segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Contos Semi-Breves - II

UMA PARÁBOLA DESCONHECIDA SOBRE AS RAÍZES DA DESIGUALDADE

                                        O homem-rochedo e o homem-ignoto               

     O homem saiu da sua caverna carregando sobre os ombros a sua soberba e a sua mortalidade. Era pouco mais do que pó mas queria ser um rochedo invencível coberto de ouro. Queria tanto que julgou sê-lo e usou todos os meios para se convencer disso. Foi provavelmente esta convicção vã que originou a primeira desigualdade sem fundamento; a desigualdade de superfície que nasce nos olhos e se enterra nos cubículos escuros da mente.

     O homem-rochedo cruzou-se com outro homem que trazia vestida a pele de outros animais, seres desconhecidos de outras paragens. De imediato, o homem rochedo pensou: “Criaturas desiguais de mim, homem e animal, poeira desconhecida que nunca será rochedo… Criaturas inferiores! Decido eu, agora e para todo o sempre!”

     O forasteiro não vinha de longe, estava na sua própria terra desde que nascera. Vivia do outro lado da montanha que o homem-rochedo nunca ousara escalar. Nem o forasteiro a escalou; limitou-se a contorná-la pelo vale que o homem-rochedo nunca vira. O homem-rochedo podia ter-lhe chamado simplesmente homem-ignoto ou homem-desconhecido, como são todos os homens que vivem em lados distintos de uma montanha. Mas chamou-lhe homem-inferior e homem-poeira e foi isso que ensinou aos seus filhos e aos seus netos que continuaram a fazer o mesmo, geração após geração.

     O homem-ignoto mirou o homem-rochedo de alto a baixo, achou-o estranho e ridículo, fraco e algo raquítico. Riu-se da pele que lhe cobria o corpo, cuspiu no chão quando o olhou olhos nos olhos e, de imediato, pensou: “Que deus ou demónio será este bicho-homem? Na dúvida e à cautela, decido hoje e para todo o sempre que é um demónio, desprezível e inferior a todos os homens da minha tribo!”

     Sem hesitar um segundo, atirou a lança contra o peito do homem-rochedo. O sangue jorrou e manchou o chão. Ainda de pé, o homem-rochedo lançou também a sua lança. O homem-ignoto nem teve tempo de ver a lança; viu apenas a dor e o sangue e caiu no mesmo ângulo de sombra em que jazia o homem-rochedo.

Old hero II, photography by São Ludovino. 

     Filhos e netos de ambos os homens de imediato pegaram em armas e iniciaram a primeira guerra que não mais cessou. Geração após geração, homens-rochedo e homens-ignotos mancharam toda a Terra de sangue, mesmo os lugares aonde antes não tinham ousado ir. Toda a coragem lhes vinha da ânsia de aniquilar o outro, de enterrar no chão o seu estandarte, de governar aquém e além do seu olhar. Breves interregnos de tréguas foram pontuando as eras de insaciável ódio e vingança. Nunca ninguém soubera ao certo qual era a causa real de tal desavença. Raramente alguém parou para perguntar e quando parou e perguntou, sentiu no peito a primeira lança do homem-rochedo e do homem-ignoto.

     Apesar das lanças, das grades e dos grilhões, muitas eras depois, alguns homens-rochedo e alguns homens-ignotos continuavam a perguntar porquê. Ninguém sabia ao certo de onde vinham as vozes por serem tão idênticas, ecos gémeos de uma mesma interrogação. Durante a noite, os ecos povoavam de igual modo os sonhos e os pesadelos dos homens-rochedo e dos homens-ignotos e de todas as suas linhagens, nascidas e transformadas ao longo dos tempos. Homens-poeira exactamente idênticos aos homens-rochedo. Homens-rubi indistinguíveis dos homens-linho. Nos complexos laboratórios que os tempos trouxeram, ainda não tinham encontrado nenhuma distinção relevante entre todas as linhagens. Só nuances de superfície, reflexos de cor distinta que a luz e a sombra iam revelando; só contornos de formas, casulos, vestes e disfarces que logo se diluíam sob a lente da ciência e a clarividência da Natureza. Uma linha contínua ligava todas as linhagens, uma matriz natural em que a carne vivia em paz com o espírito comum.

     Às vezes, nas manhãs mais luminosas, todas as vozes pareciam calar-se e as lanças continuavam adormecidas pelo dia dentro. Nessas manhãs nasceram utopias e sonhos tão poderosos como as leis do poder e as forças de todas as armas. Nesses dias, os homens-rochedo e os homens-ignotos caminhavam lado a lado, sentavam-se sob as mesmas árvores, comiam os mesmos frutos, bebiam a água dos mesmos riachos e cantavam a mesma canção, cada um na sua língua e à sua maneira. Nesses dias todos trabalhavam e descansavam de igual modo, todos produziam e possuíam com equidade. Nesses dias ser mulher não era uma maldição pior do que ser poeira, era um dom natural igual ao dom natural de ser homem, rochedo ou flor. Nesses dias não havia escravos nem senhores, não havia cobiça nem soberba. Nesses dias não havia fome ou sede que não fosse saciada. Nesses dias não se ouviam as vozes que perguntavam porquê. Não era preciso perguntar. A paz e a harmonia eram a resposta a todas as perguntas. Esses dias eram minúsculas ilhas luminosas resistindo às contínuas tempestades da História que fustigavam o resto do Mundo, o resto do Tempo.

     No dealbar de um desses dias quase perfeitos, o homem que pensava ser um rochedo olhou o homem sentado a seu lado sob a frondosa Árvore da Vida e viu apenas um homem igual a si mesmo. O homem que nunca fora ignoto ergueu-se, quebrou a sua lança e ofereceu-a ao homem que pensara um dia ser um rochedo. Nesse instante todas as lanças se quebraram e reduziram a pó. Em paz consigo próprios e com os outros povos das outras linhagens, muitos partiram em missão pelo Mundo. Tantos olhos para olhar, tantas lanças para quebrar, tantas mentes para iluminar!

     Nos campos regados de sangue, ao longo das eras vindouras nasceram finalmente searas e papoilas de outro vermelho mais puro, mais vivo. Os rochedos, que não eram homens, sorriram, abriram desfiladeiros nas montanhas e mostraram a todas as linhagens os infinitos caminhos que unem e separam os recantos do Mundo naturalmente diverso. Tudo é único porque é diverso.

     Os homens-rochedo e os homens-ignotos continuam a existir, tal como milhões de outros seres tão diversos deles, tão diversos entre si; continuam a afiar as suas lanças e a dividir o Mundo em parcelas; continuam soberbos e mesquinhamente mortais. Os que sucumbem regressam sempre, sendo outros e outros. De peito aberto, não se rendem, persistem rumo a uma qualquer manhã que ainda não raiou. Cumpriu-se o ódio e a discórdia, falta cumprir-se a paz e a Humanidade!

     Lá vem de novo um homem-rochedo. Caminha ao lado de um homem-ignoto. Serão amigos?! Parecem tão idênticos. Ambos trazem lanças. A surpresa detém-me. Olho-os de frente. Antes de qualquer pergunta, duas lanças trespassam-me o peito. Agora conheço a resposta. Só agora posso contar esta história.

São Ludovino, 23/5/2021 

Time Guardians I, photography by São Ludovino.



Sem comentários:

Enviar um comentário