomo, do Celestino, da Clotilde, da Clementina, do camaleão, do camelo, da camélia e da camomila… se a Lisete aparecer, atirem-na às urtigas para lhe tirar a ronha e aprender a não se meter onde não é chamada… e nada de anti-histamínicos… ela que se pique e que se coce à sua vontade…»

«Vamos lá caçar o meteorito que quer ser dono do Rossio, pregar-lhe uma rasteira, passar-lhe uma multa e metê-lo na rua da Betesga… não se esqueçam de pôr um rottweiler à porta … e depressa, antes que caia o Carmo e a Trindade e acabem, se acabarem, as obras de Santa Engrácia…»

«Não entrar em nenhuma casa na rua da Betesga… numa está o meteorito em prisão domiciliária, noutra vive um bandido disfarçado de Aninhas, as restantes não têm traves nem soalho… quem entra cai no tapete, na retrete ou no desconhecido…»

«Digam ao Felismino que tem de ir engomar e mimar a fronha e a fava antes que venha a ervilha e a gaita de foles…»  

«Se a concertina aparecer para jantar, pode trazer o rancho todo, a Carminda, a Ermelinda, a Olinda, a Genoveva, a Cremilde e os seus pares… no fim lavam os pratos, as panelas e as pautas …»

«Que é isto? Uma corvina ou uma corveta? Uma cortina ou uma corneta? Um concurso ou um urso? Um tambor ou um tamboril? Uma pilha de livros ou uma salamandra filosófica? Um shop-choy de tofu ou uma choupana-igloo? Um centro comercial ou o cachimbo de Golias? Uma cachopa ou uma cachupa? Uma moçoila ou uma papoila? Um mosteiro ou mostarda? Uma abetarda ou uma bombarda? Uma bateria ou uma batedeira? Um trombone ou um telefone? Um tubarão ou um tecelão? Um pisca-pisca ou uma isca-isca? Um trambolhão? Um safanão? Uma parva interrogação…?»

«Ide por montes e vales, semeai os campos, os rochedos, os areais, os espíritos imaculados, as nuvens que vestem o cume das montanhas, os ventos que suavizam a viagem das aves, a chuva que faz renascer a terra, as canções dos que produzem os alimentos, os caminhos que atravessam o mundo, as mãos e os corações dos que conquistam e defendem a liberdade… e também os lençóis de escuridão, os enxames de mentiras, o rosnar das feras e os gritos dos aflitos, os medos dos fracos, dos insignificantes, dos adormecidos, a indiferença do gelo, a fome dos famintos, a esperança dos vindouros, a matriz da Humanidade… Em cada lugar, lançai a semente que lhe cabe, que transforma, que cura, que faz germinar e multiplicar o ideal e o acto criador… Semeai, sendo a semente, a ideia, a vontade e a obra…»

«se o estafeta se cansar de semear, de lavrar e colher, basta uma pausa e logo vem um novo alento…»

«trazer sempre no bolso mil toneladas de sementes de todas as espécies existentes e imagináveis, a nascente de um rio, a persistência das marés, uma Arca de Noé, a companhia de todos os seres bons, a verdade cristalina, uma incomensurável paciência, as montanhas que ainda não nasceram, as vozes e os caminhos do tempo, a coragem, a fragilidade, dúvidas e certezas, a simplicidade nas suas incontáveis formas… e infinitas páginas em branco…»

«Está na hora de lamber o dedo e voltar a página a toda a brida rumo ao vendaval… cuidado, não caias na lama, na trama ou no lajedo…»

«É sempre divertido lembrar perifrasticamente um quid pro quo»

«pontuar»

«ultimar»
«pular no lupanar»
«limar e lixar»
«alternar e aplainar»

«contornar» ou «contaminar» ou «bajular» ou «trincar» ou qualquer antónimo de «pulular» com dez sílabas, que não existe, não persiste nem tem chiste…

      Rapidamente percebeu que era preciso adicionar páginas em branco, todas bem cosidas, muito unidas, em sintonia com o seu vago mas determinado fim…

 

6 – Onde NÃO se lê:

«ululante»

6 – É aconselhável ler-se e trautear:

«pé de vento petulante»

