terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Textos Intermináveis - VI

     Estas "gotículas" são herdeiras dos dísticos ou tercetos que costumava escrever há 50 anos atrás da série "Listen to the Music", uns em Inglês, outros em Português. E eram mesmo escritos enquanto ouvia música e tinham alguma conexão com os sons e as palavras que ouvia. Também são parentes próximas dos "Streams" escritos há cerca de uma década e das "Droplets" que continuam a ser escritas. Poemas curtos e versos curtos ou de extensão irregular. Só que estas gotículas", regra geral" têm apenas uma estrofe e não formam necessariamente uma sequência uniforme, embora haja afinidades entre elas e seja possível encontrar diversos fios condutores.

Gotículas

Gotícula I


A árvore cresce
Lenta no rumo
Que desconhece
Toca no céu da formiga
Mas não no céu do falcão
Eleva-se acima das ervas
Que cobrem a formiga
E as imensas raízes
Que, profundas,
buscam na árvore
O céu intocável…

São Ludovino, 9/10/2024

Voyagers IX, photography by São Ludovino.

Gotícula II

 
As aves do Norte
As aves do Sul
Encontram-se onde o vento
Se desfaz
Onde não há Norte nem Sul
Mesmo assim
As aves do Norte chegam ao Sul
E as aves do Sul chegam ao Norte
Chegada e partida
São o mesmo ponto
Só muda a direcção da viagem…

São Ludovino, 9/10/2024


Gotícula III

Semente

Cápsula do tempo
Mão, terra, vida e morte
Vida, terra, mão
Fome e saciedade
Ciclo eterno
De infinitas eternidades
A eternidade começa
E recomeça
Em cada semente…

São Ludovino, 9/10/2024

Thank you for growing in my garden II, photography by São Ludovino. 

Gotícula IV

 
Visto-me de dança
Visto-me de cardos
Visto-me de medos
Visto-me de coragens
Visto-me de invisível
Visto-me de ribalta
Tudo é sobrevivência
Mas quando, finalmente
Vivo apenas, irrecusavelmente
Só me resta ou ainda me sobra
A invisibilidade da música
E o desenho do movimento que a veste
A dança, a única que me veste a mim…

São Ludovino, 9/10/2024

 

Gotícula V

 

Se houvesse apenas montanhas
E em cada cume findasse a imaginação
Amaria apenas as montanhas
Se houvesse apenas planícies
E em cada lezíria findasse a criação
Amaria apenas as planícies
Mas se imaginasse tudo
Para além do que há e não há
Poderia amar tudo
O ser e o não ser
E assim tornar tudo real
E único e amável e natural
Sem outro esforço além do respirar da alma…

São Ludovino, 9/10/2024

 

Gotícula VI


Em cada manhã
Ninguém se ergue sozinho
Mesmo o velho sem família
Mesmo o ermita sem casa
Mesmo o pardal ou a perdiz
A quem roubaram o ninho
Mesmo o lobo esfomeado
Ou o cordeiro tresmalhado
Ou o cão sem rebanho
Ou as pedras sem pastor
Ou o pastor de si mesmo
Acordam sob os mesmos raios de sol
As mesmas nuvens dispersas
E o mesmo dia antigo
Inteiramente novo…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Infinite Beauty III, photography by São Ludovino.

Gotícula VII

Em todos os tempos existiram
Faraós, califas, mullahs, ayatollahs e czares
Sedentos de sangue e vidas
Poder e matéria reluzente
Todos pereceram do mesmo modo
Na poeira dos seus tesouros e crimes
Em todos os tempos
Os que crêem e carregam aos ombros
O autocrata e o teocrata
Clamam pelo novo poder
Que os há-de derrubar
E há-de cair de novo sobre os campos
Pejados de corpos devotos
Dos que ainda não aprenderam
A lição…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Gotícula VIII

O Inverno dos espíritos tem duas portas
Por uma só entra o frio
Pela outra sai o calor
Lá fora os animais mansos
Recebem ambos na medida escolhida
E olham a casa
E as duas portas
O que vêem é bem diferente:
Pela primeira entra a fera informe
Pela segunda entra nova luz
Que anula a fera.
A pele engelha-se
Imperceptivelmente
Enquanto o segredo das portas
Persiste…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Gotícula IX

Camadas de pensamento acumulam-se
Em sucessivas camadas translúcidas
Algures entre o ser e o devir
Evaporam-se da nascente perene
Onde deixam os átomos iniciais
A origem perdura
Só a criação se extingue
Mas antes do fim
Recria-se cada instante
E o que finda é só
O inecriado…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Stages of Creation I, photography by São Ludovino.

Gotícula X

Inclina-te, assim
Um pouco mais
Para que nada se perca
Não é um segredo
É uma revelação
Mesmo que não a compreendas
Mesmo que tenhas a impressão
De que nada se revela
Se não se espera e compreende
De antemão, com a devida predisposição
Se prestares atenção, verás
Que nada se revela de uma só vez
É um caminho lento e solitário
É sempre mais uma vereda
Indescoberta ou recoberta de segredos
Que aguardam a revelação
Assim estejas tu, atento a ti mesmo
E ao que desconheces ainda…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Stages of Creation II, photography by São Ludovino.

Gotícula XI

A última nota da canção
Não é o fim da melodia
É uma pausa, imprescindível
O silêncio antes do recomeço
É retomar o fôlego e a voz
A partir de dentro
Antes de reencontrar
O som da coreografia da respiração
O silêncio interroga, aguarda
E responde para além do eco
Prolongando a obra nunca acabada
A canção, o som, o rodopio bailado
Muito para além do último acorde…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Gotícula XII

Rega as rochas que imóveis e densas
Toldam a visão e tolhem os passos
As areias em que se apaga o caminho
O caminho que se esconde
Sob a aridez da preguiça
E se a água faltar na nascente parca
Recolhe cada gota de chuva
Ou de esperança
Ou de teimosia
Que o jardim improvável
É obra amorosa
Dos que não se rendem
À áspera superfície das circunstâncias
Brota dos gestos antigos
E do ímpeto da vontade
Como a planta reemerge pujante
Da semente fossilizada
Que a mais bela ave guardou intacta
No ventre ou no coração…

São Ludovino, 16/10/2024

 

Untitled by Yasuhiro Ishimoto (1921-2012).

