terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Textos Intermináveis - VI

     Estas "gotículas" são herdeiras dos dísticos ou tercetos que costumava escrever há 50 anos atrás da série "Listen to the Music", uns em Inglês, outros em Português. E eram mesmo escritos enquanto ouvia música e tinham alguma conexão com os sons e as palavras que ouvia. Também são parentes próximas dos "Streams" escritos há cerca de uma década e das "Droplets" que continuam a ser escritas. Poemas curtos e versos curtos ou de extensão irregular. Só que estas gotículas", regra geral" têm apenas uma estrofe e não formam necessariamente uma sequência uniforme, embora haja afinidades entre elas e seja possível encontrar diversos fios condutores.

Gotículas

Gotícula I


A árvore cresce
Lenta no rumo
Que desconhece
Toca no céu da formiga
Mas não no céu do falcão
Eleva-se acima das ervas
Que cobrem a formiga
E as imensas raízes
Que, profundas,
buscam na árvore
O céu intocável…

São Ludovino, 9/10/2024

Voyagers IX, photography by São Ludovino.

Gotícula II

 
As aves do Norte
As aves do Sul
Encontram-se onde o vento
Se desfaz
Onde não há Norte nem Sul
Mesmo assim
As aves do Norte chegam ao Sul
E as aves do Sul chegam ao Norte
Chegada e partida
São o mesmo ponto
Só muda a direcção da viagem…

São Ludovino, 9/10/2024


Gotícula III

Semente

Cápsula do tempo
Mão, terra, vida e morte
Vida, terra, mão
Fome e saciedade
Ciclo eterno
De infinitas eternidades
A eternidade começa
E recomeça
Em cada semente…

São Ludovino, 9/10/2024

Thank you for growing in my garden II, photography by São Ludovino. 

Gotícula IV

 
Visto-me de dança
Visto-me de cardos
Visto-me de medos
Visto-me de coragens
Visto-me de invisível
Visto-me de ribalta
Tudo é sobrevivência
Mas quando, finalmente
Vivo apenas, irrecusavelmente
Só me resta ou ainda me sobra
A invisibilidade da música
E o desenho do movimento que a veste
A dança, a única que me veste a mim…

São Ludovino, 9/10/2024

 

Gotícula V

 

Se houvesse apenas montanhas
E em cada cume findasse a imaginação
Amaria apenas as montanhas
Se houvesse apenas planícies
E em cada lezíria findasse a criação
Amaria apenas as planícies
Mas se imaginasse tudo
Para além do que há e não há
Poderia amar tudo
O ser e o não ser
E assim tornar tudo real
E único e amável e natural
Sem outro esforço além do respirar da alma…

São Ludovino, 9/10/2024

 

Gotícula VI


Em cada manhã
Ninguém se ergue sozinho
Mesmo o velho sem família
Mesmo o ermita sem casa
Mesmo o pardal ou a perdiz
A quem roubaram o ninho
Mesmo o lobo esfomeado
Ou o cordeiro tresmalhado
Ou o cão sem rebanho
Ou as pedras sem pastor
Ou o pastor de si mesmo
Acordam sob os mesmos raios de sol
As mesmas nuvens dispersas
E o mesmo dia antigo
Inteiramente novo…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Infinite Beauty III, photography by São Ludovino.

Gotícula VII

Em todos os tempos existiram
Faraós, califas, mullahs, ayatollahs e czares
Sedentos de sangue e vidas
Poder e matéria reluzente
Todos pereceram do mesmo modo
Na poeira dos seus tesouros e crimes
Em todos os tempos
Os que crêem e carregam aos ombros
O autocrata e o teocrata
Clamam pelo novo poder
Que os há-de derrubar
E há-de cair de novo sobre os campos
Pejados de corpos devotos
Dos que ainda não aprenderam
A lição…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Gotícula VIII

O Inverno dos espíritos tem duas portas
Por uma só entra o frio
Pela outra sai o calor
Lá fora os animais mansos
Recebem ambos na medida escolhida
E olham a casa
E as duas portas
O que vêem é bem diferente:
Pela primeira entra a fera informe
Pela segunda entra nova luz
Que anula a fera.
A pele engelha-se
Imperceptivelmente
Enquanto o segredo das portas
Persiste…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Gotícula IX

Camadas de pensamento acumulam-se
Em sucessivas camadas translúcidas
Algures entre o ser e o devir
Evaporam-se da nascente perene
Onde deixam os átomos iniciais
A origem perdura
Só a criação se extingue
Mas antes do fim
Recria-se cada instante
E o que finda é só
O inecriado…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Stages of Creation I, photography by São Ludovino.

Gotícula X

Inclina-te, assim
Um pouco mais
Para que nada se perca
Não é um segredo
É uma revelação
Mesmo que não a compreendas
Mesmo que tenhas a impressão
De que nada se revela
Se não se espera e compreende
De antemão, com a devida predisposição
Se prestares atenção, verás
Que nada se revela de uma só vez
É um caminho lento e solitário
É sempre mais uma vereda
Indescoberta ou recoberta de segredos
Que aguardam a revelação
Assim estejas tu, atento a ti mesmo
E ao que desconheces ainda…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Stages of Creation II, photography by São Ludovino.

Gotícula XI

A última nota da canção
Não é o fim da melodia
É uma pausa, imprescindível
O silêncio antes do recomeço
É retomar o fôlego e a voz
A partir de dentro
Antes de reencontrar
O som da coreografia da respiração
O silêncio interroga, aguarda
E responde para além do eco
Prolongando a obra nunca acabada
A canção, o som, o rodopio bailado
Muito para além do último acorde…

São Ludovino, 15/10/2024

 

Gotícula XII

Rega as rochas que imóveis e densas
Toldam a visão e tolhem os passos
As areias em que se apaga o caminho
O caminho que se esconde
Sob a aridez da preguiça
E se a água faltar na nascente parca
Recolhe cada gota de chuva
Ou de esperança
Ou de teimosia
Que o jardim improvável
É obra amorosa
Dos que não se rendem
À áspera superfície das circunstâncias
Brota dos gestos antigos
E do ímpeto da vontade
Como a planta reemerge pujante
Da semente fossilizada
Que a mais bela ave guardou intacta
No ventre ou no coração…

São Ludovino, 16/10/2024

 

Untitled by Yasuhiro Ishimoto (1921-2012).

Gotícula XIII

Conheço-te desde sempre
Disse o Bem ao Mal
Encontrei-te em tronos de ouro
Em gumes de espada
E campos de horror
Encontrei-te camuflado
Nas fosforescências da mentira
Nas labaredas dos autos de fé
Nos fornos crematórios de Auschwitz
Nos túneis dos carniceiros de Gaza   
No enxofre das masmorras romanas
Encontrei-te nos desertos do Egipto
Multiplicando o peso das pedras
E a vergastada sádica do chicote
Vi-te matar os recém-nascidos
Todos abençoados pelo dom da vida
Vi-te violar as mães, as filhas, as irmãs
Vi-te coberto de mantos alvos
Sacrificando as vestais de outras terras
Vejo-te todos os dias
Planeando a próxima cilada
Tantas vezes caí, mas nunca me venceste
As cicatrizes que me deixaste
São a força que nunca te permitirá vencer…

São Ludovino, 16/10/2024


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