«assobio pedante»
«ventania andante»
«sibilar intrigante»

«brisa cantante» ou «alcateia retumbante» ou «alegro e saltitante» ou a pauta de música de qualquer sinfonia insignificante para tuba, oboé, clarinete e um elefante…

 

7 – Onde NÃO se lê:

«é hora de dormir»

7 – Pode ler-se, com a devida cautela e café bem forte:

«é hora de sumir»

«é tempo de mugir»

«é urgente estrugir os rabanetes» ou «é relevante acordar» ou «Morfeu perdeu-se na Terra dos Sonhos ou dos repolhos ou dos bárbaros» ou qualquer acção que não implique adormecer, esquecer, derreter ou pastorear carneiros…  

… Pausa para o chá de romã e olhar as nuvens no céu…

 

8 – Onde NÃO se lê:

«Era de elevada estirpe. Podia ver-se claramente pela maneira como enfrentava o olhar curioso da multidão anónima, pela maneira como olhava os livros nas montras, a maneira como se sentava num canto de sombra de uma penthouse-esplanada, pelo silêncio eficaz com que deambulava pela bolsa, pelos jardins privados, pelas portas giratórias dos hotéis de luxo.»

8 – É mais exacto e mais económico ler-se:

«Era uma máscara carnavalesca. Era um vigarista bem-sucedido, um nababo bem nutrido, uma nódoa sanguínea vampiresca. Podia ver-se pelas garras enluvadas, pelo discurso aveludado, pelo currículo oculto e pela enormidade dos rendimentos, isentos, todos isentos.»

 

9 – Onde NÃO se lê:

«quase caiu na cilada»

9 – Provavelmente deve ler-se, sem escorregadelas nem apalpadelas:

«de vez em quando, o queijo é saboroso»

«de vez em quando, os ratos sobrevivem»

«de vez em quando, as ciladas caem em si mesmas, autodissolvem-se ou adquirem uma percepção extra-sensorial»

 

10 – Onde NÃO se lê:

«Todos os dias, o mundo continua a girar. É uma evidência empírica e apodítica. Todos os dias, o mundo ignora o que contém, por puro desdém. Em bom rigor, o mundo nem existe, apenas existe o que contém. Contém gente, animais, plantas, rochas, água… e uma infinidade de paradoxos. Se fosse escritor, escreveria um tratado sobre a consciência e a impertinência do animal humano. Que mania esta de culpar o mundo por todas as coisas! O mundo é apenas o que contém!...»

10 – Dada a evidência do que não se lê acima, não é necessário fazer alterações…

O que não está lá escrito pode continuar a não estar escrito… 

11 – Onde NÃO se lê:

«Não sussurres ao vento
Não lhe perguntes quem és
Não lhe perguntes para onde vais
Não lhe perguntes se queres ir, se sabes ir
Não lhe perguntes qual é a forma dos sonhos
Não lhe perguntes o que queres saber
Que o vento sabe coisas que tu não queres entender
Não entenderias
Não te apresses, respira, coexiste com as coisas
Respira o tempo, o vento, o momento, o mistério

 

Não lhe enchas os ouvidos com as tuas dúvidas
Não tentes correr mais do que ele
Porque ele não corre, voa
Aqui, além, dentro de ti
Não lhe perguntes por que brilham as estrelas
Por que rodopia a terra, o pião, a bailarina
Por que cabe a vida numa mão
Num desenho, num poema, num coração
Por que queres sempre perguntar…
Se és tu quem pergunta
Lá no fundo deves saber responder…    
 
Se ele te dissesse que também és vento
E água e tempo e terra e luz e sombra
Que o lugar para onde vais é um laço de seda
Perdido numa nuvem com sorte, quieta
Entrelaçado em milhões de gotas
Viajante na chuva da Primavera
Preso às tranças daquela garota
Seguindo a corrente do regato
Trepando ao céu por árvores azuis…
Acreditarias?
 
A nuvem lá está, idêntica
Parece que não chove nunca
Porque sempre que chove, evapora
Volta sempre a ser a mesma nuvem
Que sorte a tua, teres essa morada!»
 