Gotícula XIII

Conheço-te desde sempre
Disse o Bem ao Mal
Encontrei-te em tronos de ouro
Em gumes de espada
E campos de horror
Encontrei-te camuflado
Nas fosforescências da mentira
Nas labaredas dos autos de fé
Nos fornos crematórios de Auschwitz
Nos túneis dos carniceiros de Gaza   
No enxofre das masmorras romanas
Encontrei-te nos desertos do Egipto
Multiplicando o peso das pedras
E a vergastada sádica do chicote
Vi-te matar os recém-nascidos
Todos abençoados pelo dom da vida
Vi-te violar as mães, as filhas, as irmãs
Vi-te coberto de mantos alvos
Sacrificando as vestais de outras terras
Vejo-te todos os dias
Planeando a próxima cilada
Tantas vezes caí, mas nunca me venceste
As cicatrizes que me deixaste
São a força que nunca te permitirá vencer…

São Ludovino, 16/10/2024


Textos Intermináveis - V

      A noção de "lista" é o oposto do que é interminável. É uma escolha selectiva, uma síntese do essencial. No entanto, as listas em si mesmas são infinitas. É a variedade da tipologia das listas que torna este texto interminável. Aqui ficam seis, bem diferentes umas das outras.

Listas

Lista

1.


Não vou às compras.
O que quero ter não se compra
Mas tenho uma lista
Aberta
Que me acompanha e me lembra
Do muito que não quero comprar.
Acrescento à lista um rabisco
Uma palavra nova, luzidia.
Acabou de sorver umas quantas gotas de chuva
Tosse para se fazer notada às demais
Como quem diz “Estou aqui!
Juntei-me à lista
Fiz-me à estrada
Cá vou eu ser qualquer coisa
Que só eu posso ser…”
Os outros viajantes da lista saúdam-na
Dão-lhe as boas-vindas
E perguntam-lhe,
Enquanto prosseguem juntos o caminho:
― Como te chamas?
― Ainda não sei, acabei de chegar…

São Ludovino, 11/2/2024

Ringer, photography by São Ludovino.

Lista

2.


Tenho falhas de memória
Às vezes esqueço-me das coisas que penso
Das palavras que escrevo para não me esquecer
Às vezes lembro-me do que esqueci
Lembro-me porque esqueci
Se não lembrasse, vivia
Imparável continuum
Sem ontem nem amanhã.
“Ah, então a memória é um sinal
De que a percepção da vida é intermitente?”
Quem me pergunta tal coisa?
Ah, és tu, lista minha!
Vamos à loja da memória
Falta aqui qualquer coisa
Mas o quê?
Quando chegar à loja,
Talvez me lembre.
Depois acrescento à lista
Para me lembrar sempre que me aprouver!

São Ludovino, 11/2/2024

Lista 

3.


Anemia, euforia, afasia, disfasia, agnosia
Alimentos com ferro
Vermelho e verde
Equívoco, oxímoro
Contentamento sem causa e muitos efeitos
Silêncio cabo montanha suspensa
Não sei, não percebo, não sou capaz
Não me distraias
Não faças vento
Sai da frente, não ouço
Cala-te, não vejo
O que quer dizer isto?
Onde está a lista?
Está cheia de quase tudo
Não reconheço quase nada
Mas tudo saiu de mim
Isso eu sei bem.
Há coisas que têm significado
E não são palavras.
Não sei como anotar, dizer
Claramente
As não-palavras.
Há neste mundo muitas mais não-palavras
Do que todas as palavras que possas imaginar.
Duvidas? Já te ouviste com atenção
Quando estás absolutamente calado
E nem sabes se estás calado
Porque algo em ti fala incessantemente.
Vou tentar de outra forma
Vou desenhar palavras
Na minha lista de esboços…

São Ludovino, 11/2/2024


Lista

4.

Tenho medidas para anotar
Ordenar na agenda discursiva
Não pode haver espaço para dúvidas
Lapsos, relapsos, chumbos e vetos.
O que penso, o que digo, o que escrevo
Há-de tornar-se lei, portaria, regulamento
Pelo menos quando sou legislador
Executor ministro juiz fiscal
Guardador de segredos
Que a todos hão-de regular.
A lista, onde está?
Deve ter ficado no bolso do cidadão.
Sendo assim, não me responsabilizo!
Um cidadão é sempre inocente
Incapaz de qualquer dissimulação ou delito
É um guarda-chuva para todas as estações.
Mesmo que o ministro juiz fiscal minta
O cidadão há-de salvá-lo da opinião pública.
No topo da minha lista está sempre
O cidadão protótipo paradigmático
Absolvido pelo estatuto abstracto que lhe confiro
Que me confiro por decreto-lei promulgado e ratificado.
Antes de tudo o resto, sou cidadão!
Caso encerrado.
Absolvido!

São Ludovino, 11/2/2024

Lista 

5.


