terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Palavras Antigas - XIII

O VALE DOS SETE DESFILADEIROS

Já vivi em abadias de granito,
Lavei a minha túnica negra nos regatos,
Cobri de feno o meu rosto de jovem e olhos antigos,
Andei pelos bosques como o lince,
Reescrevi o mesmo livro cem vezes na minha cela,
Subi a montanha e contemplei os desfiladeiros
Como quem contempla um mundo sobrenatural.

A ambição de todos nós era um sopro da alma do Criador.
Contudo, acompanhava-nos sempre a indecisa sede, a múltipla
Que o mundo cria nos corações aprendizes.
E a alma presente perdia-se entre espelhos paralelos
E não sabia escolher a espada que podia unificar
Os infinitos reflexos bruxuleantes da safira celeste.
No poço fundo a água estremecia com a visão da boca azul
Que as chuvas de Abril aproximavam lentamente.

Ao redor do duelo
Era a neblina e os rituais das horas canónicas.
Do chão de pedra erguiam-se em uníssono as nossas vozes,
Elevadas do torpor do lagarto assustado pelo pé do gigante
Ao êxtase do olhar olhos nos olhos a divindade
Nas asas do pássaro ou nos cabelos da velha camponesa.

Era pouco o sono de que usufruíamos
Porque pelas noites dentro escutávamos
Os incomensuráveis ecos dos nossos cânticos
Vindos dos desfiladeiros
E pensávamos se realmente seriam ecos
Ou outros seres os repetiam incessantemente…
Mas depois uma nova manhã nascia e o silêncio
Era pleno em cada gota de orvalho.

O esplendor do céu era por vezes rasgado
Por nuvens em que se via o mundo com os seus mil braços
Arrumando cada pedra num degrau da pirâmide
Ou lançando-as fora…
E os desfiladeiros tornavam-se cada vez mais altos
E as noites mais recortadas por cânticos.
Noutras nuvens via-se a solidão
Penteando os seus cabelos azuis-cinza
E enfiando pérolas e contas de cristal colorido
No colar que constantemente pende sobre as nossas cabeças,
Se enreda nas nossas meditações
E nos faz fitar insistentemente tudo o que está muito longe
E não podemos divisar com certeza
Ou as luzes e as sombras
Que vogam nos olhos dos nossos companheiros.

Nos lagos pescamos peixes que nunca comemos
Porque quando olhámos a superfície
Não vimos o reflexo dos nossos rostos
Mas um peixe com grandes olhos nadando feliz.
E quando este universo de contemplação
Das coisas infinitas ou minúsculas
Nos deixa inquietos em vez de tranquilos,
Damos grandes passeios a pé, sozinhos
Até ao começo dos desfiladeiros.
São tão estreitos que apenas um os pode atravessar de cada vez.
Sabemos, cada um de nós, sem nunca o ter confessado
Que um dia teremos de os atravessar.
Sabemos que um dia vamos deixar as paredes grossas,
Os livros de folhas amarelas,
O estudo dos astros, das profecias, das sombras milenares;
A protecção das árvores de folhagem espessa
E dos hábitos que domam o tempo
Os labirintos e as inquietações.

Penso agora que talvez tenha cometido um erro
No dia em que parti:
Esqueci-me de quebrar um dos espelhos…
Não sei dos outros.
Cada um de nós está só agora.

É lenta a travessia dos desfiladeiros.
Entre eles há espaços abertos, todos diferentes.
O mais espantoso foi o que encontrei
Entre o terceiro e o quarto.
O chão era de areia branca muito fina;
Em metade do céu que se podia observar
E que parecia imensamente vasto para ser visto daquele lugar
Via-se o sol de um dia límpido e luminoso,
Enquanto na outra metade, a lua em quarto crescente
Permitia ainda ver o cintilar de infinitas estrelas
No azul escuro de uma noite cálida.
Além disto, havia apenas uma leve aragem
E um cacho de uvas numa taça transparente.

Entre o primeiro e o segundo encontrei um lago com um cisne.
Entre o segundo e o terceiro, uma cascata e um pequeno rio.
Entre o quarto e o quinto, um castelo de cartas
Um bloco de gelo que não derretia
E uma rosa vermelha na boca de um lobo branco.
Entre o quinto e o sexto, algumas dunas, uns olhos dourados
E um intenso cheiro a mar.
Entre o sexto e o sétimo, uma garrafa com um líquido azul
E um barco à vela.

À saída do sétimo desfiladeiro, uma maravilha sem fim:
Um oceano, montanhas, florestas e vales,
Uma incomensurável nitidez
Que se estendia pela lonjura.
Coloquei no barco tudo o que tinha trazido dos desfiladeiros
E fiz-me ao mar.
Bebi o líquido azul e juntei-me às gaivotas.
Ao longe avisto outros barcos,
Nas costas das montanhas, cabanas de madeira.
Nos vales, campos cultivados.
Um propósito em tudo.

À nossa volta tudo é diferente do que era.
Nas tardes amenas, deixamo-nos apenas existir
E pensamos: “Finalmente as nossas almas estão serenas…”
Contudo, o hábito da meditação não nos abandonou
E agora não temos regras, breviários, matinas e noas;
Temos apenas o tempo e um corcel nos cérebros
Que, de dia para dia, se torna mais selvagem
E, contudo, fascinante…

Que quererão dizer estes novos e estranhos símbolos
Que cruzam e se aninham nos nossos sonhos?!...
Estas fantasmagorias de negro e azul,
Estátuas negras e relâmpagos,
Violinos quebrados na erva de celofane verde,
Dunas rosadas na testa de um homem de longos cabelos,
Arco-íris de coral no alto das montanhas,
Olhos e olhares parados nas ameias dos castelos,
Nas ruas, nos rios, nos comboios,
Dilúvio, pólen, vento,
Seda e miosótis,
Biombos pintados e mãos cheias de esmeraldas,
Almas desertas e desertos gelados
E êxodos e dispersão e gente à espera
Em bordas de abismo, em pedras do caminho,
Às portas dos templos, em mesas de estalagem,
Silêncio, silêncio, carrilhões de silêncio
E o sol ao longe não se altera no seu roxo eterno…

Um outro espanto invade-nos,
Contudo as marcas dos nossos passos não revelam ainda
A hesitação, a pressa ou a inquietude da saudade…

Suy / São Ludovino, 25/2/1986 – 4h 10m tarde

Going Forward I, photography by São Ludovino.

Going Up I, photography by São Ludovino.




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