11 – O vento acabou de passar por aqui e garantiu-me que tudo o que não se lê acima é absolutamente autêntico. É mesmo muito provável que tenha razão. Como simples estafeta, veloz e invisível, sinto-me sempre inclinado a acreditar no vento.

 

12 – Onde NÃO se lê:

«Ninguém entra silenciosamente

Senta-se no lugar exacto onde já estava a sua sombra
Nada diz porque nada tem para dizer antecipadamente
Ilumina apenas com a sua presença
O estafeta nem deu pela visita
Está habituado a ela
Está demasiado absorvido na brancura das páginas.
A sombra já estava lá antes
Desde a primeira palavra aprendida
Envolta numa luz suave.
É ela a sua interlocutora discreta
Ninguém em pessoa.

Ouço-o dizer a quem ele pensa ser Ninguém:
“Folhas de papel sempre em branco
É esta a estrada que não quero manchar
Eu vou-as recolhendo pacientemente
Vou-as lendo a meu modo
Vou decifrando os passos que hei-de dar na brancura
Vou eu por alguém, que também sou eu, descobrindo
O que hei-de ou não escrever
O que quero ou não escrever
O que encontro ou não na folha em branco…
Eu só penso, existo, sou quem sou…
O que vou encontrando nestas páginas
É muito mais do que eu
Ou mais do que o que sei de mim
Do mundo, das gentes, das coisas que nunca conheci…”

Sem dar conta, é interrompido por Ninguém

Que se debruça afavelmente sobre a brancura de uma página
Letras de sombra desenham um título: Tratado da Consciência Plena
A sombra torna-se mais nítida e prossegue de modo legível
“Enquanto um milhão de habitantes de um lugar qualquer
Sonha ser quem é ― os autênticos estafetas, os comuns
Outro milhão sonha ser outros ― os estafetas-sombras.
Ambos os dois milhões coexistem na sombra e na claridade
Confundem-se com largo benefício dos estafetas-sombras.

No mesmo território, habita uma infinidade de outras espécies

Com características próprias, mas menos distintivas
São todos estafetas, mas só alguns percebem que o são.
Os estafetas-sombras não acordam nunca
Não abandonam nunca o confortável molde
Não lhes apetece, não lhes convém acordar
Ora dormem ora dormitam
Gostam da velocidade na escuridão, mas sem esforço
Se são empurrados para o abismo, aceitam a queda
Se são narcotizados, aceitam a letargia, a ausência de si
Se são comandados, obedecem, coincidem, convergem…
Não precisam de acordar para se tornarem opacos
Esquecidos, imperativos, caprichosos, assertivos
Não admitem ser irreais, metade gente, metade penumbra
Dissolvem-se apaticamente na enxurrada, na vozearia
Confortavelmente, sem inquietações, sem interrogações
Sono cómodo, narcolepsia adaptável.
Bamboleiam-se anafados, marcham bélicos sincronizados
Gargalham estridentes histriónicos no Grande Circo de Feras.
Os autênticos estafetas permanecem acordados e reais
Doridos, audazes, feridos, felizes, dispostos a tudo
Transparentes e atentos.
Uns e outros cruzam-se frequentemente por aí
Mas raramente se encontram, se confrontam
Raramente se vêem ou sentem a falta uns dos outros.

Estão todos de passagem

Para uma barca, um rio, uma margem qualquer.
― «Ó da barca, ó da barca! Pera onde is?» **
― «Vou pera a nascente do rio» diz o anjo,
― «Vou pera onde te aprouver», diz o diabo
«Eu só movo os remos
És tu que conduzes o barco».
Regra geral, os estafetas comuns rumam à nascente
De lá podem partir para todos os lugares.
 