Tenho quatro patas inteligentes
Sabem correr, saltar, escavar
Limpar o pêlo e até protestar.
Não tenho uma lista
Tenho uma coleira que detesto.
Mas que hei-de fazer?
As minhas quatro patas não chegam
Para abrir a fivela ou descolar o velcro.
Faço uma tremenda ginástica
Para que os dentes lá cheguem
Mas não chegam…
A lista está colada no frigorífico
Não é minha, nunca quis conhecê-la
Nunca tivemos qualquer intimidade
Mas a sonsinha espertalhona
Tem tremendas consequências
Sobre a minha liberdade soberana.
Eu rosno, esbracejo, recuso-me a entrar na caixa
Em vão, pobre de mim!
Mais uma vacina, não!
Já estou vacinado, mas não emancipado…
Pulgas! Eu não tenho pulgas!
Nunca me cruzei com tais criaturas na minha vida!
Dieta! A que propósito? Por que oculta razão
Me querem roubar o peixinho?
A maldita lista pode mais do que eu
Lá está ela a olhar para mim
Com um desdém que me dá volta ao estômago
E me faz arder com azia.
Um dia destes, se a apanho,
Faço-a em pedacinhos
Acabam-se as decisões unilaterais
E começa finalmente a legítima
E inalienável liberdade de um felino que se preza…
Se as listas são tão poderosas
Talvez seja boa ideia arranjar uma
E a primeira regra há-de ser acabar
Com a autocracia das listas!
Logo se vê se funciona…

São Ludovino, 11/2/2024

Living in the garden I, photography by São Ludovino.

Lista 

6.


Um cartão sujo com um metro por metro e meio
Os pés ficam sempre de fora
E nem sequer sou alto.
Já fui quase alto.
Agora sou velho e curvado.
Coberto pela manta peçonhenta
De joelhos encostados ao queixo
Ocupo o espaço de uma mochila
Coberta por uma toalha de praia.
Raramente vou à praia no Verão
Os seguranças dos bares não gostam de vadios.
Vou à praia no Inverno
Assim sozinho e andrajoso
Tenho o efeito de um espantalho num campo de milho
Espanto os corvos todos e fico com as gaivotas.
É um sossego!
Aquela beleza toda só para mim
É nessas alturas que pego na lista
E ponho-me a escrever coisas como esta…
“Mas por que não vai para um centro de acolhimento
A santa casa ou a casa do povo de um país qualquer?”
Eu bem os entendo
Querem roubar-me a rua
E levar para a lixeira o meu cartão e a minha manta.
De imobiliário percebo eu
Quantas vezes já passei nas arcadas do Martinho
Aquilo sim, é grandeza a perder de vista!
Está na minha lista desde sempre
Mas é apenas um sonho peregrino.
Na zona dos ministérios e da bolsa
Não há lugar para contemplações
Nem pedinchices, nem estacionamento de desabrigados
“É circular amigo, é circular!”
E eu circulo, que remédio
Vou ali à beira rio cumprimentar os peixes
E respirar entre as colunas do cais
Dos meus egrégios avós…

São Ludovino, 11/2/2024




Textos Intermináveis - IV

     Este é provavelmente o "texto interminável" mais interminável e também o mais mutável. Para além de estar indefinidamente inacabado, pode ser alterado, acrescentado e recriado a cada momento. Este é só início das cerca de trinta páginas que já conta. 

Dicionário de Ideias Dispersas

(Definições, anti-definições, aforismos e disforismos e outras ideias desfeitas…)

A

A – (1) Pirâmide anterior às do Império Egípcio erguida na caverna de Platão, milhares de anos antes do nascimento de Platão, e replicada de diversas formas em inúmeras cavernas ao longo de milénios. (2) Taça invertida, símbolo contrário ao Graal que nega sistematicamente a possibilidade de acreditar no que quer que seja usado pelos cépticos pós-modernos. (3) Quando acompanhado de um til, é um som vago e abafado, às vezes prolongado, com os mais diversos sentidos: bocejo incontrolável; interrogação insolente; surpresa assarapantada; hesitação disfarçada; bengala fonética, sobretudo quando se repete no início, no final e ao longo dos bocejos, da caminhada e das frases. (4) Primeira habitante de Alfabetópolis, uma matriarca que teve dezenas de filhos, netos, bisnetos, trinetos e outros descendentes, todos bastante diversos dela mesma. (5) O bobo ou a vedeta da corte do rei Alfa, o beto de Cascais e / ou de Palhais.

Ábaco – (1) Oração de louvor a Baco. (2) Aglutinação da interjeição “Á!” e “Baco” usada por quem se sente atraiçoado ou embriagado sem causa evidente. (3) Erro clínico que consiste na ablação indevida do baço, frequentemente confundido com Baco.

Abnegado – (1) Negacionista das primeiras duas letras do alfabeto latino. (2) Criador de gado conhecido como Abn, algures no Abneguistão. (3) Autor de obra morigeradora sobre o hábito de se negar ou contradizer a si mesmo…

Acrimónia – (1) Prima da Amónia, da Rita e da Mónica com maus fígados e péssimo humor. (2) Excesso de retórica fermentada. (3) Vinagre resultante de sucessivas reacções químicas e anímicas entre os partidários da Clava, do Mosquete, da Chapada, da Luva de Pelica e do Molho Vinagrete. (4) Debate de ideias através de técnicas de ataque e defesa dilacerantes, deglutição de condimentos incompatíveis e lançamento de farpas acutilantes. (5) Sensação ou acto de engolir um sapo depois da sobremesa.

... only if it is good, photography by São Ludovino.

Adelo – (1) – Coleccionador de desperdícios que tem o propósito de os transformar em preciosidades e velharias respeitáveis. (2) – O que pertence a alguém por mera analogia. (3) – Peça de roupa ultra-ecológica feita com restos dos vestuário de todas as gerações desde a primeira Revolução Industrial (desde o século XVIII ao presente).

Adido – (1) Indivíduo com dedo para os negócios internacionais e olho para as viagens exploratórias. (2) – Forma aglutinada da exclamação (Ah, Dido!) proferida por Eneias quando, ao lembrar-se da sua missão no Lácio onde Roma deveria nascer, abandonou Elissa de Tiro, mais conhecida como Dido, na sua majestosa Cartago. (3) – Operação de álgebra que consiste em adir zeros em cada um dos termos de uma soma infinita.

Adivinha – (1) Aquele(a) que vinha, mas já não vem. (2) Aquele(a) que virá eventualmente em tempo incerto. (3) Aquele(a) que trata da vinha, bebe o vinho e vende a mistela. (4) Aquele(a) que vislumbra parras onde não há videiras ou latadas. (5) Charada criada por Adi, o que vem e vai, eventualmente resolvida no futuro.

