terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Textos Intermináveis - V

      A noção de "lista" é o oposto do que é interminável. É uma escolha selectiva, uma síntese do essencial. No entanto, as listas em si mesmas são infinitas. É a variedade da tipologia das listas que torna este texto interminável. Aqui ficam seis, bem diferentes umas das outras.

Listas

Lista

1.


Não vou às compras.
O que quero ter não se compra
Mas tenho uma lista
Aberta
Que me acompanha e me lembra
Do muito que não quero comprar.
Acrescento à lista um rabisco
Uma palavra nova, luzidia.
Acabou de sorver umas quantas gotas de chuva
Tosse para se fazer notada às demais
Como quem diz “Estou aqui!
Juntei-me à lista
Fiz-me à estrada
Cá vou eu ser qualquer coisa
Que só eu posso ser…”
Os outros viajantes da lista saúdam-na
Dão-lhe as boas-vindas
E perguntam-lhe,
Enquanto prosseguem juntos o caminho:
― Como te chamas?
― Ainda não sei, acabei de chegar…

São Ludovino, 11/2/2024

Ringer, photography by São Ludovino.

Lista

2.


Tenho falhas de memória
Às vezes esqueço-me das coisas que penso
Das palavras que escrevo para não me esquecer
Às vezes lembro-me do que esqueci
Lembro-me porque esqueci
Se não lembrasse, vivia
Imparável continuum
Sem ontem nem amanhã.
“Ah, então a memória é um sinal
De que a percepção da vida é intermitente?”
Quem me pergunta tal coisa?
Ah, és tu, lista minha!
Vamos à loja da memória
Falta aqui qualquer coisa
Mas o quê?
Quando chegar à loja,
Talvez me lembre.
Depois acrescento à lista
Para me lembrar sempre que me aprouver!

São Ludovino, 11/2/2024

Lista 

3.


Anemia, euforia, afasia, disfasia, agnosia
Alimentos com ferro
Vermelho e verde
Equívoco, oxímoro
Contentamento sem causa e muitos efeitos
Silêncio cabo montanha suspensa
Não sei, não percebo, não sou capaz
Não me distraias
Não faças vento
Sai da frente, não ouço
Cala-te, não vejo
O que quer dizer isto?
Onde está a lista?
Está cheia de quase tudo
Não reconheço quase nada
Mas tudo saiu de mim
Isso eu sei bem.
Há coisas que têm significado
E não são palavras.
Não sei como anotar, dizer
Claramente
As não-palavras.
Há neste mundo muitas mais não-palavras
Do que todas as palavras que possas imaginar.
Duvidas? Já te ouviste com atenção
Quando estás absolutamente calado
E nem sabes se estás calado
Porque algo em ti fala incessantemente.
Vou tentar de outra forma
Vou desenhar palavras
Na minha lista de esboços…

São Ludovino, 11/2/2024


Lista

4.

Tenho medidas para anotar
Ordenar na agenda discursiva
Não pode haver espaço para dúvidas
Lapsos, relapsos, chumbos e vetos.
O que penso, o que digo, o que escrevo
Há-de tornar-se lei, portaria, regulamento
Pelo menos quando sou legislador
Executor ministro juiz fiscal
Guardador de segredos
Que a todos hão-de regular.
A lista, onde está?
Deve ter ficado no bolso do cidadão.
Sendo assim, não me responsabilizo!
Um cidadão é sempre inocente
Incapaz de qualquer dissimulação ou delito
É um guarda-chuva para todas as estações.
Mesmo que o ministro juiz fiscal minta
O cidadão há-de salvá-lo da opinião pública.
No topo da minha lista está sempre
O cidadão protótipo paradigmático
Absolvido pelo estatuto abstracto que lhe confiro
Que me confiro por decreto-lei promulgado e ratificado.
Antes de tudo o resto, sou cidadão!
Caso encerrado.
Absolvido!

São Ludovino, 11/2/2024

Lista 

5.


Tenho quatro patas inteligentes
Sabem correr, saltar, escavar
Limpar o pêlo e até protestar.
Não tenho uma lista
Tenho uma coleira que detesto.
Mas que hei-de fazer?
As minhas quatro patas não chegam
Para abrir a fivela ou descolar o velcro.
Faço uma tremenda ginástica
Para que os dentes lá cheguem
Mas não chegam…
A lista está colada no frigorífico
Não é minha, nunca quis conhecê-la
Nunca tivemos qualquer intimidade
Mas a sonsinha espertalhona
Tem tremendas consequências
Sobre a minha liberdade soberana.
Eu rosno, esbracejo, recuso-me a entrar na caixa
Em vão, pobre de mim!
Mais uma vacina, não!
Já estou vacinado, mas não emancipado…
Pulgas! Eu não tenho pulgas!
Nunca me cruzei com tais criaturas na minha vida!
Dieta! A que propósito? Por que oculta razão
Me querem roubar o peixinho?
A maldita lista pode mais do que eu
Lá está ela a olhar para mim
Com um desdém que me dá volta ao estômago
E me faz arder com azia.
Um dia destes, se a apanho,
Faço-a em pedacinhos
Acabam-se as decisões unilaterais
E começa finalmente a legítima
E inalienável liberdade de um felino que se preza…
Se as listas são tão poderosas
Talvez seja boa ideia arranjar uma
E a primeira regra há-de ser acabar
Com a autocracia das listas!
Logo se vê se funciona…

São Ludovino, 11/2/2024

Living in the garden I, photography by São Ludovino.

Lista 

6.


Um cartão sujo com um metro por metro e meio
Os pés ficam sempre de fora
E nem sequer sou alto.
Já fui quase alto.
Agora sou velho e curvado.
Coberto pela manta peçonhenta
De joelhos encostados ao queixo
Ocupo o espaço de uma mochila
Coberta por uma toalha de praia.
Raramente vou à praia no Verão
Os seguranças dos bares não gostam de vadios.
Vou à praia no Inverno
Assim sozinho e andrajoso
Tenho o efeito de um espantalho num campo de milho
Espanto os corvos todos e fico com as gaivotas.
É um sossego!
Aquela beleza toda só para mim
É nessas alturas que pego na lista
E ponho-me a escrever coisas como esta…
“Mas por que não vai para um centro de acolhimento
A santa casa ou a casa do povo de um país qualquer?”
Eu bem os entendo
Querem roubar-me a rua
E levar para a lixeira o meu cartão e a minha manta.
De imobiliário percebo eu
Quantas vezes já passei nas arcadas do Martinho
Aquilo sim, é grandeza a perder de vista!
Está na minha lista desde sempre
Mas é apenas um sonho peregrino.
Na zona dos ministérios e da bolsa
Não há lugar para contemplações
Nem pedinchices, nem estacionamento de desabrigados
“É circular amigo, é circular!”
E eu circulo, que remédio
Vou ali à beira rio cumprimentar os peixes
E respirar entre as colunas do cais
Dos meus egrégios avós…

São Ludovino, 11/2/2024




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