Os estafetas-sombras prosseguem na barca negra
Dando ordens ao barqueiro que não os ouve.
Vivem como muros navegantes andantes petulantes
Projectam-se em redor quais redomas intransponíveis.
Os estafetas comuns atravessam os muros
Ignorando-os simplesmente.
Os muros permanecem, empertigam-se, impam
Estrebucham, esbracejam ou bocejam
Cai-lhes o reboco, estala a tinta
Caem das alturas, mas não dos seus minúsculos tronos…
Não importa… importa prosseguir…
 
Há tanto para fazer, descobrir, aprender…
Os estafetas comuns têm de permanecer acordados
Mesmo quando sonham
Na oficina do mundo o labor nunca pára…”
Ninguém afastou-se de novo, regressou à sua sombra
Agora mais iluminada e visível em redor.
O estafeta interiorizou a experiência
E continuou a caminhada pelas páginas
“Serei um autêntico estafeta?
Estou acordado e sonho
Talvez seja uma prova suficiente…
Quero sentir-me existir, só isso!
Tratados! Que os escrevam as sombras…”
 
Dentro e fora dos tratados, dos clubes de retóricos
Dos compêndios-arranha-céus, dos retratos de celofane
Dos guias de viagens, dos menus literários
Dos baús que guardam palavras e silêncios e gente anónima
Dentro dos dias e das noites
Dentro dos sonhos e da vigília
Os estafetas existem, estafetas de todas as espécies
Cada um no seu habitat, na sua esfera
No seu socalco da pirâmide, no seu nicho
De conforto ou desconforto da galáxia comum…
 
No mesmo local, no mesmo ser, ao mesmo tempo
O sol ilumina ou queima sem premeditação
A chuva flutua ou despenha-se sem medo.
A vida viaja com todos a bordo
Transborda, cruza fronteiras, regressa a casa…
Os estafetas-sombras imperturbáveis sonham e estremecem
Sem saberem que estremecem ou por que estremecem…
Apenas alteram levemente o ritmo dos seus passos-sinapses.
Os estafetas genuínos coleccionam os passos perdidos
De todos os estafetas do mundo, de si mesmos
Os passos que ficam na poeira, na brancura, na página seguinte
Os passos de todos… sem excepções…
Que interminável tarefa!
 

12 – É duvidoso que se deva acreditar em Ninguém ou no seu porta-voz. Mesmo assim, o que não se lê acima pode ficar tal como está, desde que Ninguém revele a sua verdadeira identidade. Se até amanhã ao meio-dia não o fizer, sob o texto deve figurar a assinatura “O Impostor”. Incomoda-me este déjà-vu, este sósia anónimo que copia o meu trabalho. Na verdade, somos tão diferentes. Só temos em comum as páginas em branco. Vou fazer uma pausa até esquecer o incidente…

      Esqueceu mais rapidamente do que pensava e continuou o labor, sempre com novas variações … Pode prosseguir porque é livre e (in)significante…

 

LIBERDADE

Tira o chapéu, pendura o dia findo no bengaleiro

Descobre liberdade onde ninguém procura liberdade
 
Não quero uma ideia brilhante
Não quero uma mansão, altos muros, protecção
Não quero o nome nos jornais ou na capa de um livro
Quero um milhão de páginas em branco
Um milhão de possibilidades de me perder, de dizer
De encontrar ou perder o sentido das coisas
De fundir, de combinar, desenrolar o novelo
Só para descobrir que o novelo não tem fim.

Não quero reis e sábios, ricos e soberbos

Génios, santos, mártires
Quero seres comuns e livres
Felizes porque são livres
Felizes porque vêem e sentem liberdade
Quando respiram e tocam as coisas comuns
Felizes porque sabem que possuem um tesouro
Que começa na alma e germina em cada pensamento
Em cada acto simples dos dias comuns
Felizes porque não se convertem nem se traem a si mesmos
Felizes porque são comuns, anónimos como as pedras do caminho
Felizes porque nenhum ditador, nenhuma mão assassina
Os pode encerrar em redis de medo e obediência…
O escravo que sonha apenas ser o dono de escravos
Nunca conhecerá a liberdade, nunca será livre
Apenas perpetuará a servidão
Ensiná-la-á aos seus filhos, aos seus subalternos
Encontrará sempre alguém que possa ser seu escravo
Será sempre escravo ou dono de alguém…

(O verdadeiro estafeta)

Suy / São Ludovino, 25/6/1987 – 3h 15 m manhã, etc., etc., etc.

* Palavras / interrogação de Fidelino de Figueiredo que partilho.

** ― «Ó da barca, ó da barca! Pera onde is?» - interrogação de algumas das almas que chegam ao cais de embarque no Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente.

Found in a Sketch, drawing by São Ludovino.