Adular – (1) – Adicionar ao panegírico um adoçante ultra-doce e verborreico que é desaconselhado a gente comedida e honesta e a diabéticos. (2) – Passar suavemente a mão pelo pêlo dos chefes de estimação, dos mamíferos raros e dos decisores arbitrários. (3) – Jogo tácito ou ostensivo praticado pelos lambe-botas, pelos cães de fila, pelos fracos de carácter e pelos incompetentes de um modo geral.

Aedo – (1) Forma elíptica de “azedo” usada por falantes que têm horror às consoantes sibilantes e às Sibilas que escrevem poemas. (2) Apelido comum dos poetas na Antiga Grécia, facto que sempre dificultou a elaboração de qualquer árvore genealógica. (3) Irmão quase gémeo do Vate, que é de facto irmão gémeo do Vaticínio.

Afinal – (1) Última palavra proferida pelo Final quando se preparava para iniciar o seu discurso sobre a criação do mundo, antes de ser atingido por um raio cósmico e algo divino. (2) Semelhante ao Final, mas apenas quando olhado de soslaio. (3) Alfinete encimado por uma pérola com que outrora se picavam os críticos compulsivos.

Agora – (1) Momento exacto no local exacto da forma exacta. (2) Momento rigorosamente exacto em que o Bem e o Mal se encontraram rigorosamente no mesmo ponto do Universo que coincidentemente foi o mesmo momento e local onde o Maligno e o Benigno se separaram para todo o sempre, ou pelo menos era rigorosamente isso que eles pensavam naquele momento. (3) Unidade de tempo imprecisa usada infrutiferamente para capturar o que ainda há pouco estava à beira de ser o presente…(4) Estranha unidade de tempo impossível de segmentar que costuma passar as tardes na praça pública a perorar sobre a essência do tempo, a melhor forma de fazer pickles, a filosofia política e a política da filosofia, tudo regado com a água do fontanário e o néctar dos deuses, atentamente ouvida sobretudo pelas pedras da calçada, ela que insiste em caminhar descalça em busca de auditório, da verdade, das sandálias ou do silêncio. (5) Exacto instante em que alguém diz “era mas já não é”.

Ágora  (1) Espaço-tempo que apenas existe em si mesmo, não podendo ser deslocado, medido ou dividido; se alguém tenta efectuar alguma destas operações, normalmente some-se no acto ou dá por si deslocado, medido ou dividido. (2) Lugar ao ar livre onde o ar é de facto livre, pensa, repensa, sopra, respira e manifesta-se. (3) Lugar destinado a passeios peripatéticos mais ou menos circulares, angulares, hiperactivos, imprevisíveis ou previamente cartografados.

Aguardente – (1) – Líquido transparente designado “água de fogo” por alguns povos ameríndios, que o usavam para atear as fogueiras e inspirar novos passos na dança da chuva. (2) – Água que não provém da fonte nem de nenhuma nascente natural, mas do alambique (cf.). (3) – Água combustível. (4) – Uma das substâncias mais contrafeitas e contrabandeadas durante todas as leis secas. (5) – Substância líquida que se dissolve em todas as outras.

Ah – (1) Exclamação proferida pelos espantalhos que guardam os alfobres de alfaces dos ataques de mercenários vegetarianos. (2) Arrependimento tardio. (3) O trovador favorito do rei Alfa…

Ai – (1) Reverso da moeda “Ui” usada pelas tribos lamentosas do planeta Rara em situações de extrema aflição. (2) Na variante dupla “Ai, ai”, pode ser um engano, sinal de gaguez esporádica ou a constatação de que se chegou a um beco sem saída. (3) Na variante tripla “Ai, ai, ai”, significa que se foi pisado num calo, arrepelado por um bully, acariciado por um ouriço ou atropelado pelo Yeti. (4) Na variante quádrupla “Ai, ai, ai, ai”, é uma redundância necessária para comunicar com distraídos, ingénuos e paspalhos, (5) Na variante quíntupla “Ai, ai, ai, ai, ai”, é uma advertência usada pelos mestres fiscais quando se dirigem às crianças aprendizes de meliantes contabilistas.

– (1) Lugar incerto próximo da pirâmide da caverna de Platão ou de qualquer transeunte que passe por uma encruzilhada ou pelo ponto em que o eco de “aqui” atinge o máximo de decibéis e se confunde facilmente com “ali”. (2) Lapsus linguae cometido amiúde pelas tribos lamentosas do planeta Rara em situações de extrema aflição. (3) Por vezes, é apenas a consequência de uma divisão silábica emocional (A-Í).

Ajaezar – (1) Albardar de modo erudito. (2) Preparar o quadrúpede-mor da cavalariça para reinar entre as cavalgaduras menores. (3) Jazer quieto e sublime de modo a não pestanejar nem desgrenhar a cabeleira durante uma sessão solene da assembleia asinina. (4) Adicionar sucessivos adereços, pendericalhos, quinquilharia, fitinhas, medalhas e laçarotes ao uniforme dos guardas reais da cavalariça da Praça Vermelha. (5) O antónimo “desjaezar”, para além de significar “tirar a albarda dourada ao erudito”, tem ainda um curioso sentido figurado: Rasgar as vestes das vestais com ferraduras para criar pathos e a indignação dos devotos albardófilos, asinófilos e estupidófilos teotecnocratas dos oráculos.

Ajuizar – (1) Tirar o juízo à sorte usando palhinhas de 15 cm todas cortadas a meio ou moedas com faces idênticas. (2) Pesar o juízo numa balança de ourives usando plumas como pesos. (3) Retirar o excesso de ar ao dispéptico flatulento para que possa pensar, medir e pesar. (4) Raciocínio orientado pela bússola da sensatez. (5) Actividade racional e cognitiva supostamente partilhada por todos os seres pensantes, pensáveis e pensativos, salvo os que padecem de alguma disfunção voluntária da capacidade de separar as águas, ligar as pontas e alinhar as linhas tortas.

Alambique – (1) – Divindade dionisíaca que criou o álcool, patrono dos enólogos e barmen e sátiro nas horas livres. (2) – Aquele que lambe compulsivamente os vértices de qualquer sólido sóbrio com o intuito de os embriagar; consta que foi um percursor do Cubismo. (3) – Fontenário miraculoso que transforma a água em aguardente sem a intervenção de qualquer entidade sobrenatural.

Alarico – (1) Rico Alá das Arábias que quis estender a pequena Arábia até aos confins do mundo, investindo em espadas, dinamite, coletes explosivos, mísseis de longa distância e bombas nucleares destinadas a aniquilar todos os que não quiserem de bom grado ser Arábia e amantes do próprio Rico Alá. Frequentemente confundido com Alarico I, o Calvo, saqueador de Roma em 410 no qual morreu, e até com Alarico II, o legislador de Roma, segundo o Direito e os costumes da própria Roma (Breviário de Alarico, 506). Amado e odiado por parentes próximos e distantes como Alitua (também conhecido como Alirico) e Alagruel. (2) – Dinastia de reis germânicos frequentemente confundidos com Rico Alá, que só nasceria das miragens do deserto arábico duzentos anos depois. (3) – Cacique egotista com ambição desmedida que ama mais a guerra e a própria morte dos seus irmãos do que a vida, desde que isso lhe encha os bolsos e lhe dilate a coutada.

Alarido – (1) – Riso alado. (2) – Pesadelo hilariante que Alá teve quando descobriu que tinha sido inventado por um idiota seguido por milhões de outros idiotas. (3) – Algazarra numa noitada de anedotas. (4) – Fundador da Algazarra no Império dos Agachados. (5) – Ar comprimido pelo riso de alarves.

Alfa – (1) Primeiro rei de Alfabetópolis após a independência do Império de Babel. (2) Sábio grego que assistiu ao Big Bang e continua a mandar notícias luminosas. (3) Realizador de pelo menos uma das sequelas do Big Bang que estreará dentro de mil triliões de anos em todos os cinemas da galáxia. (4) Pequena alface que mantém uma inalterável poker face. (5) Vontade incontrolável de começar qualquer coisa continuamente, impedindo a conclusão do que quer que seja, mas enfim sempre é melhor começar do que acabar; nem uma obra prima merece ser acabada; tal sorte deveria ser reservada exclusivamente ao Ómega e aos seus sequazes sem afectar o fluxo criativo do resto do mundo.

Algazarra – (1) Algo ou alga transgénero especializado(a) em zurrar e beber zurrapa. (2) – Alguém ou alguma coisa que se desloca de asno enquanto zurra e mostra as garras. (3) – Algarismo teimoso que se recusa a participar em qualquer equação resolúvel (4) – Ser híbrido, semelhante a uma alga ou algo, que canta como uma cigarra soprano irritada sempre que a Natureza a contraria. (5) – Última cacofonia composta pelos idiotas úteis viciados em slogans e kaffirs (keffiyeh) durante os planos para uma intifada global, interrompida in extremis pelos ingénuos adormecidos que foram acordados da sua ininterrupta sesta e se sentiram muito irritados… os motivos dos ingénuos não eram válidos, mas o resultado foi… Aleluia!

Alicate – (1) Forma muito abreviada de “Ali há abacate”. (2) – Gato inglês desconhecido e de espécie desconhecida que vivia Ali. Quando se mudou para Alu, passou a chamar-se Alucate, em Além chamou-se Alémcate, no Porto chamou-se Portocate, em Faro todos os conheciam como Farocate, em Nova Iorque chamou-se Iorcate e era frequentemente confundido com o gato de alguém que não ele mesmo, em Paris foi Pariscate, em Roma foi Romacate, em Londres voltou às origens e chamou-se Londoncat, cirandou pelo mundo inteiro mudando sempre de nome, mas nunca voltou Ali nem voltou a chamar-se Alicate. (3) – Instrumento cirúrgico medieval temido por todos os pacientes e impacientes.

Alimária – (1) – Local junto ao mar onde moram Maria, Marina, Mara, Mariela, Mariquinhas e vários mariolas que passam o tempo a zurrar, a perseguir as virtuosas donzelas, a azucrinar a paciência das azémolas, a zurzir o marisco e a limar as unhas que crescem desmesuradamente por falta de labor e honesto suor. (2) – Sinal de nascença dos predestinados a viver (em) Ali Junto Ao Mar. (3) – Famosa ária composta por Alceu Alcibíades, com libreto de Alcino Alcides sobre as aventuras e desventuras de Alipanta, Aliparvo, Alimarado, Alimalvado, Alicretino, Alipatife e outros sacripantas no Reino dos Aiatolas Coscuvilhas que nunca encontraram os Nibelungos no meio da neblina . (4) – Árvore frondosa exótica cujo fruto, o limário, é consumido em grande quantidade nos cocktails. (5) – Lima gigante usada para limar as unhas dos dragões preguiçosos.Aliteração – (1) – Relógio de repetição um tanto ou quanto apressado e bastante monótono. (2) – Propensão para fazer eco, ricochete ou apaixonar-se por reflexos. (3) – Propensão para deslizar suavemente pelas linhas de um poema até encontrar uma dissonância, um ponto final ou um ponto fatal desirmanado ou inanimado. (4) – Lugar incerto onde decorre toda a acção de Ali Babá e os Quarenta Mandões, erroneamente traduzido como Ali Ter Acção, em virtude dos evidentes laços fonéticos. (5) – Avaliação da autenticidade das letras do alfabeto, não vá algum intruso querer meter o bedelho onde não é chamado e estragar a harmonia e desarmonia que concordam tão bem.

Alma – (1) Lugar, tempo ou ser imenso e indefinível. (2) Abreviação muito preguiçosa de Alcântara Mar. (3) Espírito do mar. (4) Alameda de bem-me-queres de porte semelhante ao de uma sequoia rodeada de malmequeres que deixam de ser vistos logo que se atinge o meio do caule de um bem-me-quer. (5) Ideia gigantesca que se confunde com a totalidade do Universo. (6) Brisa suave que faz mover todos os seres. (7) Aquela ou aquele que almeja chegar a todo o lado ao mesmo tempo. (8) Oásis no meio de uma multidão. (9) Altitude próxima do ponto em que o cume da montanha interior toca o infinito.

Amador – (1) – Indivíduo sem nenhum talento especial nem nenhuma competência específica que desempenha funções que mais ninguém quer fazer por ele. (2) – Masoquista desmesurado que ama a dor infinita e dá um sopapo a todos os analgésicos e anestésicos que tentam aproximar-se dele. (3) – Amor dourado ou dorido consoante o ponto de vista e a inclinação das partes implicadas.

Amargo – (1) Mar interior, situado entre Gog e Magog, nações ou monstros que vivem para devorar tudo o resto. (2) O que pretende ser um argonauta amável. (3) Comedor de limões, limas, pamplemossas, vulgarmente conhecidas como toranjas, e outros citrinos especialmente ácidos. (4) O estado de espírito do Amaro depois de ser obrigado a tragar as passas do Algarve durante cinco décadas. (5) O humor da Margarida de Dante na intimidade, segundo um rival despeitado que nunca logrou contemplar a dita menina olhos nos olhos.

Amável – (1) Aeronave secreta construída por Adão e Eva para escaparem à suposta ira divina e à obrigatoriedade humana de se vestirem com parras de videira e as peles dos seus amados cordeiros que se recusavam a matar; a bordo levaram a macieira e os cordeiros; deixaram a serpente para conversar com deus e os invejosos; deus aprendeu imenso, depois também partiu e deixou a serpente a meditar; os invejosos roeram-se de raiva e atiraram-se à serpente em vez de se atirarem ao mar, o que prova que nada aprenderam; no presente, ninguém sabe do paradeiro da serpente; há quem diga, com provas suficientes, que se multiplicou e anda por toda a parte ou pelo menos as partes onde há invejosos, esses grandes fingidores. (2) Antiga caravela com 3 velas verticais e 2 velas laterais semi-horizontais que permitem planar sobre a tormenta; inspirou a construção da Passarola de Frei Bartolomeu de Gusmão; actualmente, faz parte da brigada especial de monitorização do tráfego de meteoritos. (3) Tão fácil de amar que até custa a acreditar. (4) Aquele que gosta de velejar, especialmente se for uma criança. (5) Móvel usado para guardar as coisas mais preciosas.

Graffiti - Rua das Flores, Porto, photography by São Ludovino.

Amiúde – (1) Milho de grão muito pequeno que não pode ser usado para fazer pipocas, mas dá um excelente mimo, capaz até de mimar uma comédia inteira de Shakespeare em cinco minutos. (2) Designação comum de uma miúda ou um miúdo na ilha de “San” Miguel, Açores. (3) Equivalente à chuva “molha tolos” que encharca paulatina e alegremente os que pensam que podem escapar por entre os pingos da chuva.

Amor – (1) – Masculino de amora. (2) – Fonte inesgotável de poesia, tempestades e suspiros, raios de luz e erupções vulcânicas, que brotou inicialmente junto de Hipocrene, mas se deslocou posteriormente para lugar incerto por ser excessiva a rivalidade entre as Musas e os Musos. (3) – Ente etéreo que nasce nas almas de outros entes etéreos e até nas almas dos entes que se julgavam apenas matéria.

Amora – (1) - Feminino de amor. (2) – Corruptela de anglicismo que significa “quero mais”. (3) – Primeira rua, ou talvez viela, onde morou o Alfabeto.

Amuado – (1) Dono de uma mula branca, um mulo cinzento, outros espécimes de gado muar e uma vaca malhada, pouco dado a conversas com gente que não muge nem tuge nem sabe andar a galope. (2) Semelhante a uma mula ou mulo, mas com menos patas e neurónios. (3) Aconchegado sobre si mesmo quando o festim se torna insuportável (4) Sem pachorra para conversa fiada, conversetas, paleio e outras verborreias. (5) Trigo ou centeio moídos num moinho cansado e triste; também designa o pão feito com a farinha destes cereais quando moídos do mesmo modo; não deve confundir-se com o pão que o diabo amassou (cf. expressão abaixo no verbete “Pão”).

Animália – (1) – Arca de Noé de Amália, constituída por animais cantantes e espécies vegetais dançantes. (2) – Exposição zoológica itinerante e flutuante que percorre a selva urbana de várias cidades submersas por enxurradas de estupidez humana. (3) – Grande animação no reino animal.

Apetrecho – (1) Qualquer trecho do livro ou do filme O Planeta dos Macacos servido com aperitivos, mas sem efeitos especiais. (2) Objecto inventado por Petrus Trecus sem propósito definido, mas que habitualmente é usado para resolver puzzles com extrema rapidez. (3) Objecto procurado por coleccionadores de utilidades e inutilidades para as trocarem por outras dificilmente distinguíveis das primeiras; quando não encontram exemplares para troca, roubam-nos de museus ou antiquários, falsificam-nos, atiram-nos às paredes para obter uma transformação imediata ou dividem-nos em múltiplos fragmentos afirmando que cada fragmento é algo inteiramente novo, uma inutilidade que às vezes é lucrativa.

Ardil – (1) – Redil concebido para conter um determinado volume de ar num determinado local numa noite de lua cheia. Se houver lobos por perto, o redil deve ser duplo ou até triplo. O engenheiro que concebeu o redil de ar, ele próprio um lobo afamado, colocou sobre a entrada sem saída uma tabuleta com um aforismo célebre: “Se já entraste, já é tarde de mais”. (2) – O ar que lhe pertence exclusivamente a ele. (3) – Dispositivo usado pelos espertalhaços para apanhar moscas, vantagens, distraídos, qualquer ser de boa fé, moeda e cripto moeda de qualquer origem, gambuzinos, papalvos e qualquer espécie em vias de extinção.

Ardor – (1) – Ar que causa dor. (2) – Dor que produz ar. (3) – Ar quente usado para encher os balões quando falta o hélio.

Armilária – (1) – Mãe abstracta da esfera armilar. (2) – Verdete que cresce naturalmente nas armas e nas armadas milenares. (3) – Fábrica de ar com a pressão de mil milibares.

Artefacto (1) Arte de facto. (2) Produto do engenho de uma mente curiosa e produtiva que produz mais do que consome. (3) Um facto falsificado ou transformado em ícone ou ídolo para atrair a atenção dos ingénuos, desinformados e tresmalhados.

Atarracado (1) Cheio de tarro e algumas taras. (2) Oprimido ou esmagado por várias camadas de tarro, sobretudo nos países autocráticos e/ou paupérrimos. (3) Mais alto do que um tacho ou mais baixo do que um bidão. (4) Chapéu de abas tão largas que cobre todo o corpo excepto os pés. (5) Designação dada a um mancebo esbelto e gracioso entre os Rotundos; os Rotundos são geralmente esféricos e os Atarracados são oblongos ou cilíndricos; no feminino (atarracada), designa uma donzela que dá recados ou uma coscuvilheira que manufactura boatos, mexericos e fake news.

Atchim – (1) – Leitura fonética de “Ah sim”, comum entre os adeptos de espirros. (2) – Exclamação sonora e onomatopaica usada sobretudo para demonstrar surpresa (Ah, sim!), extremo contentamento (Ah, sim!!), para contestar uma afirmação (Ah, sim!?) ou para contra-interrogar um sabichão (Ah, sim?!). (3) – Forma fonética em pin yin da exclamação “Ah, sim!” ouvida frequentemente nas lojas chinesas.

Atilado  (1) Filho bastardo de Átila. (2) Ao lado de ti, ao teu lado ou ao lado de Átila. (3) Aquele que caminha com o til ao lado. (4) Semelhante a uma telha. (5) Desprovido de lados ou telhados ondulados ou inclinados. (6) Que se atira para qualquer lado ou direcção. (7) Chamariz usado para atrair os Tis quando abre a época de caça às inocentes ondinhas que fazem cócegas no nariz. (8) Sólido perfeitamente geométrico ligeiramente vaidoso. (9) Segundo Desastrado Janota, especialista em desastres, disfarces e joanetes, é um antónimo oblíquo de “desajeitado”; segundo o mesmo especialista, o sinónimo directo é precisamente “janota”, isto é, o Desastrado em pessoa.

Atrito (1) Fricção ocasional ou continuada entre indivíduos que pertencem a facções éticas e ideológicas opostas e incompatíveis; regra geral, o resultado é um denso nevoeiro ou uma tempestade de areia que obriga a um escrutínio rigoroso de cada gotícula de água ou cada grão de areia, de modo a destrinçar o verdadeiro busílis da questão; quando o atrito é um eufemismo contínuo, o resultado é sempre um grande número de vítimas inocentes, aquelas que se atreveram a olhar através do nevoeiro e a distinguir a verdade da mentira. (2) Detritos resultantes da fricção entre os antípodas. (3) Aquele que padece de atrite.

Avantesma (1) Lesma avantajada. (2) Lesma avant garde. (3) Lesma adivinha que adora aventar hipóteses. (4) Lesmas agrupadas às vintenas na Festa do Avante. (5) Lesmas com avental, luvas e eczemas. (6) Lesmas gigantescas que costumam aparecer inesperadamente na calada da noite ou no pino do dia em estufas de ervas aromáticas para fazer perguntas despropositadas às traças adormecidas. (7) Lugar ermo onde o vento sopra a esmo em todas as direcções. (8) Avental de alfaces que acaba sempre por ser devorado por hordas de lesmas cozinheiras alfaçófagas bastante antes da hora da ceia; como é evidente, tais ceias podem conter tudo menos alfaces. (9) Lesma atípica dotada de ventosas em vez de patas, habitualmente contratada como aspirador de pó, cotão, ferro-velho, derrames de crude, manchas solares, sardas e sinais de nascença; desde que recebeu o Prémio Nobel da Aspiração, chamam-lhe Professora Doutora Avantesma, título que a sua inata modéstia e tenra idade não lhe permitem aceitar, preferindo o epíteto mais despretensioso Avelina Aventina Temida Lesma, a Jovem Aspirante.

São Ludovino, iniciado em 29/3/2023




Palavras Novas - XXI

ESTOCÁSTICO I


Segundo a primeira lei do acaso
Nada acontece por acaso.
Ao contrário do que possa parecer
Não é uma lei absoluta porque o acaso não deixa.

Segundo a lei intermédia do acaso
Quase tudo acontece por acaso
Um acaso repetidamente estudado
Sempre que o acaso se junta no mesmo tempo e espaço
Com o exacto perito nas leis e estruturas do acaso.
Sempre que a lei intermédia se confirma
A primeira lei esmorece um pouco
Mas nunca definitivamente.

Segundo a última lei do acaso
Que antecede sempre a lei futura ainda desconhecida
Tudo acontece por acaso, sempre que o acaso
Comparece e pode ser inequivocamente comprovado
O que acontece apenas quando a primeira lei não se confirma
Sem excepções nem equívocos
E a lei intermédia fica temporariamente suspensa…

São Ludovino, 15/7/2024


Captured Reflection I, photography by São Ludovino.



Palavras Novas - XX

Plano inclinado e vasos comunicantes


Os sentimentos são naturalmente oblíquos
Tendem a inclinar-se para a sombra ou o reflexo
Do que vem à frente ou atrás
E se mistura no caldeirão interior.
A alquimia íntima é a mais fantástica
Rede de vasos comunicantes.

Entre antes e depois há um caminho
Horizonte e terra em expansão
São os passos que o percorrem que contam
Que encurtam ou alongam a distância
E misturam os ingredientes misteriosos
Da obra contínua, grande ou pequena.

Até as sensações são oblíquas
Mas não há nada mais oblíquo
Do que uma impressão ou uma opinião
A impressão chega e junta-se logo à sombra
A opinião emerge do reflexo
E continua a confundir-se com ele.

Forma, substância e ideal
Companheiros e aliados indistintos
Inclinam-se simultaneamente para a origem primeira
E para o destino último de cada passo
Nos intervalos e interstícios
O que nasce não pára de nascer e buscar o ser…

São Ludovino, 13/7/2024

Life Chapters I, photography by São Ludovino.



Palavras Novas - XIX

Irrevogável


Encontrei-me frente ao juiz
Dogmaticamente instalado de pernas para o ar
Na cabeça, o meritíssimo trazia calçado e engraxado
Um novo código muito bem encadernado
Nos pés cresciam-lhe a olhos vistos
Neurónios pontiagudos muito bem polidos e afiados
Nas mãos imaculadamente enluvadas
Esgrimia um martelo e uma espada
Pela boca vertia asteriscos, raios e coriscos.
Depois de uma pausa, tossicou e disse:
― … E por tudo o que não fica acima dito
Te condeno, sem apelo nem recurso
Às catacumbas eternas do desconcerto…

São Ludovino, 25/6/2024

Kurt Hutton (1893-1960), Upside Down.



Palavras Novas - XVIII

Despedimento


Despedi-me, de repente, sem aviso prévio
Não deixei notas nem recados nem saudades.
Pus os calos de molho e racionei o suor do dever
Guardei umas gotas para me lembrar
Da dureza de todas as viagens
Mesmo as que não começaram ainda.
Despi o fato de todos os dias
Tantos que deixei de os contar
Ou de me importar se passam
Se vão ou voltam ou têm algo para me dar.
O meu fato antigo diz que não voltam
Que não voltará a ser novo
Que quer tanto como eu descansar
E inaugurar os seus próprios dias.
Enquanto faço o farnel e arrumo a trouxa
Faço de conta que estou a cantar.
Nem uma nota soa, mas os meus pés ouvem-me
E levam-me à porta que se abre sem um toque.
Despedi-me ou fui despedido?
Que vontade é esta que me move
E torna leve a pedra, o medo, os anos
A ânsia, a fome, a incerteza e a certeza
De uma nova caminhada?

São Ludovino, 25/5/2024

Painted Ages - Rua das Flores, Porto, photography by São Ludovino.



Palavras Novas - XVII

   Outro fragmento de um "texto interminável" sobre a História do Mundo que, tal como a História, continua em execução... Esta é apenas a primeira parte. Outras três ou quatro já estão concluídas e alguns detalhes talvez até já se tenham tornado anacrónicos, outros são quase premonitórios.

ALIMENTO DAS ERAS

I - ALIMENTO ESPONTÂNEO

(Mundo, 100… 1000…1800…)

 

Se os campos se trabalhassem a si mesmos
E as searas crescessem sem suor nem sacrifício
Tal como as flores silvestres, os líquenes
E os amplos arcos de luar

Se todo o alimento caísse das nuvens
Como chuva miúda e benigna
Reunida na paz viajante
De rios gigantescos e riachos anónimos

Se todas as mesas se cobrissem
Igualmente de pão e frutos
Que se renovassem a si mesmos
Sobre todas as mesas essenciais

Se se dividissem as tarefas
De sobreviver e fazer viver
Com equilíbrio e equidade
Pendendo a balança do labor e do ócio
De igual modo para todos os braços

Se o próprio declive dos montes
Tomasse nas mãos todo o peso
De todas as pedras do caminho
E libertasse Sísifo e Prometeu

Então, sim, o irmão seria irmão
E o servo uma fantasia estranha
Que nunca sangrou nem morreu
Pelos outros, não por si, não pelos seus.

A nova máquina, que não é serva
Mas instrumento e substituto
Símbolo do mundo novo
Não cobriu todas as mesas de alimentos.
Algumas mesas continuam apenas
Cobertas de suor e fadiga
Outras definham na inexistência…

São Ludovino, 19/1/2024

Unnoticed Workers I, photography by São Ludovino.



Palavras Novas - XVI

Cicatriz


Nem tu sabes que força é essa
Que anestésico injectaste nas veias
Que sulfamidas impedem a ferida de alastrar
E consumir todo o ser

Nem tu sabes quem te esmurrou o vago intento
De sair à rua e dar o primeiro passo
Rumo a um lugar qualquer
Em que nada dói

Nem tu sabes como se desfez a vida
Antes de começar
Ao soar do gongo oculto
Na esquina em que a sombra do meio dia
Se desfez num ápice

Sabes, sabes bem demais
Qual é a direcção do vento
Que te empurra contra o soco
Que estás pronto para receber.
Se fosses outro, talvez te salvasses
Mas pouca importa
Os outros continuam a ser os outros
A ferida continua só tua…

São Ludovino, 29/4/2024


Untitled by Yasuhiro Ishimoto.



Palavras Novas - XV

Concertante


Aconteceu deveras
O impossível aconteceu
Hoje, hoje mesmo
Não era suposto
Não era esperado
Os relógios estavam todos atrasados
Não anunciavam o minuto seguinte
Precisamente aquele
Em que o impossível aconteceu
O sol e a lua desciam a rua
De mão dada, distraídos
Com os infinitos raios de luz
Que se entrelaçavam e confundiam
E se fundiam a cada passo.
Veio o relojoeiro acertar o mecanismo
Mas não chegou a tempo
O sol e a lua eram só já um apenas.
Pela rua seguem planetas de toda a galáxia
Dão as mãos, abraçam-se fortemente
Atiram-se uns contra os outros
Mas em vão procuram o íntimo concerto.
O impossível não voltou a acontecer
Pelo menos por enquanto…

São Ludovino, 15/4/2024

Infinite Beauty I, photography by São Ludovino.

Night falls in beauty II, photography by São Ludovino.